Vinicius de Moraes
Caros amigos,
Neste 12 de dezembro de 2013, o boletim poesia.net completa
seu décimo primeiro ano de circulação e — redonda coincidência! —
chega ao número 300.
Durante estes onze anos,
passaram por aqui centenas de poetas, artistas que, com a magia da
palavra reinventada, enriquecem a breve aventura do ser humano, esse bicho da
terra tão pequeno.
Ergamos todos um brinde virtual ao poesia.net
!
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Para manter o clima de aniversário, esta edição é dedicada ao
carioca Vinicius de Moraes (1913-1980), que este ano completaria um século de
vida. Poeta, cronista e letrista de canção popular dos mais inspirados, Vinicius
é uma de nossas grandes referências culturais.
Bastaria que ele tivesse
escrito, por exemplo, o poema “A Rosa de Hiroxima”, e já lhe deveríamos muito.
Ou então que compusesse os seus magistrais sonetos de amor, nos quais a malícia
carioca do século XX se mescla ao clássico engenho camoniano.
Ou, ainda,
se tivesse composto letras do cancioneiro popular, como aquelas dos
“Afro-sambas” (com Baden-Powell), a celebração hedônica de “Tarde em Itapuã”
(com Toquinho) ou mesmo a icônica “Garota de Ipanema” (com Tom Jobim), uma das
canções mais conhecidas em todo o mundo.
Graças à feliz combinação de
letra e música, “Chega de saudade” (Jobim-Vinicius), um dos marcos iniciais da
bossa-nova, é reconhecida como um dos hinos mais apreciados do cancioneiro
popular brasileiro.
E o poeta Vinicius de Moraes não fez somente uma
dessas coisas. Fez todas elas.
•o•
Esta, evidentemente, não é a primeira vez que Vinicius de
Moraes se faz presente neste jornal digital. Ele já esteve aqui numa edição bem
dos primórdios, a
n. 12, de 2003. Esteve também na edição
n. 240, de 2007. Agora ele volta, no ano de seu centenário.
Para
este boletim, escolhi um punhado de poemas de Vinicius que revelam facetas do
poeta não exploradas nas duas edições anteriores do poesia.net a ele
dedicadas.
O Palácio Capanema, no Rio
O primeiro texto da pequena
antologia viniciana ao lado é “Azul e Branco”, poema de talhe vanguardista
escrito como uma homenagem ao prédio do Ministério da Educação (atual Palácio
Gustavo Capanema), no Rio de Janeiro.
Construído entre 1937 e 1945, o
edifício teve o primeiro acabamento externo em 1942. Em dezembro desse ano, o
poema de Vinicius foi publicado pela primeira vez no jornal carioca A Manhã.
O prédio — projeto de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Reidy e
Burle Marx, com base em ideias de Le Corbusier — é um marco estético
mundial e referência inaugural do modernismo arquitetônico no Brasil. No poema
“Azul e Branco”, Vinicius vê a construção como uma peça musical: “Massas
geométricas / Em pautas de música / Plástica e silêncio / Do espaço criado”.
Na última parte, o poema desenha o edifício na página. O verso “Azul...
Azul...” pode ser entendido como o céu. Mas na verdade representa as duas caixas
d’água azuis localizadas no topo do prédio (veja foto). Vêm em seguida
as linhas “Azul e Branco”, repetidas catorze vezes — exatamente o número
de andares da obra homenageada.
E, por fim, o refrão que perpassa todo o
poema: “Concha... / e cavalo-marinho”. Nesta última vez, porém, o refrão se
reparte em dois versos. Aos pés do edifício, a praia; e, abaixo dela, o reino do
cavalo-marinho. Vale ressaltar que, nos anos 40, havia poucas outras edificações
ao redor, de modo que o mar parecia mais próximo.
O poema seguinte, “O Tempo nos Parques”, é uma reflexão sobre o modo
peculiar como o tempo é percebido num ambiente de aconchego natural, como os
parques. Seguem-se três sonetos, forma poética na qual Vinicius exibe grande
desenvoltura. Destaque para o poeta brincalhão em “Não comerei da alface a verde
pétala”. Aí, gastronomicamente incorreto, ele se rebela contra as saladas.
Deixei para o fim as deliciosas quadras de “A Última Viagem de Jayme
Ovalle”. Compositor, amigo de Vinicius e Manuel Bandeira, o paraense Ovalle
(1894-1955) foi uma figura interessantíssima que circulou nos meios artísticos
cariocas da primeira metade do século passado. O poema de Vinicius mostra um
Ovalle engraçado e original até depois de morto.
•o•
Vinicius é talvez nosso caso mais eloquente de escritor
que trafegou com igual competência na poesia de dicção elevada e nas letras de
música popular. No
boletim anterior, afirmei meu ponto de vista de que esses dois tipos de
criação constituem duas artes diferentes.
Creio que a própria biografia
do autor de “Azul e Branco” e de “Garota de Ipanema” mostra a separação entre a
poesia e o texto de canção popular. Quanto mais ele se dedica à letra de música,
menos escreve poesia. Para mim, isso só confirma a diferença entre as duas
artes.
•o•
É preciso destacar aqui um ponto fundamental associado a
Vinicius de Moraes. Ao contrário de outros herdeiros de autores famosos, os do
poeta carioca vêm prestando elogiável serviço à sociedade por meio do site
Viniciusdemoraes.com.br.
Lá o visitante encontra, numa organização
fácil e caprichada, vasta antologia dos trabalhos dele como poeta, cronista e
letrista de música popular. Há também informações sobre os principais parceiros
e amigos de Vinicius, além de sua biografia, fotos e tudo mais. Enfim, um site
como o poeta merece. E como os brasileiros, que leem e cantam Vinicius, também
merecemos.
Um abraço, e viva Vinicius.
Carlos Machado
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Vinicius, 100; poesia.net,
11
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Vinicius de Moraes
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Wassily Kandinsky (1886–1944), russo, Harmonia Tranquila
AZUL E BRANCO *
Concha e Cavalo-Marinho
Mote de Pedro Nava
I
Massas geométricas Em pautas de música Plástica e silêncio
Do espaço criado.
Concha e cavalo-marinho.
Vênus anadiômena
Multípede e alada Os seios azuis Dando leite à tarde Viu-vos
Eupalinos No espelho convexo Da gota que o orvalho Escorreu da
noite Nos lábios da aurora.
Concha e cavalo-marinho.
Pálpebras cerradas Ao poder violeta Sombras projetadas Em
mansuetude Sublime colóquio Da forma com a eternidade.
Concha e
cavalo-marinho.
II
Na verde espessura Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.
Da cal das conchas Do sumo das algas Da
vida dos polvos Sobre tentáculos Do amor dos pólipos Que
estratifica abóbadas Da ávida mucosa Das rubras anêmonas Que
argamassa peixes Da salgada célula De estranha substância Que dá
peso ao mar.
Concha e cavalo-marinho.
Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos Que o raio de luz Cortando transforma Em claves
de sol E o amor do infinito Retifica cm hastes Antenas paralelas
Propícias à eterna Incursão da música.
Concha e cavalo-marinho.
III
Azul... Azul...
Azul e Branco Azul e
Branco Azul e Branco Azul e Branco Azul e Branco Azul e Branco
Azul e Branco Azul e Branco Azul e Branco Azul e Branco Azul e
Branco Azul e Branco Azul e Branco Azul e Branco
Concha...
e cavalo-marinho.
* Poema em louvor do edifício do Ministério
da Educação.
Wassily Kandinsky, Ponto Vermelho II (1921)
O TEMPO NOS PARQUES
O tempo nos parques é
íntimo, inadiável, imparticipante, imarcescível. Medita nas altas
frondes, na última palma da palmeira Na grande pedra intacta, o tempo nos
parques. O tempo nos parques cisma no olhar cego dos lagos Dorme nas
furnas, isola-se nos quiosques Oculta-se no torso muscular dos fícus, o
tempo nos parques. O tempo nos parques gera o silêncio do piar do
pássaros Do passar dos passos, da cor que se move ao longo. É alto,
antigo, presciente o tempo nos parques É incorruptível; o prenúncio de
uma aragem A agonia de uma folha, o abrir-se de uma flor Deixam um
frêmito no espaço do tempo nos parques. O tempo nos parques envolve de
redomas invisíveis Os que se amam; eterniza os anseios, petrifica Os
gestos, anestesia os sonhos, o tempo nos parques. Nos homens dormentes,
nas pontes que fogem, na franja Dos chorões, na cúpula azul o tempo
perdura Nos parques; e a pequenina cutia surpreende A imobilidade
anterior desse tempo no mundo Porque imóvel, elementar, autêntico,
profundo É o tempo nos parques.
Wassily Kandinsky, Grade Negra (1922)
SONETO DE ANIVERSÁRIO
Passem-se dias, horas, meses, anos Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura À medida que a têmpora
embranquece E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi:
amiga minha, esquece... Que grande é este amor meu de criatura Que vê
envelhecer e não envelhece.
Rio, 1942
Wassily Kandinsky, Amarelo, Vermelho e Azul (c. 1925)
SONETO DO GATO MORTO
Um gato vivo é qualquer coisa linda Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda As selvas sinuosas da saudade
De
ter sido feroz. À sua vinda Altas correntes de eletricidade Rompem do
ar as lâminas em cinza Numa silenciosa tempestade
Por isso ele
está sempre a rir de cada Um de nós, e ao morrer perde o veludo Fica
torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo Que um gato morto.
Florença,
novembro, 1963
Wassily Kandinsky, Curva Dominante (1936)
A ÚLTIMA VIAGEM DE JAYME OVALLE
Ovalle
não queria a Morte Mas era dele tão querida Que o amor da Morte foi
mais forte Que o amor do Ovalle à vida.
E foi assim que a Morte,
um dia Levou-o em bela carruagem A viajar — ah, que alegria! Ovalle
sempre adora viagem!
Foram por montes e por vales E tanto a Morte
se aprazia Que fosse o mundo só de Ovalles E nunca mais ninguém
morria.
A cada vez que a Morte, a sério Com cicerônica prestança
Mostrava a Ovalle um cemitério Ele apontava uma criança.
A Morte,
em Londres e Paris Levou-o à forca e à guilhotina Porém em Roma,
Ovalle quis Tomar a sua canjebrina.
Mostrou-lhe a Morte as
catacumbas E suas ósseas prateleiras Mas riu-se muito, tais zabumbas
Fazia Ovalle nas caveiras.
Mais tarde, Ovalle satisfeito Declara à
Morte, ambos de porre: — Quero enterrar-me, que é um direito
Inalienável de quem morre!
Custou-lhe esforço sobre-humano Chegar
à última morada De vez que a Morte, a todo pano Queria dar uma
esticada.
Diz o guardião do campo-santo Que, noite alta, ainda se
ouvia A voz da Morte, um tanto ou quanto Que ria, ria, ria, ria...
Wassily Kandinsky, Composição IX (1936)
NÃO COMEREI DA ALFACE A VERDE PÉTALA
Não comerei da
alface a verde pétala Nem da cenoura as hóstias desbotadas Deixarei as
pastagens às manadas E a quem mais aprouver fazer dieta.
Cajus hei
de chupar, mangas-espadas Talvez pouco elegantes para um poeta Mas
peras e maçãs, deixo-as ao esteta Que acredita no cromo das saladas.
Não nasci ruminante como os bois Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; deem-me feijão com arroz
E um bife, e um queijo forte, e
parati E eu morrerei, feliz, do coração De ter vivido sem comer em
vão.
Los Angeles, 1947
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