Número 280 - Ano 10

São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2012

«A morte não é senão / esse mergulho de peixes / dentro do coração.» (Lenilde Freitas) *
 

Adair Carvalhais Júnior (1961-)
Adair Carvalhais Júnior
 

Caros,

Poeta, professor de história na UFMG e fotógrafo amador, Adair Carvalhais Júnior é mineiro de Governador Valadares, onde nasceu em 1961. Escritor prolífico, ele mantém (ou manteve em sequência) três blogs de poesia, mais um de fotos, e ainda participa de outro, meio difícil de definir, que envolve cultura, política, ecologia e afins.

Especificamente no campo da poesia, Carvalhais publicou duas coletâneas em papel: Roteiros para um Final de Era, em 1998; e Desencontrados Ventos, em 2003. Além disso, aproveita bastante os meios digitais. Seu e-book Todo Poema é um Risco Lançado Sobre o Nada foi franqueado para download em 2011. E há ainda projetos com arcabouço de livro, como a série de poemas do blog Biografia.

Do contato que travei com os textos poéticos do escritor valadarense, ficou-me a sensação de que Carvalhais cultiva uma discreta nostalgia das coisas vistas e vividas no interior mineiro. Não aquela nostalgia lacrimosa, mas uma referência que afinal constitui um patrimônio exclusivamente seu ― a memória.

Não é por acaso que os dois maiores memorialistas da literatura brasileira ― Pedro Nava, na prosa, e Carlos Drummond de Andrade, na poesia ― são ambos filhos do solo mineiro. Talvez a existência em Minas Gerais, por algum motivo, se preste mais ao cultivo das reminiscências: “a lonjura das estradas / poeirentas um mundo / de ausências”.

Um exemplo explícito de memória poética é a série de 38 poemas reunida no blog Biografia. Nela, Adair Carvalhais passa em revista suas lembranças de infância, fala do pai, da mãe, das mudanças da família. "sou da beira // rio das águas que mais de uma / vez solaparam as / margens da / noite" (Rio).

Outra vertente dos poemas de Carvalhais ― que também se revela no olhar do fotógrafo ― é a observação de coisas miúdas. As flores no galho que compõem um desenho especial, o casario simpático pintado de cores alegres e contrastantes, a tarde barroca "sitiada pelos sinos".

Um terceiro eixo de referência identificável no trabalho desse poeta-fotógrafo é o lirismo amoroso, às vezes salpicado de leves tintas eróticas: "o silêncio vibra nas / fontes do teu corpo sob / as dobras da tua / pele" (Nu).  

Mesclada a todos esses traços, nota-se ainda na poesia de Adair Carvalhais Júnior a presença reiterada de referências a rios e estradas, como se o poeta enxergasse a própria existência como um incessante percurso. E é como se tudo também guardasse alguma memória: "o curso do rio risca / a memória das areias".  


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Um detalhe: todas as fotos ao lado são também da autoria de Adair Carvalhais Júnior.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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LANÇAMENTO

Ronaldo Costa Fernandes
 Memória dos Porcos

Na próxima terça-feira, para quem estiver em Brasília: lançamento de Memória dos Porcos, do poeta Ronaldo Costa Fernandes, já destacado em duas edições deste  boletim, n. 126 e n. 263. O livro sai pela Editora 7Letras.

Data: 22/5, terça-feira
Hora: a partir das 19h00 
Local: Restaurante Carpe Diem 
SCLS 104 Bloco D loja 1
tel. (61) 3325-5301
Brasília - DF

 


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VERA LÚCIA DE OLIVEIRA, EM ITALIANO, PARA FRANCESES

Na próxima terça-feira, 22/5, em Paris, ocorrerá o encontro "Littérature et Poesie Migrante", promovido pelo Institut Culturel Italien. O evento destacará duas poetas sul-americanas que vivem na Itália e adotaram o italiano como língua de expressão artística. São elas Vera Lúcia de Oliveira, do Brasil, e Francisca Paz Rojas, chilena.

Para nós é uma alegria dar esta notícia. Vera Lúcia de Oliveira já participou várias vezes deste boletim, como poeta (edições n. 40 e n. 235) e também como tradutora (Drummond: 100 Anos n. 21 e poesia.net n. 187). Paulista de Cândido Mota, Vera escreve com igual destreza em italiano e em português. Tanto que já conquistou diversos prêmios literários na Itália, em italiano. O evento na França da próxima semana destaca exatamente isso: sua capacidade de escrever no idioma de Dante como se fosse sua lingua mater.


 

 

Memória das areias
 

Adair Carvalhais Júnior
 

 



DIAMANTINO

o curso do rio risca
a memória das areias
quentes sob o clarão

lunar

casinhas brancas e azuis
reverenciam mudas o vasto
horizonte

de pedra

donde desabam águas
nas ladeiras altivas

na varanda tímida seu
sarafim rememora histórias
trançadas em ouro e coco

da bahia

 

 

NU

a poeira se esgueira
no pôr do sol por trás
da lua
minguante

um poema se perde
nas cintilações do dia

a solidão se
enreda na chuva
fina na transparência
da lágrima

o silêncio vibra nas
fontes do teu corpo sob
as dobras da tua
pele

um poema amanhece
nas cintilações dos teus
olhos

 

BIOGRAFIA XX – ÓRFÃOS

meu pai ensinou as profundidades
dos rios suas altas
margens

minha mãe o nome da
solidão seu cheiro
entranhado no corpo

a lonjura das estradas
poeirentas um mundo
de ausências

as âncoras e os modos
de se entrelaçarem as
mãos ainda

procuro
 






GERME

entre uma noite e a
seguinte os dias
espreitam as horas
que se cruzam

o sol se cultiva
entre luas

por cima dos morros
no longe dos descampados
multiplicam se
as árvores sob

suas sombras florescem
pássaros

na terra úmida
brotam mundos

entre uma noite
e a seguinte as
horas vigiam os dias
que se enredam

a lua se cultiva
entre sóis

 

BARROCO

o voo breve dos pequenos
pássaros o escorrer miúdo
da água

a manhã sitiada pelo silêncio

o corpo desprotegido o incessante
fluxo da dor a ardência
na pele

uma tarde sitiada

pelos sinos

 

LER

todo o alfabeto se
distrai nos meus
dedos quando

descubro no
horizonte matizes
do seu

olhar invento na minha

carne os
versos dos nossos
desvãos

sua pele resplandece
minha

escritura

comprometemos o
corpo

inteiro





SOLIDÃO

um rio que não
se cruza mais
uma aurora

indecifrável

uma noite sem
eco um
horizonte

que se
nega

tardes incontornáveis
ventos sem direção

um poema que
se
repete

 

BIOGRAFIA XXI - ANGÚSTIA

quando nasci fazia um atordoante
calor e o rio
doce coalhava-se de pássaros
desesperados quando me

casei disseram vai
engordar ficar careca colocar
gravata como todos
senhores respeitáveis

pedro e alice cresceram as
árvores que plantei já
dão sombra mas não
encontro em lugar

algum aquele que
deixei na beira
do rio nem nos meus cabelos
brancos as flores do

limoeiro a correria das
crianças no quintal da
minha
infância

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Adair Carvalhais Júnior
Poemas e fotos extraídos dos blogs do autor:
•  Biografia
•  Terra Forasteira
•  Ventos Desencontrados
•  Fotografias
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* Lenilde Freitas, "A Zilá Memede", em Tributos (1994)