Número 91

São Paulo, quarta-feira, 20 de outubro de 2004 

«Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim.» (Sigmund Freud)
 


Arthur Rimbaud


Caros,

Nesta quarta-feira, 20 de outubro, completam-se 150 anos do nascimento do francês Arthur Rimbaud (1854-1891), um dos nomes mais influentes na história da poesia ocidental.

Fonte de inspiração de beatniks e existencialistas, Rimbaud representa até hoje um dos grandes enigmas da poesia moderna. Como se sabe, esse criador genial escreveu toda a obra que o coloca como um dos grandes da poesia mundial entre os 15 e os 20 anos.

Considerado um mestre do simbolismo e precursor do surrealismo, Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud nasceu no nordeste da França, nas Ardenas. Era filho de um capitão de infantaria que abandonou a família quando Arthur tinha seis anos. Aluno brilhante na escola, fugiu de casa em 1870, quando estourou a guerra franco-prussiana.

Depois de passar quase um ano vagando pelo país, foi convidado a Paris por Paul Verlaine (1844-1896), a quem havia enviado alguns poemas. Em 1871, Arthur estava entre os revoltosos da Comuna de Paris. Com rosto de anjo, o adolescente encarnava um pequeno demônio, o perfeito enfant terrible. Os meios literários parisienses o rejeitavam como bêbado e arrogante.

Rimbaud e Verlaine tornaram-se amantes. Este último, que era casado, abandonou a esposa em 1872 seguiu o jovem companheiro para Londres, onde viviam uma vida boêmia.  A relação dos dois, altamente tumultuada, termina  em briga, no ano seguinte, quando Verlaine, bêbado, atinge Rimbaud no pulso com um tiro de pistola. Nessa época Rimbaud escreveu seu livro de poemas em prosa Une Saison en Enfer (Uma temporada no inferno).

Após completar outro livro de poemas em prosa, Les Illuminations (1874), Rimbaud desistiu completamente da literatura e passou a viver como vagabundo. Circulou pela Europa e, nos últimos doze anos de sua vida, trabalhou para comerciantes franceses, traficando armas e, acredita-se, também escravos. Rimbaud morreu em 1891, após ter a perna direita amputada em decorrência de um câncer.

Assim, o genial Rimbaud viveu duas vidas. Primeiro, em poucos anos de rebelde genial. Depois, uma obscura existência de traficante de armas no norte da África e no Oriente Médio.

É de fato impressionante saber que um poeta de 16 anos escreveu um soneto como "Adormecido no Vale", transcrito ao lado. Escrito em 1870, esse poema inspirou-se na guerra franco-prussiana. O poeta consegue estabelecer um chocante contraste entre a mansidão da natureza e o horror da guerra, sem jamais escrever a palavra "morte".

Em "Primeira Tarde", outro poema ao lado, tem-se a faceta do Rimbaud erótico, brincalhão — num poema que deve ter sido bem escandaloso em sua época. Por fim, confiram a jóia que é esse pequeno poema "A Eternidade".

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                   •

Para ler mais poemas de Rimbaud, consulte a Poesia Completa do poeta, parte da obra completa em três volumes traduzida e organizada por Ivo Barroso para a Editora Topbooks. Veja também a antologia Rimbaud Livre, traduzida e apresentada por Augusto de Campos (Ed. Perspectiva).



 

O selvagem Rimbaud

Arthur Rimbaud

 


ADORMECIDO NO VALE

                             Tradução:  Ferreira Gullar

É um vão de verdura onde um riacho canta
A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,
Banhando a nuca em frescas águas azuis,
Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente
Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio
Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito.


LE DORMEUR DU VAL

C'est un trou de verdure où chante une rivière,
Accrochant follement aux herbes des haillons
D'argent; où le soleil, de la montagne fière,
Luit: c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,
Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert où la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somme:
Nature, berce-le chaudement: il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine,
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.




PRIMEIRA TARDE

                             Tradução:  Ivo Barroso

Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.

Quase desnuda, na cadeira,
Cruzavas as mãos, e os pequeninos
Pés esfregava na madeira
Do chão, libertos finos, finos.

— Eu via pálido, indeciso,
Um raiozinho em seu gazeio
Borboletear em seu sorriso
— Mosca na rosa — e no seu seio.

— Beijei-lhe então os tornozelos.
Deu ela um riso inatural
Que se esfolhou em ritornelos,
Um belo riso de cristal.

Depressa, os pés na camisola
Logo escondeu: "Queres parar!"
Primeira audácia que se implora
E o riso finge castigar!

Sinto-lhe os olhos palpitantes
Sob os meus lábios. Sem demora,
Num de seus gestos petulantes,
Volta a cabeça: "Ora, esta agora!..."

"Escuta aqui que vou dizer-te..."
Mas eu lhe aplico junto ao seio
Um beijo enorme, que a diverte
Fazendo-a rir agora em cheio...

— Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.



PREMIÈRE SOIRÉE

Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.

Assise sur ma grande chaise,
Mi-nue, elle joignait les mains.
Sur le plancher frissonnaient d'aise
Ses petits pieds si fins, si fins.

Je regardai, couleur de cire,
Un petit rayon buissonnier
Papillonner dans son sourire
Et sur son sein,
mouche ou rosier.

Je baisai ses fines chevilles.
Elle eut un doux rire brutal
Qui s'égrenait en claires trilles,
Un joli rire de cristal.

Les petits pieds sous la chemise
Se sauvèrent : "Veux-tu en finir!"
La première audace permise,
Le rire feignait de punir!

Pauvrets palpitants sous ma lèvre,
Je baisai doucement ses yeux:
Elle jeta sa tête mièvre
En arrière: "Oh! c'est encor mieux!...

Monsieur, j'ai deux mots à te dire..."
Je lui jetai le reste au sein
Dans un baiser, qui la fit rire
D'un bon rire qui voulait bien...

Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.



A ETERNIDADE

                             Tradução:  Augusto de Campos

De novo me invade.
Quem?
A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem?
A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.


L'ETERNITÉ

Elle est retrouvée.
Quoi?
L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Âme sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s'exhale
Sans qu'on dise: enfin.

Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.

Elle est retrouvée.
Quoi?
L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

                         [Mai 1872]

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Poemas e informações extraídos de:
•  "Adormecido no Vale"
    Tradução de Ferreira Gullar
    In Site do tradutor
•  "Primeira Tarde"
    Tradução de Ivo Barroso
    In O Torso e o Gato
    Editora Record, Rio de Janeiro, 1991
•  "A Eternidade"
    Tradução de Augusto de Campos
    In Rimbaud Livre
   
Editora Perspectiva, 2a. ed, São Paulo, 1993