Myriam Fraga
Caros amigos,
Este é o último boletim de 2011, uma edição
especial. Para marcar a chegada de um novo ano —
sempre um bom motivo para respirar fundo e renovar as esperanças
—, recorro à poeta baiana Myriam Fraga. A autora já
esteve em foco no
poesia.net n. 13, de 2003. Agora ela retorna, com uma amostra mais
abrangente de sua obra, o que se tornou possível com o lançamento de sua
Poesia Reunida (2008).
Nascida em Salvador, em 1937, Myriam Fraga é poeta, biógrafa e administradora
cultural. Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, desde sua fundação
em 1986, ela tem tomado parte em diferentes organismos, como o
Conselho Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia.
Também merece destaque sua obra de divulgação histórica e cultural. Ela escreveu
Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves (2002), e uma coleção
completa de livros infanto-juvenis com biografias de escritores e artistas como
Castro Alves, Jorge Amado, Carybé e Graciliano Ramos.
PROJETOS POÉTICOS
Na poesia, Myriam Fraga estreou em 1964, com o livro Marinhas. Desde os
primeiros versos publicados, já mostrava a força de seu lirismo. Não há, nesse
volume inaugural, traços de poeta iniciante. Ao contrário: as metáforas, sempre
afiadas, são o anúncio de que uma grande poeta estaria a caminho:
Com velas,
cordame e mastros Construirei minha ausência.
Das tardes de ouro e vento
Ficou-me a face tatuada
De ternuras impossíveis.
Depois de Marinhas, a poeta publicou mais nove títulos (sem contar a
Poesia Reunida). Além de cultivar metáforas fortes e desconcertantes, Myriam
Fraga revela especial predileção por personagens históricos, sejam eles figuras
de existência comprovada — aí a galeria é
ampla, vai do padre Anchieta a John Lennon —, sejam
nomes da mitologia grega, dos cultos afro-brasileiros e da Bíblia. Mitos reais
ou inventados, todos entram no cadinho criativo da poeta baiana e dele saem
transformados em refinada poesia.
Uma característica evidente nos livros de Myriam Fraga é que quase sempre
representam um projeto — ou seja, poemas construídos
em torno de um eixo temático. Marinhas reúne textos sobre a ilha de
Itaparica e os pescadores da região. Em
Sesmaria (1969), há um desfile de personagens da Bahia quinhentista e
seiscentista, com os sangrentos episódios da invasão holandesa.
Há um roteiro de guerra a ser cumprido.
As lunetas farejam o horizonte
E há
ladridos de ânsia nos ouvidos. (...)
Quem uiva na penumbra além das portas?
(medo)
(Trecho do poema
"A Cidade Conquistada")
Em O Livro dos Adynata (1975), o clima é irrespirável. Escrito no período
mais repressivo da ditadura militar, o volume divide-se em três blocos cujos
títulos dizem tudo: "I – Definição ou Da Impossibilidade de Dizer"; "II –
Paisagem ou Da Impossibilidade de Ver"; e "III – Persona, ou da Impossibilidade
de Ser". A cidade silenciada:
"Cidade de não ver, / De não dizer. (...) / Emparedada / No seu silêncio / De
sete portas / Se abrindo ao medo". E, diante de tudo, o sujeito calado,
amargurado: "Carrego um peso / Por isso, / Por tudo o que calando / Consinto".
Um detalhe: adynata (grego, plural de adynaton) são figuras de
linguagem que expressam impossibilidade, impraticabilidade.
FEMINA
Em todas as suas coletâneas de poemas, Myriam Fraga atinge um nível muito
elevado de elaboração poética. Mas — esse é um ponto
de vista meu — é em Femina, de 1996, que ela
atinge os momentos mais vibrantes. É como se ali a poeta tivesse reunido todos
os seus poderes mágicos. De fato, nesse livro o sujeito poético, sempre no
feminino, assume os vestidos e as histórias de uma extensa coleção de
personagens.
"Poesia é coisa / De mulheres", avisa o poema que serve de pórtico ao livro.
Entre as muitas mulheres, que incluem figuras bíblicas, heroínas mitológicas e
artistas populares, duas
merecem destaque. Maria Bonita, companheira do cangaceiro Lampião, e Maria de
Póvoas, ou Maria dos Povos, amante do poeta Gregório de Mattos. No poema "Maria
Bonita", a protagonista desfia um verdadeiro cântico dos
cânticos sertanejo a seu amado Lampião. Um trecho:
Vem, meu amor, e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como
quem lava
A casa;
Águas frescas da tarde. (...)
Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos
vidros
Com que miras
A mira do mosquete.
No primeiro boletim dedicado a Myriam Fraga, já citei um trecho deste poema, que
é um dos cantos de amor mais bem lavrados da literatura brasileira. A peça de
Maria Bonita é longa. Mas a de Maria de Póvoas é
mais extensa ainda: tem sete partes, sem nunca perder o encantamento. Expressa o
desespero de Maria de Póvoas ao ver o poeta Gregório de partida para o degredo
em Angola:
Ó amor feito de nada,
O que desejo
É apenas o côncavo do escuro.
O poema de abertura de Femina, "Ars Poetica", garante que "poesia é coisa / de
mulheres". É uma afirmação perfeitamente ajustada à idéia central do livro. Há
ainda outro texto, "Possessão", que funciona como uma espécie de complemento
daquele. Os dois estão transcritos ao lado. "Ars Poetica" é uma definição de poesia. Ali o ato criador é comparado à
gravidez e ao parto, além de uma seqüência de suplícios, como andar sobre brasas
e expulsar venenos pelos poros. São atos de uma "paixão delicada e perversa".
Em "Possessão" o assunto é o mesmo, porém a atenção se volta mais para o momento
da chegada do poema. A epifania, o alumbramento, o entusiasmo do ato criativo.
Então, a poesia (o poema) assume a condição de um orixá, uma divindade que toma
posse do corpo do poeta, seu cavalo. O poema é a pombajira. Impressionante.
Feliz 2012 às leitoras (poesia é coisa de mulheres) e aos leitores do boletim.
Paz, saúde e alegria de viver.
Um abraço, e até fevereiro.
Carlos Machado
•o•
poesia.net entra
em recesso
A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo
com muita saúde, paz e poesia.
Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero
retornar em fevereiro para nosso encontro quinzenal.
FELIZ 2012!
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Uma paixão delicada e perversa
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Myriam Fraga
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DEFINIÇÃO ou DA IMPOSSIBILIDADE DE DIZER
(trechos)
Aqui não falo,
Antes me calo,
Que a vida é um favo
De maldizer
(...)
E a língua travo
Com os alfinetes
De só saber.
***
Cidade de não ver,
De não dizer.
Antes os olhos cegos,
As mãos algemadas,
Que este súbito saber
De segredos fechados.
Urbe selada
Sangrando o lacre
De seus sinetes.
Emparedada
No seu silêncio
De sete portas
Se abrindo ao medo.
De O Livro dos Adynata (1975)
Ingres (francês, 1780-1867), Édipo
e a Esfinge (detalhe)
A ESFINGE
Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.
No fundo, não me importa
O enigma que proponho.
Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.
Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.
E por saber que a morte
E a última chave,
Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.
Salvador, 1964
De O Risco na Pele (1979)
ARS POETICA
Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.
Nas esquinas da morte,
Enterrei a gorda
Placenta enxundiosa
E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.
Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.
Poesia é a arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.
Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.
Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.
Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,
Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.
Pombajira vermelha
POSSESSÃO
O poema me tocou
Com sua graça,
Com suas patas de pluma,
Com seu hálito
De brisa perfumada.
O poema fez de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.
De repente, sem aviso,
O poema como um raio
— Elegbá, pombajira! —
Me tocou com sua graça,
Aceso como chicote,
Certeiro como pedrada.
Salvador, abril, 1995
FONTE
A vida que passou
— Água tombada
Dos bordos
De tua taça.
O eterno fluir,
O doce encanto
Com que se miram
Ninfas
Pela tarde.
Ó suave marulho,
Ó farfalhar de asas...
— Pássaros nascendo,
Invisíveis, das águas.
Tua concha como
Um cálice
Borbulhante, intocado,
Música de sombras verdes
Teu murmúrio em cascata.
E o tempo, o tempo,
O tempo...
Gotejando sua mágoa.
De Femina (1996)
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