Número 313 - Ano 12 |
São Paulo, quarta-feira, 9 de
julho de 2014 |
«A paixão é como vinho /
Passada a embriaguez / Resta um co(r)po vazio» (Myriam
Fraga) *
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Ronaldo Costa Fernandes
Caros,
O poeta maranhense Ronaldo Costa Fernandes é um nome que já tem história
no poesia.net. Se vocês visitarem o índice do boletim, vão encontrá-lo
na
edição n. 126, de 2005, e também na
edição 263, de 2009. Esta é, portanto, a terceira vez que esse autor —
também romancista, contista e ensaísta — nos concede o privilégio de
desfrutar um pouco de sua poesia.
Ronaldo Costa Fernandes é maranhense
criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília. Doutor em literatura pela UnB,
escreveu em prosa os romances O Viúvo (2005) e Um Homem é Muito
Pouco (2010), a coleção de contos Manual de Tortura (2007) e o
ensaio A Ideologia do Personagem Brasileiro (2007).
Como poeta,
Costa Fernandes estreou com o volume Urbe, de 1975, hoje renegado.
Desse modo, sua estreia efetiva ficou para o livro Estrangeiro,
publicado em 1997. Vieram em seguida Terratreme (1998), Andarilho
(2000), Eterno Passageiro (2004), A Máquina das Mãos (2009) e
Memória dos Porcos (2012). Este último livro é o centro das atenções
neste boletim.
Ao tratar da coletânea que o poeta lançou em 2009,
destaquei que sua criação lírica sempre observa pessoas e coisas e perquire
sobre aspectos menos iluminados do cotidiano. São indagações que que não têm
medo de cutucar o mal-estar, como tende a fazer toda grande poesia. Essa linha
geral persiste em Memória dos Porcos.
O poema “Espiral dos
Caminhos” propõe que “Deus deveria ter um caderno / de caligrafia para melhorar
a letra”. É justo: afinal, os incompreensíveis manuscritos do Criador definem
“caminhos espiralados” e “retas que não levam à lucidez”. Quem não gostaria de
ter pela frente apenas trajetórias retas, previsíveis e seguras?
Em “O
Tempo na Lapela” opera-se uma prodigiosa transformação: “um pedaço de tempo /
feito floco de neve” cai na lapela do narrador. Preocupado, ele vê o floco
agigantar-se até tomar-lhe o corpo inteiro e ameaçar os guardados da memória. A
fábula mostra o quanto somos criaturas submetidas à noção de tempo.
Em “Esconderijo” o poeta brinca de esconde-esconde com certas imperfeições
humanas. As pessoas ocultam a tristeza, as lágrimas, as emoções. Na verdade,
escondem-se de si mesmas, recusando-se a encarar as verdades reveladas pelo
espelho.
No texto “O Homem Olha o Mondego”, escrito em Coimbra, o poeta
percebe: “Meu corpo está cheio de rios”, a começar pelos que são mais antigos
para ele, Bacanga e Anil, que banham São Luís do Maranhão. Rios de água, que
correm no chão; rios linfáticos caminhando por dentro do corpo. “O pior rio é o
da mente / que flui sem margens”, decide o poeta.
Dedico um olhar
especial aos poemas “Criminalidade” e “O último pio”. No primeiro, o poeta
reflete sobre como, a cada dia, vamos cometendo assaltos à mão armada contra nós
mesmos, e surripiando nossa velha carteira recheada de sonhos. “Cada dia sou
menos”, declara o criminoso — que não é outro senão cada um de nós.
Vem, por fim, o poema “O Último Pio”. Aqui, no ambiente doméstico,
encontra-se um tio que se refugiou “na gaiola da infância”. Observem os versos:
“Desce daí da memória, / a gente pedia / e meu tio insistia / em cantar sabiá /
entre as grades finas da tristeza”. Ao contrário de lamentar o destino do tio
que falava a língua dos pássaros, o sobrinho, que é o dono da voz no texto,
encontra nele uma inspiração para os dias de tristeza.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Na gaiola da solidão
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Ronaldo Costa Fernandes
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Beatriz Milhazes, brasileira, Pierrot e Colombina
ESPIRAL DOS CAMINHOS
Haveria um santo
dos caminhos que fizesse reto o que Deus gosta de entortar. Deus
deveria ter um caderno de caligrafia para melhorar a letra. Os
caminhos que são linhas tortas corrompem a emoção. O peso dos outros é
sempre desigual, inumano e cheira a culpa. Os caminhos emanam cheiro
de futuro. O ódio, o amor, o riso. Tudo tem seu cheiro e sua medida.
Um metro de ódio, uma dose de amor, uma talagada de riso. Aqui
estão os caminhos espiralados, os caminhos sem chão, as retas que não
levam à lucidez.
O TEMPO NA LAPELA
Certa vez um pedaço
de tempo feito floco de neve — fiapo de algodão doce que se desfaz
à lambida do toque — caiu no meu casaco e não se dissolveu. Permaneci
com o tempo na lapela. Me dei conta de que o pedaço de tempo —
corrosivo e nada friável — que carregava na lapela em vez de
desaparecer insistia em crescer até me tomar o corpo todo como o
reconhecimento do erro que é uma febre que não cede ou a lembrança
incômoda, cão que nos segue e ameaça nos morder a memória.
Beatriz Milhazes, Obra Grande
CERA DA MANHÃ
Eis que a mãe surge pela manhã. Traz o tempo
nas veias. Sentada e imóvel, ela é a melhor fotografia
tridimensional de si própria. Tem medo de que quem esteja ali sentada
seja inflamável por ser uma cópia de cera.
A mãe o chama e se
incandesce. É conversa que se consome e bruxuleia, ora pavio
lúcido, ora a cera do esquecimento. Tem medo de que ela se esqueça
dele e, assim, ceráceo e ardente, enrijecerá a infância, serão últimos
os primeiros passos e morrerá vivo na memória da mãe que o perdeu
dentro de seu labirinto feito de museu e cera.
ESPELHO APÓS A MORTE
Quando morrer, não verei mais o vaso de louça andaluz
da varanda, mas ele continuará lá.
Quando morrer, não mais
ouvirei o canto verde dos periquitos mas eles continuarão a voar e
amanhecer a manhã verde.
Quando morrer, não mais me verei ao
espelho, mas ele continuará lá porque haverá outros rostos para
terem a ilusão de que vivem.
Beatriz Milhazes, Obra
O HOMEM OLHA O MONDEGO
Alguns rios me banham: Bacanga e Anil. Meu corpo está cheio de rios:
minhas veias são rios vermelhos que desembocam no mar do meu coração.
Os rios se instalam em mim em mim me danam, lanhando por dentro meu
corpo, linfáticos e cheio de incertezas, onde habitam passado e
história, dor e escuridão. Há rios em mim que desconheço sua foz, sua
embocadura, de onde nascem, para onde vão. O pior rio é o da mente
que flui sem margens, desordenado e com várias águas, águas desiguais
e turvas. Há rios em mim que nunca supus ter. Meu pensamento é um rio
seco mas pleno de correnteza e afogamento.
Coimbra, 18.10.2009
ESCONDERIJO
Esconde bem tuas lágrimas. Os homens
desprezam os fracos. Esconde bem tua emoção. Os homens respeitam
os fortes. Esconde bem tua tristeza. O mundo evita os melancólicos.
Esconde bem a ti mesmo. Os homens não gostam de se ver.
Beatriz Milhazes, Ova
CRIMINALIDADE
Sei que me roubo. Sei que me furto. Sei também
quando me rendo. Todo dia me assalto à luz do dia e da vida. Roubo
vários sentimentos mas o assalto que ofereço à mão armada nenhum
ladrão de mim me leva: o passado que pesa como carteira cheia.
Rufla em mim o tambor com seis balas. No horizonte, cavalos sem
olhos habitam as cocheiras do tempo. Vítima de mim mesmo não quero
comiseração, cada dia sou menos, não há cofre, nem chave, estou à
mercê do gatilho que disparo ao acordar: o sumiço do sonho.
O ÚLTIMO PIO
Um dia meu tio inventou de morar no sótão
do pensamento lá dele. E se refugiou menino na memória cheia de pios
em que vivia na gaiola da infância. Desce daí da memória, a gente
pedia e meu tio insistia em cantar sabiá entre as grades finas da
tristeza. Até que voou para onde não há canto ou asa e tudo é gaiola
vazia. Quando ando triste subo ao galho mais alto da insensatez
e tento cantar em linguagem de pássaro. Rejeito o alpiste da razão
— miúdo e aglomerado — este que se dá aos melancólicos engaiolados
pela solidão.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2014
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• Ronaldo
Costa Fernandes in Memória dos Porcos 7Letras, Rio de
Janeiro, 2012
______________ * Myriam Fraga, "Ressaca", in Femina (1996)
______________ Todas as imagens são pinturas ou colagens de
Beatriz
Milhazes, artista carioca contemporânea.
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