Número 314 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 2014

poesia.net header

«Amor é compromisso / com algo mais terrível do que amor?» (Carlos Drummond de Andrade) *

facebook 

Rainer Maria Rilke
Rainer Maria Rilke

 

Caros,

Nesta edição, estou reprisando o poesia.net n. 50, de 2003, com alguns acréscimos de informações. O poeta em foco é o tcheco de língua alemã Rainer Maria Rilke. Para quem não leu o boletim original, este vale como o primeiro. E para quem leu, sempre faz bem revisitar um poeta como Rilke.


Há o Rilke das soberbas "Elegias de Duíno", que influenciaram meio mundo de poetas. Ali, são longos cantos, de longos versos derramados, marcados por um tom abertamente metafísico. Mas há também outro Rilke, de um lirismo mais pé-no-chão. Essa é a faceta do poeta que destacamos neste boletim.

Nascido em Praga, na Boêmia, hoje República Tcheca, Rainer Maria Rilke (1875-1926) inclui-se entre os mais altos nomes da poesia no século XX e certamente o mais alto em língua alemã.

Rilke estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Publicou seu primeiro livro, Leben und Lieder (Vida e Canções) em 1894. Um dado curioso: durante toda a vida, o poeta não exerceu nenhuma profissão. Viveu sempre à custa de amigos nobres.

Publicadas em 1923, suas famosas Elegias de Duíno, por exemplo, foram parcialmente escritas no  Castelo de Duíno, na região de Trieste, Itália, onde ele morou por dois anos antes de Primeira Guerra Mundial. Lá, era convidado da princesa Maria von Thurn und Taxis.
Agradecido, o poeta dedicou as elegias à protetora.

Durante largo período, a faceta metafísica da poesia de Rilke determinou uma verdadeira cisão entre poetas. De um lado, postava-se uma enorme legião de influenciados pelos versos rilkeanos — nomeadamente, no Brasil, os poetas da chamada Geração de 45. De outro, os poetas de esquerda, que consideravam aquilo uma completa alienação. Pablo Neruda, no Canto Geral (1950), inclui Rilke entre os "falsos bruxos existenciais" e os "misterizantes".

Augusto de Campos conta que também os poetas concretos, por outras razões, puseram Rilke na geladeira. Depois, houve uma reconciliação.
Tanto que os poemas mostrados neste boletim são todos traduzidos por Augusto de Campos. O poeta concreto, naturalmente, prefere os "poemas-coisa" — expressão do próprio Rilke, Dinggedichte —, versos em que se destaca um discurso mais colado à realidade.

Aqui vão três desses poemas: "A Pantera", "Dançarina Espanhola" e "O Poeta", todos integrantes do livro Novos Poemas, de 1907.  Nos dois primeiros, a palavra poética de Rilke se mostra em toda a sua precisão e expressividade. No último, "O Poeta", a mesma precisão serve a um lirismo mais confessional.

Também merecem destaque, entre as numerosas traduções de Rilke para o português, os trabalhos de Dora Ferreira da Silva (Elegias de Duíno, Ed. Globo, 2001) e de José Paulo Paes (Poemas, Cia. das Letras, 1993).

•o•

Alguns fatos biográficos de Rilke. Seus pais eram tchecos e católicos de língua alemã. Grávida dele, a mãe queria uma menina. Como seu desejo não foi satisfeito, batizou o filho único como René Maria (nome feminino, depois mudado por Rilke para Rainer) e tratou-o na primeira infância como se fosse uma garota.


"Tive de usar roupas muito bonitas e fui criado até o período escolar como uma menininha; creio que minha mãe brincava comigo como se eu fosse uma grande boneca". De fato, há retratos do pequeno Rilke, de cabelos longos, vestido como uma menina. Já adulto, com quase 30 anos, ele conta que via a mãe apenas ocasionalmente. Mas "cada encontro é uma espécie de recaída".


Rilke casou-se em 1901, mas percebeu que não se ajustava à vida doméstica e logo se afastou da esposa e da filha pequena. Vivia a "vida de poeta", com numerosas amantes, confidentes e protetoras.


Em 1902 o poeta muda-se para Paris, onde trabalha como secretário do escultor Auguste Rodin. Este exerceu grande influência sobre Rilke, que passou a buscar os poemas-coisa. Ele próprio queria "ser uma pessoa real entre coisas reais". São dessa época (1907-1908) poemas como o soberbo "A Pantera".


Antes da Primeira Guerra Mundial, Rilke morou durante dois anos no magnífico Castelo de Duíno, na Itália, a convite da princesa Maria von Thurn und Taxis, uma protetora. Nesse período, ele começou a escrever as célebres Elegias de Duíno, que seriam publicadas em 1923 e dedicadas à princesa Thurn und Taxis.  Em 1914, ele já residia em Munique, onde permaneceu até o fim do conflito. Depois, mudou-se para a Suíça, sua última pátria de adoção.

•o•


Rilke morreu em 1926 e deixou escrito seu próprio epitáfio:

Rosa, ó pura contradição, volúpia
de ser o sono de ninguém sob  
                             [ tantas
pálpebras.

Rose, oh reiner Widerspruch, Lust,
Niemandes Schlaf zu sein unter 
                             [ soviel
Lidern
.

Esses três versos fazem referência ao fato de o poeta ter-se ferido num espinho de rosa, o que agravou seu estado de saúde, pois já vinha sofrendo de leucemia.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



                    

                           •o•

 


A chama viva do flamenco (2)

Rainer Maria Rilke

 

 

 

Dançarina em vermelho e branco - Fabian Perez
Fabian Pérez, espanhol, Dançarina em Vermelho e Branco  

 

 

DANÇARINA ESPANHOLA


Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.



Pantera
 



A PANTERA

                  (No Jardin des Plantes, Paris)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.




Castelo de Duino

Vista atual do Castelo de Duíno, no norte da Itália, onde Rilke começou a escrever as famosas Elegias de Duíno, publicadas em 1923



O POETA

Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.




poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014





Poemas extraídos de:
•  Augusto de Campos
    Coisas e Anjos de Rilke
   
Ed. Perspectiva, São Paulo, 2001
______________
* Carlos Drummond de Andrade, "Mineração do Outro", in Lição de Coisas (1964)

______________
Foto do Castelo de Duíno: "Castello di Duino 0904" by Aconcagua (talk) - Own work. Licensed under Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 via Wikimedia Commons.