Charles Baudelaire
Caros,
Publicado pela primeira
vez em 1861, na segunda edição da obra-prima
Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal),
do francês
Charles Baudelaire (1821-1867), o poema “L’Albatros” (“O Albatroz”), assim
como numerosos outros do mesmo volume, tornou-se um clássico da literatura
moderna e representa um sempre renovado desafio aos tradutores. Nesta edição, o
poesia.net enfileira o texto original e cinco traduções, uma
portuguesa e quatro brasileiras. É no mínimo interessante comparar as soluções
encontradas pelos tradutores com o trabalho original.
Neste célebre poema,
Baudelaire mostra como o albatroz, majestoso rei do azul, se reduz a motivo de
troça quando forçado a andar no convés de um navio. Torna-se um ser confuso e desajeitado
fora de seu elemento natural. As três primeiras estrofes do poema descrevem a
desdita da ave quando presa ao chão.
Na última estrofe, a condição do
gigante alado
compara-se à do poeta — que, no entender do escritor parisiense, é um
estrangeiro no mundo em que vive, solitário e incompreendido pela sociedade.
Assim como o albatroz, o poeta seria tratado com escárnio pelos seus
contemporâneos.
Embora Baudelaire seja
considerado o primeiro poeta moderno, essa ideia da incompreensão e da
hostilidade social revela-se tipicamente romântica. É como se o poeta-albatroz fosse um
“companheiro de viagem” dos homens comuns (os marujos), mas que se sente
“exilado” entre eles. Seu lugar de brilhar é nos altos espaços,
longe da “corja impura”.
O volume
As Flores do Mal abriu numerosas picadas para o desenvolvimento da
poesia moderna: a liberdade no tratamento dos temas; a ousadia de trazer para o
texto poético assuntos à época (e alguns até hoje) considerados tabus, como drogas, sexo, vampiros,
satanismo e morte; o mal-estar da vida nas grandes cidades. Não por acaso, o livro — publicado originalmente em 1857 e
depois ampliado em 1861 — foi alvo de censura e o poeta classificado como
“maldito”.
•o•
Apesar do realismo e da crueza de certos temas do livro — há, por exemplo, um poema chamado “Uma
carniça” e uma ladainha a Satã, que clama “Tem piedade, ó Satã, desta longa
miséria” —, “O Albatroz” é um texto idealista de matriz romântica. Aquele poeta
visto como um ser acima dos homens comuns caiu da nuvem no alto modernismo.
Não importa. Esses
quatro quartetos de versos alexandrinos formam uma das páginas
mais admiradas e repetidas da poesia moderna.
•o•
Passemos às traduções.
Aqui estão alinhadas versões para o português de cinco poetas, dois nascidos
ainda no século de Baudelaire e três no século XX. São eles o português Delfim
Guimarães (1872-1933) e os brasileiros Guilherme de Almeida (1890-1969),
Onestaldo de Pennafort (1902-1987), Jamil Almansur Haddad (1914-1988) e Ivan
Junqueira (1934-2014). (Veja, no final, mais informações sobre os tradutores.)
Delfim Guimarães, que
cronologicamente é o primeiro tradutor (sua versão é de 1909), introduz, logo na
primeira estrofe, informações que não estão nem no albatroz, a ave, nem no poema
de Baudelaire: “ave enorme e voraz”. Esse último adjetivo praticamente
transforma o albatroz numa águia, um perigoso predador dos mares. Na verdade, a
ave alimenta-se de peixes e crustáceos e, hoje, das 21 espécies catalogadas, 19
estão ameaçadas de extinção, devido à redução do estoque de peixes provocada
pela pesca predatória.
O quarto verso de
Guimarães apresenta um andamento pobre, indigno da maestria baudelairiana.
Primeiro, porque no original não há “voo triunfal” nem “carreira audaz”. Depois,
porque o tradutor enfileirou essas duas expressões pomposas e de estrutura idêntica
(substantivo+adjetivo) apenas para respeitar a métrica e a rima do verso
alexandrino.
A leitura do segundo
quarteto mostra claramente que Delfim Guimarães fez uma paráfrase e não uma
tradução do poema. O tradutor português é também o primeiro a fazer o albatroz
perder seu “nimbo” (nuvem), a fim de forçar uma rima para “cachimbo” — solução
também adotada, depois, por Guilherme de Almeida.
O primeiro verso do
último quarteto mostra que de fato, para Guimarães, o albatroz é uma “águia
marinha”. Sem dúvida — e aqui também pesam os mais de cem anos da
tradução —, o trabalho de Guimarães é o menos fiel ao original e o que apresenta
mais imperfeições poéticas.
•o•
O primeiro verso, na
tradução de Guilherme de Almeida, é perfeito e fiel ao original. Foi também a
mesmíssima solução adotada por Ivan Junqueira: “Às vezes, por prazer, os homens
da equipagem”. Corresponde bem ao original
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage.
A saída encontrada por Jamil Almansur Haddad é menos fluida. Em
lugar de “por prazer”, ele usa “por folgar”. Onestaldo prefere “em recreio”.
Todas são versões corretas, mas “por prazer” é mais direta, mais próxima de
pour s’amuser (para divertir-se).
•o•
Um detalhe interessante:
todos os tradutores citados trabalham sempre com o albatroz no singular.
Baudelaire, no entanto, fala em albatrozes, no plural, nos dois primeiros
quartetos. Só a partir da terceira quadra a ave é singularizada e depois comparada ao
poeta.
Para forçar uma rima
com "cachimbo", Haddad faz o albatroz cair num "limbo": “o alado viajor tomba como
num limbo”. Esse trecho, o primeiro verso da terceira estrofe, parece ser o mais
problemático para os tradutores. Guimarães e Guilherme recorreram ao “nimbo”;
Haddad desviou para um “limbo”. Mas o original é muito
mais simples e direto:
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
(Esse viajante alado,
como é desajeitado e apático!)
Haddad usa o termo
“escarcéu”
— alvoroço, gritaria
— que não parece comunicar a ideia original da
algazarra dos marujos fazendo troça com a ave marinha. A “corja impura” de
Guilherme e a “turba obscura” de Junqueira ficam mais próximas dessa ideia.
•o•
Na tradução de Ivan
Junqueira, surge uma expressão menos natural logo no quarto verso: “o navio a
singrar por glaucos patamares”. O original:
Le navire glissant sur les gouffres amers
(literalmente, “o navio que desliza sobre abismos amargos”). Os
glaucos (esverdeados, verde-azulados) patamares criam um momento de estranheza
que não existia no original.
Também as rimas desta
quadra, todas em a (agem, ares), são menos interessantes que as do original:
age, mers. Embora, reconheça-se, o tradutor tenha obtido, com o par
“mares/patamares”, efeito similar ao que existe entre mers (mares) e
amers
(amargos).
Junqueira saiu-se muito
bem na terceira estrofe, que representou um fundo abismo para Almeida e Haddad.
Em vez de forçar a rima com “cachimbo”, ele desviou para a fumaça e obteve um
resultado bem sonoro e mais espontâneo. Ficou perfeita a descrição das
brincadeiras dos marinheiros apoquentando o destronado rei do azul.
•o•
O último verso da
primeira estrofe também ofereceu boa dificuldade a Onestaldo de Pennafort. Sua
solução (“o navio que sobre o atro abismo caminha”) perde um pouco de
naturalidade com esse “atro” (sombrio, desastroso, triste) que ficou em lugar do
original amargo (amer). Também o navio empreende um movimento mais pobre: em vez de
deslizar, caminha.
Guilherme de Almeida
também usou o verbo “caminhar”, mas livre do adjetivo “atro”, colocando o abismo
no plural: “O navio que sobre os abismos caminha”. Assim, o resultado torna-se
mais sonoro.
Na segunda estrofe,
Pennafort obtém bom resultado na descrição do caminhar deselegante da ave no
convés. Mesmo assim, em
“como dois remos, põe-se
a arrastar a seu lado, / desajeitadamente, as asas colossais”
a expressão “a seu lado”
parece excessiva. Dá a impressão de que está ali só para garantir a rima com a
palavra “desconjuntado”.
A solução de Pennafort
para o alarido dos marinheiros foi “em meio ao riso e à vaia”, que funciona bem para
indicar a algazarra e o gracejo diante dos movimentos canhestros da ave.
•o•
Seria possível fazer
muitas outras observações comparativas a respeito das traduções, mas paro por
aqui. Se você tiver paciência
de se aprofundar nesse exercício, vai levantar muitos outros pontos. Divirta-se com esse poema que conquista a atenção de leitores do
mundo inteiro há mais de 150 anos.
Creio que seja útil
lembrar que estas leituras paralelas do original e das versões não têm a
intenção de mostrar quem fez melhor, quem fez pior. O objetivo é, antes,
estimular a leitura do poema-fonte em cotejo com suas traduções.
Repito aqui o que já
disse em outro boletim: as soluções mais ou menos felizes dos tradutores mostram
apenas que, na luta com as palavras, não há vencedor inequívoco. Sempre se ganha
um pouco aqui, perde-se outro tanto acolá. Felizes de nós, que apreciamos a boa
poesia, quando temos a rica oportunidade de comparar cinco versões de um mesmo
poema. Agradeçamos, portanto, aos tradutores que nos proporcionaram essa
experiência. Veja, abaixo, uma breve informação sobre cada um dos tradutores
aqui citados.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
OS TRADUTORES
Delfim Guimarães (Porto,
1872-Amadora, 1933). Poeta, ensaísta e editor português. Publicou uma tradução
de As Flores do Mal, de Baudelaire, em 1909.
Guilherme de Almeida (Campinas, 1890-São Paulo, 1969).
Advogado, jornalista, poeta e tradutor. Traduziu 21 poemas de As
Flores do Mal e publicou-os no volume Flores das Flores do Mal.
Onestaldo de Pennafort (Rio de Janeiro, 1902-idem, 1987). Poeta, jornalista
e tradutor. A ele Carlos Drummond de Andrade dedicou o poema "Dentaduras
Duplas", do livro Sentimento do Mundo (1940).
Jamil Almansur Haddad (São Paulo, 1914-idem, 1988). Médico,
foi também crítico e ensaísta. Traduziu o volume completo de As Flores do Mal, assim como o bíblico
Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão.
Ivan Junqueira
(Rio de Janeiro, 1934-idem, 2014). Poeta, jornalista, editor, ensaísta e tradutor. Verteu
para o português As Flores do Mal, de Baudelaire, além de poemas de
T.S. Eliot, Dylan Thomas e outros.
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O albatroz
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Charles Baudelaire
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Tradução: Delfim Guimarães, Guilherme de Almeida, Onestaldo de
Pennafort, Jamil Almansur Haddad, Ivan Junqueira |
l
Charles Baudelaire
L' ALBATROS
Souvent, pour s'amuser, les hommes
d'équipage Prennent
des albatros, vastes oiseaux des mers, Qui suivent, indolents compagnons
de voyage, Le navire glissant sur les gouffres amers.
A peine les
ont-ils déposés sur les planches, Que ces rois de l'azur, maladroits et
honteux, Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches Comme des
avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche
et veule! Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid! L'un agace
son bec avec un brûle-gueule, L'autre mime, en boitant, l'infirme qui
volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées Qui hante la
tempête et se rit de l'archer; Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
l
Guilherme de Almeida
O ALBATROZ
Às vezes, por prazer, os homens de equipagem Pegam um albatroz, enorme
ave marinha, Que segue, companheiro indolente de viagem, O navio que
sobre os abismos caminha.
Mal o põem no convés por sobre as pranchas
rasas, Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado, Deixa
doridamente as grandes e alvas asas Como remos cair e arrastar-se a seu
lado.
Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo! Ave tão bela,
como está cômica e feia! Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!
O poeta é semelhante
ao príncipe da altura Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura, As asas de gigante impedem-no de
andar.
l
Jamil Almansur Haddad
O ALBATROZ
Às vezes, por folgar, os homens da equipagem Pegam de um albatroz, enorme
ave do mar, Que segue — companheiro indolente de viagem —
O navio no abismo amargo a deslizar.
E por sobre o convés, mal
estendido apenas, O imperador do azul, canhestro e envergonhado, Asas
que enchem de dó, grandes e de alvas penas, Eis que deixa arrastar como
remos ao lado.
O alado viajor tomba como num limbo! Hoje é cômico
e feio, ontem tanto agradava! Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!
O Poeta é semelhante ao
príncipe do céu Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar; Exilado na
terra e em meio do escarcéu, As asas de gigante impedem-no de andar.
l
Ivan Junqueira
O ALBATROZ
Às vezes, por
prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa
ave dos mares, Que acompanha,
indolente parceiro de viagem, O
navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas
do convés, O monarca do azul,
canhestro e envergonhado, Deixa
pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na
desgraça Esse viajante agora
flácido e acanhado! Um, com o
cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da
altura Que enfrenta os
vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
l
Onestaldo de Pennafort
O ALBATROZ
Às vezes, em recreio, os homens da equipagem pegam um albatroz,
enorme ave marinha que segue, companheiro indolente de viagem, o navio
que sobre o atro abismo caminha.
Mal no convés se vê, todo
desconjuntado, logo esse rei do azul, em passos desiguais, como dois
remos, põe-se a arrastar a seu lado, desajeitadamente, as asas colossais.
Esse alado viajor, como é grotesco andando! Ei-lo horrível e inerme,
ele que antes pairava! Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando, arremeda
no andar o pobre que voava!
O poeta é o albatroz que nas nuvens se
espraia, que ri dos vendavais e afronta as setas, no ar; exilado no solo, em meio ao riso e
à vaia, suas asas de gigante impedem-no de andar.
l
Delfim Guimarães
O ALBATROZ
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem Na caça do albatroz, ave
enorme e voraz, Que segue pelo azul a embarcação em viagem, Num vôo
triunfal, numa carreira audaz.
Mas quando o albatroz se vê preso,
estendido Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado! Que pena que
ele faz, humilde e constrangido, As asas imperiais caídas para o lado!
Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo! Era grande e
gentil, ei-lo o grotesco verme!... Chega-lhe um ao bico o fogo do
cachimbo, Mutila um outro a pata ao voador inerme.
O Poeta é
semelhante a essa águia marinha Que desdenha da seta, e afronta os
vendavais; Exilado na terra, entre a plebe escarninha, Não o deixam
andar as asas colossais!
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