Vera Lúcia de Oliveira
Caros,
Mais uma vez, este boletim retorna a um autor já publicado, revisitando o
trabalho da poeta paulista-italiana Vera Lúcia de Oliveira. Depois de seu
aparecimento no
poesia.net n. 40, quatro anos atrás, Vera Lúcia já publicou três livros no
Brasil: a antologia poética A Chuva nos Ruídos, de 2004; No Coração da
Boca, de 2006; e Entre as Junturas dos Ossos, também de 2006.
O primeiro desses livros recebeu o prêmio de poesia da Academia Brasileira de
Letras de 2005. O último, publicado pelo Ministério da Educação, foi um dos
vencedores do concurso Literatura para Todos e circula numa edição
tamanho-Brasil de 300 mil exemplares.
Dividida entre dois continentes, Vera Lúcia desde 1983 reside na Itália,
onde leciona literatura portuguesa e brasileira na
Università degli Studi di Lecce. Para não perder as raízes, Vera sempre escreve
de forma bilíngüe, em português e em italiano. Se compõe num dos idiomas, sempre
faz uma versão para o outro.
O curioso disso é que ela se tornou uma poeta multipremiada, lá e cá. O volume
No Coração da Boca, por exemplo, tem um gêmeo italiano, que é Nel
Cuore della Parola. Outro livro de Vera Lúcia, Verrà l'Anno (Virá o
Ano), este apenas na versão peninsular, recebeu dois prêmios na Itália: o Popoli
in Cammino e o Prêmio Internacional de Poesia Pasolini.
Além de poeta e ensaísta, Vera Lúcia de Oliveira é também uma dedicada
divulgadora de literatura em língua portuguesa. Ela já traduziu para o italiano
textos de poetas brasileiros e também, em sentido inverso, textos de língua
portuguesa para o italiano. No site Alguma Poesia, temos dois exemplos disso:
poemas de
Carlos Drummond de Andrade vertidos para o italiano e versos do poeta
italiano
Alessio Brandolini traduzidos para o português.
A poesia de Vera Lúcia de Oliveira é um trabalho extremamente sensível que
se mantém em fina e doída sintonia com as coisas do mundo. O tom é sempre
discreto, avesso a fanfarras e sarabandas, num território onde se movem seres
humanos, donos de vidas pequenas. Vidas de gente opaca e sem nome. Grande,
mesmo, estrídula em sua empatia e abrangente no abraço, é a compaixão que esses
versos transpiram.
Não há tragédias explícitas nos versos de Vera Lúcia de Oliveira. No entanto, a
humanidade que neles se move é uma espécie triste, mesmo quando ri ou comemora.
Aquela tristeza de pessoas que vão tocando a vida, mas parecem, lá no fundo,
intuir que nas tramas do mundo não sobra muito espaço para elas.
O mais impressionante dessa lâmina de realidade — primeiro, brasileira; depois,
humana — que atravessa cada poema da autora é notar que a maior parte de seu
trabalho foi produzido longe do Brasil.
Eu nunca havia me dado conta de como é recorrente a imagem do pássaro nos poemas
de Vera Lúcia de Oliveira. Somente agora, ao reler três livros, lado a lado,
percebi esse detalhe. Além de ela ter escrito um livro chamado Pássaros
Convulsos (inédito em português, mas com alguns poemas incluídos na
antologia A Chuva nos Ruídos), a referência às aves está presente em
vários outros títulos.
Somente na pequena amostra ao lado há quatro poemas com referências a pássaros.
Não é por acaso. São aves humanas. É o desejo de voar.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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UM
PRESENTE PRA VOCÊ
Clique aqui
e leia a edição integral do livro Entre as Junturas dos Ossos, de
Vera Lúcia de Oliveira, em formato PDF, tal como foi publicado pelo MEC.
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LANÇAMENTOS
A próxima semana vai ser bastante movimentada em termos de lançamentos. Aqui,
três eventos em que quatro poetas mostram suas novas produções, em São Paulo e
em Salvador.
• Glauco Mattoso e Luiz
Roberto Guedes
- A Maldição do Mago Marginal
- Mínima Immoralia / Dirty Limerix
Os poetas Glauco Mattoso e
Luiz Roberto Guedes lançam em São Paulo novos livros pelo selo Demônio
Negro. Mattoso assina A Maldição do Mago Marginal, coletânea de sonetos
sobre poetas malditos. Guedes apresenta Minima Immoralia/Dirty Limerix,
uma seleta de poemas licenciosos traduzidos do inglês.
Data: 21/11/2007, quarta-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Espaço Unibanco de Cinema
Rua Augusta, 1475
São Paulo – SP
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Moacir Amâncio
Ata
O poeta Moacir Amâncio lança em São Paulo o volume Ata, reunião de sua
poesia. Publicado pela editora Record, o livro foi apresentado aqui no
boletim n. 234.
Local: 22/11, quinta-feira
Hora: 18h30 às 21h30
Local: Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena
São Paulo – SP
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Ruy Espinheira Filho
Um Rio Corre na Lua
O poeta baiano Ruy Espinheira Filho traz a público o fruto de sua nova incursão
no terreno da prosa, o romance Um Rio Corre na Lua, que sai pela Editora
Leitura, de Belo Horizonte.
Local: 22/11, quinta-feira
Hora: A partir das 18h00
Local: Livraria Civilização Brasileira
Shopping Barra
Av. Centenário, s/n - 2º piso
Salvador - BA
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Pássaros convulsos
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Vera Lúcia de Oliveira |
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FERROLHOS
de uma cidade vim
que mora dentro de mim
nasci madura no dentro
de mãe serenando vento
num branco de madrugada
rasgado de trovoada
e vária, larga de olho
a cutucar os ferrolhos
A CULPA
o que é
a culpa?
senão a mão que
não existe mais
aguilhoando
o mesmo cão
senão o olho desse cão
que não existe
abocanhando
a mesma mão
OS PÁSSAROS
os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto
De Entre as Junturas dos Ossos (2006)
A MENINA
adotou a menina
deu-lhe o melhor comprou roupas
sapatos um anel um brinco
mas ela achou um vadio na vida
nem disse pai eu vou nem disse mãe
me deixa ela se perdeu nesse mundo
de Deus eu ainda procuro pergunto
outro dia disseram que ela estava
num bar de noite fui lá ninguém
nunca tinha ouvido falar nela
NATAL
a comida estava na mesa era dia de natal
a mãe com os olhos vermelhos servia o risoto
o pai comia mastigava depressa olhava para o prato
a gente sentia que o frango assado parecia
de pedra de tanto que não descia
pelas nossas gargantas
CINEMA
a televisão era da vizinhança o tio tinha o maior
orgulho dizia podem vir eu fico contente com a criançada
ele chegava do bar com os bolsos cheios ia distribuindo
as balas a gente pensava que estava num cinema de verdade
faltava só o pipoqueiro
De No Coração da Boca
(2006)
PÁSSAROS CONVULSOS
chocam-se contra os postes
os pássaros
destilados pela noite
destroçam-se em vôo inatural
batem contra os ossos
surdos
contra os batentes
que não escutam o sangue
jorrar no escuro
PARTIÇÃO
espio mãe depenando o pássaro
mão limpando asinhas pernas
corpo branco de bicho
ralo
a voz compondo uma canção
de cortes
na carne
da coisa por amor
escruto em partição de casca
e âmago
junto na pia as penas
indago o
montinho de alma
o bosquejo de vôo
o macio
do ex-bichinho
De Pássaros Convulsos (inédito em português)
CRÔNICA MILANESA
na catedral de Milão
às três da tarde sexta-feira santa
um Cristo estendido expira (de novo)
enquanto uma turista austríaca explica as técnicas da edificação
[ gótica das catedrais da idade média
a um bando sonolento de turistas
um pombo passeia pela nave e pousa no vitral incendiado pela
[ luz horizontal da tarde
e o padre se exalta e amaldiçoa (de novo)
Júlio César Pôncio Pilatos Herodes e todos os soldados
[ (romanos e austríacos)
amém
De Tempo de Doer (1998)
OS OLHOS DO PAI
o pai era triste como um abismo
olhava para mim
do fundo
a morte fabricava ali patas de cavalo
por isso sou lenta para amanhecer
e pesada
os olhos do pai são duas valas
a cidade é um microfone da sua alma
fico procurando serrotes para amanhecer
De Pedaços (1990)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007
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Vera Lúcia de Oliveira •
"Ferrolhos", "A Culpa", "Os Pássaros" In Entre
as Junturas dos Ossos Ministério da Educação,
Brasília, 2006
• "A Menina", "Natal", "Cinema" In No
Coração da Boca Escrituras, São Paulo, 2006 •
"Pássaros Convulsos", "Partição", "Crônica Milanesa",
"Os Olhos do Pai"
In A Chuva nos Ruídos
Escrituras, São Paulo, 2004 ______________ * Mario Quintana, "Prosódia",
in
Sapato Florido(1948)
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