Rainer Maria Rilke
Caros,
Nesta edição, estou reprisando o poesia.net n. 50, de
2003, com
alguns acréscimos de informações. O poeta em foco é o tcheco de língua alemã
Rainer Maria Rilke. Para quem não leu o boletim original, este vale como o
primeiro. E para quem leu, sempre faz bem revisitar um poeta como
Rilke.
Há o Rilke das soberbas "Elegias de Duíno", que influenciaram meio mundo de
poetas. Ali, são longos cantos, de longos versos derramados, marcados por um tom
abertamente metafísico. Mas há
também outro Rilke, de um lirismo mais pé-no-chão. Essa é a faceta do poeta que
destacamos neste boletim.
Nascido em Praga, na Boêmia, hoje
República Tcheca, Rainer Maria Rilke (1875-1926) inclui-se entre os
mais altos nomes da poesia no século XX e certamente o mais alto em língua
alemã.
Rilke estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim.
Publicou seu primeiro livro, Leben und Lieder (Vida e Canções) em 1894.
Um dado curioso: durante toda a vida, o poeta não exerceu nenhuma profissão.
Viveu sempre à custa de amigos nobres.
Publicadas em 1923, suas famosas
Elegias de Duíno, por exemplo, foram parcialmente escritas no
Castelo de Duíno, na região de Trieste, Itália, onde ele morou por dois anos
antes de Primeira Guerra Mundial. Lá, era convidado da princesa Maria von Thurn
und Taxis. Agradecido, o poeta dedicou as elegias à protetora.
Durante largo período, a faceta metafísica da poesia de Rilke determinou uma
verdadeira cisão entre poetas. De um lado, postava-se uma enorme legião de
influenciados pelos versos rilkeanos — nomeadamente, no Brasil, os poetas da
chamada Geração de 45. De outro, os poetas de esquerda, que consideravam aquilo
uma completa alienação. Pablo Neruda, no Canto Geral (1950), inclui Rilke
entre os "falsos bruxos existenciais" e os "misterizantes".
Augusto de Campos conta que também os poetas concretos, por outras razões,
puseram Rilke na geladeira. Depois, houve uma reconciliação.
Tanto que os poemas mostrados neste boletim são todos
traduzidos por Augusto de Campos. O poeta concreto, naturalmente, prefere os
"poemas-coisa" — expressão do próprio Rilke, Dinggedichte —, versos em que
se destaca um discurso mais colado à realidade.
Aqui vão três desses poemas: "A Pantera", "Dançarina Espanhola" e "O Poeta",
todos integrantes do livro Novos Poemas, de 1907. Nos dois primeiros, a
palavra poética de Rilke se mostra em toda a sua precisão e expressividade. No
último, "O Poeta", a mesma precisão serve a um lirismo mais confessional.
Também merecem destaque, entre as numerosas traduções de Rilke para o português,
os trabalhos de Dora Ferreira da Silva (Elegias de Duíno, Ed. Globo,
2001) e de José Paulo Paes (Poemas, Cia. das Letras, 1993).
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Alguns fatos biográficos de Rilke. Seus pais eram tchecos e católicos de
língua alemã. Grávida dele, a mãe queria uma menina. Como seu desejo não foi
satisfeito, batizou o filho único como René Maria (nome feminino, depois mudado por Rilke para
Rainer) e tratou-o na primeira infância como se fosse uma garota.
"Tive
de usar roupas muito bonitas e fui criado até o período escolar como uma
menininha; creio que minha mãe brincava comigo como se eu fosse uma grande
boneca". De fato, há retratos do pequeno Rilke, de cabelos
longos, vestido como uma menina. Já adulto, com quase 30 anos, ele conta que via a mãe apenas ocasionalmente. Mas "cada encontro é uma espécie de recaída".
Rilke
casou-se em 1901, mas percebeu que não se ajustava à vida
doméstica e logo se afastou da esposa e da filha pequena. Vivia a "vida de
poeta", com numerosas amantes, confidentes e protetoras.
Em 1902 o poeta
muda-se para Paris, onde trabalha como secretário do escultor Auguste Rodin. Este
exerceu grande influência sobre Rilke, que passou a buscar os poemas-coisa. Ele
próprio queria "ser uma pessoa real entre coisas reais". São dessa época (1907-1908) poemas como o soberbo "A Pantera".
Antes da Primeira Guerra Mundial, Rilke morou durante dois anos no
magnífico
Castelo de Duíno, na Itália, a convite da princesa Maria von Thurn und Taxis,
uma protetora. Nesse período, ele começou a escrever as célebres Elegias de
Duíno, que seriam publicadas em 1923 e dedicadas à princesa Thurn und Taxis. Em 1914, ele já residia em Munique, onde permaneceu até o fim do
conflito. Depois, mudou-se para a Suíça, sua última pátria de adoção.
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Rilke morreu em 1926 e deixou escrito seu próprio epitáfio:
Rosa, ó pura
contradição, volúpia de ser o sono de ninguém sob
[ tantas pálpebras.
Rose, oh reiner Widerspruch, Lust, Niemandes Schlaf zu sein unter
[ soviel Lidern.
Esses três versos fazem referência ao fato de o poeta ter-se ferido num espinho
de rosa, o que agravou seu estado de saúde, pois já vinha sofrendo de leucemia.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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A chama viva do flamenco (2)
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Rainer Maria Rilke
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Fabian Pérez, espanhol, Dançarina em
Vermelho e Branco
DANÇARINA ESPANHOLA
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.
A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
Vista atual do Castelo de Duíno, no norte da
Itália, onde Rilke começou a escrever as famosas Elegias de Duíno,
publicadas em 1923
O POETA
Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?
Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.
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