Número 281 - Ano 10

São Paulo, quarta-feira, 13 de junho de 2012

«O tempo sou eu. / Cada um dos meus gestos / atirados na rampa / de lixo dos objetos.» (Francisco Carvalho) *
 


Florisvaldo Mattos


Caros,


Esta é a segunda vez que o poeta baiano Florisvaldo Mattos comparece ao poesia.net. Em sua primeira aparição, na edição n. 85, de setembro/2004, o boletim destacou poemas de seu livro então mais recente. Agora, o lançamento de sua Poesia Reunida e Inéditos (Escrituras, 2011) trouxe o motivo para uma revisitação à obra do poeta, que acaba de completar 80 anos.

Natural de Uruçuca, no sul baiano, Florisvaldo Mattos (1932-) formou-se em direito na Universidade Federal da Bahia, mas optou pelo jornalismo. Nos anos 60, fez parte do grupo nuclear da chamada Geração Mapa, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha.

Seu livro de estreia, Reverdor, saiu em 1965. Em seguida, o poeta publicou Fábula Civil (1975); e A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996). Praticante de um lirismo marcado por influências clássicas, Florisvaldo Mattos cultiva o gosto pelo verso medido especialmente o decassílabo e exibe em seu acervo um bom punhado de sonetos primorosos.

Para este boletim, escolhi uma pequena amostra da poesia de Florisvaldo formada por sete poemas curtos. Dentre eles, três são sonetos: “Soneto Rural”, “Fênix” e “O Monumento”. Vale observar que o primeiro desses textos pertence ao livro de estreia do poeta e mostra claramente que ele chegou pisando firme, livre das vacilações típicas dos iniciantes.

Não há dúvida disso. Basta considerar esta primeira quadra do “Soneto Rural”: “À precipitação do amanhecer / rural retiro à flauta o som mais puro / de quem, já acostumado com o escuro, / absorto fica vendo o sol nascer.” O texto flui, com ritmo sugestivo e a melodia não se contenta em ficar presa à lógica do verso. A primeira linha só termina na palavra “rural”, situada na linha seguinte. De forma similar, o segundo verso estende-se até “de quem”, na terceira linha.

Em “Glória ao Saxofone”, dedicado ao instrumentista de jazz americano Ben Webster (1909-1973), o poeta dá vazão à sua explícita admiração por esse estilo musical. Na Poesia Reunida, há outras referências a gigantes do jazz. No poema, Ben Webster abre mão de seu sax tenor e aparece "soprando a ponta do quarto crescente".

Em "Apogeu dos Vagões", o poeta transforma em lirismo viril e pungente suas lembranças da estrada de ferro no sul da Bahia. “Composição de espanto corrosivo / acerca-se de mim, vai penetrando / com violência meus olhos. Vence-me / a carne e os nervos”. Em minha opinião, esta é uma das mais vibrantes páginas da poesia florisvaldiana.

"Bárbara Bárbara" e "Everest", dois textos mais recentes, ambos escritos agora nos anos 2000, falam de mulheres que, para nós, leitores, se apresentam com traços enigmáticos e até mitológicos. “Uma porção de infinito / em ti se descobre enigma” (Bárbara Bárbara). Ou ainda: “A mulher de gelo passeia / O delgado corpo de ausência, / Não sabe que a branca nuca / Mira um revólver de sonhos”.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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REVISTA TOCAIA

Acabo de receber um exemplar da primeira edição  da Tocaia ‒ revista de letras e artes, publicada em Itabuna, BA, pelos editores George Pellegrini e Gustavo Felicíssimo. Em formato tablóide, neste número inaugural a publicação dedica-se principalmente à poesia. Contato: jornaltocaia@gmail.com

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Revólver de sonhos

Florisvaldo Mattos

 



SONETO RURAL

À precipitação do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.

Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.

Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.

Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.



"É Ben Webster, claro / soprando a ponta do quarto crescente." (Florisvaldo Mattos)
Ben Webster (1909-1973), saxofonista de jazz americano



GLÓRIA AO SAXOFONE

(Jam-session lunar com Ben Webster, The Frog)

O rosto iluminado do delírio
parece desertar de Manhattan;
faz de som andarilho o Rio Hudson
em palco acre de álcool e desperdício.

Escalando a montanha dos sentidos,
a solidão e os sonhos rebelados
voam por sobre o Harlem e vão tocar
do Novilúnio a face enegrecida.

Logo o duelo do Santo contra Lúcifer
começa neste pasto de Centauros,
onde reluz o som mais primitivo
Que o homem fez e ouviu, e o mais recente

que vem da geometria resplendente,
já descoberto o encanto da miragem,
celestial coda; é Ben Webster, claro,
soprando a ponta do quarto crescente.



APOGEU DOS VAGÕES

Noturnos vagões carregados de amargura
de empilhados produtos e origens,
correi sobre horizontes dos dias!

Composição de espanto corrosivo
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.

Negros, armados de geometria difícil,
rota economia de outonos ressentidos,
duram interiores funerários
sobre sacos sombrios e carregadores.
Barris de angústia, lento soluço,
arrastando gemido sobre trilhos,
correi, sempre correi, sombra
afogada na sombra de sangrento galope.

Confuso grito e fúria registrando
velocidades e pressentimentos,
avançai contra noites, contra os dias,
noturnos vagões, consistência
de amarguras espessas e ferragens,
cruel fome de rodas gira-mundo.



FÊNIX
               A James Amado

Este manto da tarde incendiado,
frágua onde o sol do olhar se põe refém
restaura o manuscrito de um julgado
que vem de Ovídio e de Virgílio vem.

Levanta voo o pássaro sagrado,
de aroma e ouro cingido, e se detém;
arrebatando auroras, como a um prado
virgem, as cores formam seu harém.

Alude a carnaval, entre palmeiras,
com que mantém madura sociedade,
em ninho de perfumes. As primeiras

horas da noite chegam, sugerindo
que o espetáculo da imortalidade
nasce da asa do pássaro se esvaindo.

(Salvador, 18 fev. 2001)



"A mulher de gelo passeia / o delgado corpo de ausência." (Florisvaldo Mattos)
"A mulher de gelo passeia / o delgado corpo de ausência"



EVEREST

A mulher de gelo suspeita
Que sou um dragão na noite,
Aquele que na caverna
Desconhece o ferro e o bronze.

A mulher de gelo desfaz
A cabeleira solar.
Voltada para a janela,
Ao vidro faz confidências.

A mulher de gelo passeia
O delgado corpo de ausência,
Não sabe que a branca nuca
Mira um revólver de sonhos.

A mulher de gelo confia
Em coisas que sejam mudas.
Mas, sendo mulher, não pode
Morrer à míngua de excesso.

(SSA, 22 mai 2006)


 

BÁRBARA BÁRBARA

És, em teus dias tu mesma,
no teu olhar para dentro.
Uma porção de infinito
em ti se descobre enigma.

Semelhas uma flor de aço,
que se dissolve em cristais,
redesenhando o jardim,
que te rodeia em convívio.

Um malmequer em pessoa,
num semblante que ressoa
olho e boca, sempre mudos:

estrela esbelta em tez bárbara,
o silêncio é que te faz,
Bárbara, essência de mundos.

(2001)



O MONUMENTO

Na praça, entre mangueiras, velhas árvores,
o monumento. Está morto. Sim, morto,
e não sabem. Aliás, desde algum tempo,
percebe-se inútil, sem cor na face.
Crente, enfiado em burel de eternidade,
observa fértil crosta de azinhavre,
instante verde-pálido das horas,
e a tribuna (pouso de oradores viris,
imersos em mordaça e clorofórmio),
lúdico ressoar de palavras ocas,
por corredores úmidos, de bronze.
Percebemos o exército de régulos,
que ainda acorrem, ávidos, em busca
de imortalidade (além dos vermes).

(2001)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Florisvaldo Mattos
•  Poesia Reunida e Inéditos
   
Escrituras, São Paulo, 2011
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* Francisco Carvalho, "O Tempo", in Rosa dos Eventos (1982)
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Imagem: Ice Woman, Jay Brooks