Em junho de 2003, há exatos onze anos, publiquei o
poesia.net
n. 24, que discutia sobre três traduções do poema
"Chanson d’Automne" do mestre
simbolista francês Paul Verlaine. Descobri agora mais duas traduções dessa
página
antológica e resolvi atualizar aquele boletim, incluindo-as na discussão. Para
diferenciar o que escrevi agora do que é apenas transcrição do boletim antigo,
destacarei com pincel marcador o texto mais recente.
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"De la musique
avant toute chose" — a música antes de qualquer coisa. Com este verso
definitivo, o francês Paul Verlaine (1844-1896) abre o poema "Art Poétique", de
1885, considerado um verdadeiro manifesto da poesia simbolista. De fato,
Verlaine colocou a música acima de tudo. Ele queria um verso fluido, ritmado,
solúvel no ar.
Exemplo disso é essa pequena jóia, a "Chanson d'Automne",
publicada em seu livro Poèmes Saturniens (Poemas Saturninos), de 1866. A música
está de tal forma entranhada nesse poema que traduzi-lo para o português parece
tarefa impossível. Por isso mesmo, transcrevo aqui três versões dessa canção de
outono, escritas por poetas brasileiros de diferentes gerações:
Alphonsus de
Guimaraens (1870-1921),
Guilherme de Almeida (1890-1969) e Onestaldo de
Pennafort (1902-1987).
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Adiciono agora, neste boletim de revisitação
ao poema, dois novos tradutores, de duas gerações mais recentes: o
poeta e cronista mineiro Paulo Mendes Campos (1922-1991) e o jornalista, poeta e tradutor
paulistano Nelson Ascher (1958-). Veja, ao final desta coluna, mais informações
sobre todos os tradutores.
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Vamos à leitura. Ainda que você
conheça o francês apenas de orelhada, dá para perceber as artimanhas sinfônicas
empregadas por Verlaine. Basta escutar a primeira estrofe. Há ali como que um
violão, inicialmente executado nas cordas mais graves: sanglots longs,
violons,
automne. De repente, a ação se transfere para as cordas médias (coeur,
langueur)
e retorna à nota inicial (monotone).
A música se desenvolve
aparentemente mais suave na segunda estrofe e, na terceira, se rende ao sopro do
"vento mau". Ali, as palavras oscilam como uma folha ao vento (deçà, delà,
pareil a la) que afinal se acomoda no chão. Bem, não sou músico, mas isso é o
que meu ouvido me diz.
Agora, como traduzir (verter, recriar, transcriar
etc. etc.) esse poema em português? A seguir, algumas observações sobre as
traduções ao lado.
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Onestaldo de Pennafort conseguiu equilibrar bem
texto e música na primeira estrofe. O trio sons-violões-outono dá conta do
recado. No entanto, perde-se um pouco da mudança de tom: as palavras dor e
langor não fazem o mesmo papel sonoro de coeur/langueur. Outro ponto forte da
versão de Pennafort é a manutenção do bailado da folha seca ao vento: de cá pra
lá,/ como faz à/ folha morta. Também vale destacar que, dos três, Pennafort foi
o único a manter a métrica original, ou seja, estrofes com versos de 4-4-3-4-4-3
sílabas. Os outros trabalharam com 5-5-2-5-5-2 (Guimaraens) e 4-4-2-4-4-2
(Almeida).
•o•
Os dois tradutores recém-chegados juntam-se a
Pennafort: tanto Paulo Mendes Campos como Nelson Ascher conservam o esquema
métrico original de Verlaine.
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Em sua tradução, Guilherme de Almeida
introduziu, no início, a palavra "lamento", para corresponder ao original
sanglots (soluços). Para dar o tom de corda grave, ele também optou por violões,
e não violinos, como fez Guimaraens. Violino é o correspondente de violon, mas,
no contexto, desafina a orquestra. Nesse item, Alphonsus de Guimaraens
mostrou ser o tradutor mais fiel ao sentido das palavras (por exemplo, usou
"soluços"). Em compensação, ele é que menos se aproximou da melodia verlainiana.
Guilherme de Almeida foi o único a manter o ar de desconsolo indicado pelo verso
"Qui m'emporte", na última estrofe. Mas é um jogo terrível: ele ganha esse
dar-de-ombros e perde a flutuação da folha ao vento.
•o•
A versão de
Paulo Mendes Campos merece algumas informações especiais. Durante algum tempo, o
poeta manteve na hoje extinta revista Manchete um espaço no qual publicava, além de crônicas,
poemas próprios e traduções. A tradução reproduzida aqui saiu na edição de
28/03/1964 com o título "Arieta".
Mas Mendes Campos não produziu somente
esta versão. Lembro-me de ter lido certa vez na própria Manchete uma página na
qual ele mostrava diferentes soluções para os mesmos trechos da "Canção de
Outono". Recordo, vagamente, que ele experimentava com os timbres. Não consegui
localizar esse artigo da revista.
De todo modo, no site do
Instituto
Moreira Salles, encontram-se fac-símiles de cadernos do poeta onde se podem ler
dezenas de tentativas manuscritas dessa tradução. Em vez de "Os longos trinos / Dos
violinos
/ Do outono", há outras versões, entre as quais "Soluços finos / De violinos /
Do outono".
A rigor, os soluços ou trinos de violinos, embora sejam
fiéis ao instrumento original, falseiam o timbre do trecho inicial da canção:
Les
sanglots longs / des violons / de l’automne. Essa sequência com aliterações em L
e o som fechado produz, como já vimos, a ideia de notas graves, e não agudas:
trinos, finos, violinos.
Os dois primeiros versos da segunda estrofe
também não parecem muito felizes. A palavra "alvar" (branco, esbranquiçado)
corresponderia ao original blême (pálido). Perfeita no campo
do significado, essa escolha no entanto quebra a aparente espontaneidade da canção.
Mendes Campos logra melhor resultado na terceira estrofe. Mantém o ritmo e
reproduz o bailado da folha levada pelo vento.
•o•
Mudam-se os tempos e
com eles as palavras e os conceitos poéticos e musicais. O que antes parecia
fluido e natural pode hoje soar estranho e fora de tom. Por isso, os
especialistas em tradução afirmam que as obras clássicas precisam ser
retraduzidas de tempos em tempos, para ajustar os autores antigos às visões de
época.
Creio que a tradução de Nelson Ascher, a mais recente
de
todas, exemplifica bem essa ideia. O tradutor reproduz com perfeição os esquemas
métrico e rímico da canção outonal. Exibe também grande fidelidade ao que diz o
texto em francês. No entanto, o recurso dos enjambements — seja pela quebra de
palavras no final do verso (assom-/bram, mor-/to), seja pela quebra da frase (ao
soar / da hora enquanto, pouco importa / aonde) — não permite sentir a música no
padrão verlainiano. Essa música, aliás, constituiu o eixo de referência do boletim de
2003.
É óbvio que, depois de Verlaine, o campo da música já se expandiu
bastante. Talvez a canção de Nelson Ascher tenda para o dodecafonismo,
enquanto a de Verlaine, sem a menor dúvida, é tonal, popular e cantável.
Mas isso é natural. Ascher emprega em sua tradução alguns
recursos poéticos (como a quebra de palavras) que não seriam sequer imagináveis para um
Alphonsus de Guimaraens. Eu diria que nem mesmo Paulo Mendes Campos ousaria
usá-los. As soluções de Ascher já têm como referência uma série de
transformações por que passou a poesia no século XX: o modernismo, as infinitas
liberdades formais propostas pelas vanguardas, a poesia concreta. É uma tradução
pós-tudo.
•o•
Talvez eu esteja sendo maçante com essas observações quase
técnicas. No entanto, o objetivo é mostrar como é difícil chegar a uma tradução
que, idealmente, traga para o idioma de destino tanto o significado direto das
palavras como outros sentidos e impressões que elas podem carregar — a música,
por exemplo.
Deixo bem claro que não estou comparando as três
(mais duas)
traduções com o objetivo de apontar "a melhor". A idéia é, de certo modo,
comprovar a lição drummondiana: não há vencedor inequívoco nessa luta com as
palavras. Só é possível algum tipo de barganha: para ganhar algo aqui, o
tradutor tem de abrir mão de outro detalhe acolá.
•o•
Em algum ponto mais acima, afirmei que a canção de Verlaine é
cantável. Numa pesquisa na internet encontrei uma lista com dezenas de melodias,
em registro erudito ou popular, aplicadas ao poema. Para terminar, incluo abaixo
a versão mais popular do poema musicado.
Trata-se da versão do
cantor e compositor francês Charles Trénet (1913-2001), lançada em 1940. Grande
cancionista, Trénet é famoso graças a músicas como "La mer", "Douce France" e
"Que reste-t-il de nos amours", todas compostas por ele, sozinho ou com
parceiros.
Alphonsus de
Guimaraens (Ouro Preto, 1870-Mariana, 1921). Advogado e poeta, foi um dos
principais nomes do simbolismo basileiro, com uma poesia de traços místico-católicos.
Guilherme
de Almeida (Campinas, 1890-São Paulo, 1969). Advogado, jornalista, poeta e
tradutor. Traduziu 21 poemas deAs
Flores do Male publicou-os no
volumeFlores das Flores do Mal.
Onestaldo
de Pennafort (Rio de Janeiro,
1902-idem, 1987). Poeta, jornalista e tradutor. A ele Carlos Drummond de Andrade dedicou o poema "Dentaduras Duplas", do livroSentimento
do Mundo(1940).
Paulo Mendes Campos (Belo
Horizonte,
1922-Rio de Janeiro, 1991). Poeta, jornalista e grande cronista, também traduzia
poemas e os divulgava em suas crônicas.
Nelson Ascher (São
Paulo, 1958). Jornalista, poeta, tradutor e crítico literário. Tem traduções
poéticas reunidas nos volumes O Lado Obscuro (1996) e Poesia Alheia
(1998).
A Canção de Outono revisitada
Paul Verlaine
CHANSON D'AUTOMNE
Paul Verlaine
Les sanglots longs Des violons
De l'automne Blessent mon coeur D'une langueur
Monotone.
Tout suffocant Et blême, quand
Sonne l'heure, Je me souviens Des jours anciens
Et je pleure.
Et je m'en vais Au vent mauvais
Qui m'emporte Deçà, delà, Pareil à la
Feuille morte.
CANÇÃO DO OUTONO
Tradução: Alphonsus de Guimaraens
Os soluços graves Dos
violinos suaves Do outono Ferem a minh'alma
Num langor de calma E sono.
Sufocado, em ânsia, Ai! quando à distância
Soa a hora, Meu peito magoado Relembra o passado
E chora.
Daqui, dali, pelo Vento em atropelo
Seguido, Vou de porta em porta, Como a folha morta
Batido...
CANÇÃO DO OUTONO
Tradução: Onestaldo de Pennafort
Os longos sons dos violões,
pelo outono, me enchem de dor e de um langor
de abandono.
E choro, quando ouço, ofegando,
bater a hora, lembrando os dias, e as alegrias
e ais de outrora.
E vou-me ao vento que, num tormento,
me transporta de cá pra lá, como faz à
folha morta.
CANÇÃO DE OUTONO
Tradução: Guilherme de Almeida
Estes lamentos Dos violões
lentos Do outono Enchem minha alma De uma
onda calma De sono.
E soluçando,
Pálido, quando Soa a hora, Recordo todos
Os dias doidos De outrora.
E vou à toa
No ar mau que voa. Que importa? Vou pela
vida, Folha caída E morta.
CANÇÃO DE OUTONO
Tradução: Paulo Mendes Campos
Os longos trinos Dos violinos
Do outono Ferem minh'alma Com uma calma
Que dá sono.
Ao ressoar A hora, alvar,
Sufocado, Choro os errantes Dias distantes
Do passado.
E em remoinho, O ar daninho
Me transporta De cá pra lá, De lá pra cá,
Folha morta.
CANÇÃO DE OUTONO
Tradução: Nelson Ascher
Violinos com seu choro assom-
bram o outono e eu, corpo mor- to de torpor,
me abandono.
Quase sem ar, desmaio ao soar
da hora enquanto, lembrando em vão os dias de então,
caio em pranto.
E o vento cruel leva-me ao léu
pouco importa aonde, em vaivém, vago que nem
folha morta.
O cantor francês Charles Trénet interpreta a "Chanson d'Automne",
musicada por ele, na gravação original de 1940
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Paul Verlaine, "Chanson d'Automne"
In Poèmes Saturniens (1866)
Traduções:
• Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)
• Guilherme de
Almeida (1890-1969)
• Onestaldo de Pennafort (1902-1987)
• Paulo Mendes Campos (1922-1991)
• Nelson Ascher (1958-) ______________ *
Izacyl Guimarães Ferreira, "Terapia", in Declaração de Bens (1980)