Número 274 - Ano 10

São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

«Mesmo sem naus e sem rumos, / mesmo sem vagas e areias, / há sempre um copo de mar / para um homem navegar.» (Jorge de Lima) *
 

Hélio Pellegrino (1924-1988)
Hélio Pellegrino


Caros,


O mineiro Hélio Pellegrino (1924-1988) é amplamente conhecido por suas atividades como psicanalista, jornalista, escritor e ativista político. E mais ainda pelo fato de ter sido um dos membros do grupo de amigos-escritores conhecido como Os Quatro Mineiros, do qual faziam parte Paulo Mendes Campos (1922-1991), Otto Lara Resende (1922-1992) e Fernando Sabino (1923-2004).

Também se sabia que Pellegrino era poeta. Mas poucos conhecem algum poema escrito por ele. Na verdade, não era mesmo para conhecer, pois seus poemas não estavam disponíveis nas livrarias. Essa lacuna só foi corrigida cinco anos depois de sua morte. Em 1993, o jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck organizou o volume Minérios Domados, que reúne o fundamental da obra poética do psicanalista.

Conforme Werneck relata na apresentação do livro, Pellegrino foi um escritor de “abstinência editorial” quase absoluta. Publicou ensaios de psicanálise, mas no departamento lírico ficou em dois poemas, ambos divulgados em 1944, quando ainda residia em Belo Horizonte, sua cidade natal.

Em 1980, gravou doze poemas no elepê-recital Os 4 Mineiros, do qual também participaram os três amigos de toda a vida. Depois de sua morte, o jornal Letras & Artes deu a público 27 poemas curtos de Pellegrino. E é só.

Werneck debruçou-se sobre os papéis deixados pelo escritor e reuniu num volume sua obra poética. O livro está dividido em duas partes: poemas datados, com obras de 1942 a 1987, e poemas sem data.

Embora esse livro já estivesse disponível desde os anos 90, confesso que não sabia da existência dele. O contista baiano Valdomiro Santana é que me chamou a atenção para ele. Além de me falar sobre Minérios Domados, ele fez a seleção dos poemas que você lê neste boletim. À lista dele, acrescentei apenas um poema, “Tempo Romano”.

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Hélio Pellegrino começou a escrever poemas aos 15 anos. Em 1940, conheceu em Belo Horizonte os três amigos com quem formaria o quarteto famoso. Em 1942, encontrou em São Paulo o poeta modernista Mário de Andrade, com quem manteria uma troca de correspondência até a morte deste, em fevereiro de 1945.

Nessa mesma época, escreve em jornais, torna-se um dos fundadores da UDN – União Democrática Nacional e até concorre, por esse partido, a uma vaga de deputado estadual. Em 1946, desliga-se da UDN e funda a Esquerda Democrática, ligada ao Partido Comunista.

Formado em medicina, Pellegrino começa a trabalhar com psiquiatria em 1947. Cinco anos depois, já casado e com filhos, muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1969, foi preso por dois meses pela ditadura militar, acusado de subversão. Sempre ativo no jornalismo, na psicanálise e na política, Pellegrino tornou-se uma figura de projeção nacional.

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Pela miniantologia ao lado, pode-se observar que Hélio Pellegrino é um poeta que sai a captar sensações nas coisas que vê pelo caminho. Atento para detalhes, ele “fotografa” liricamente essas sensações. “Oh! A resignação das coisas paradas, / grávidas de silêncio”, escreve em “Momento”. É um lirismo que se acerca das coisas triviais e é capaz de perceber “a prece das esquadrias de alumínio ionizado”.

Essa mesma sensibilidade aparece em “Tempo Romano”, texto em que o poeta, diante de monumentos na cidade eterna, medita sobre a efemeridade das coisas humanas, mesmo aquelas que consideramos grandiosas, como os Césares e os impérios.

Entre os poemas sem data, destaca-se “Quadrilátero Ferrífero”, um retrato lírico da região mineira dedicada à produção de minério de ferro. Hoje ferrífera, no passado aurífera. Numa comparação ousada, o poeta diz que a hematita é a “uva das Minas Gerais”. Por fim, cito ainda a pequena joia que é “O Galo”.

Um abraço, e até a próxima.


Carlos Machado



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Segundo clichê

Em apenas um dia, o boletim com a poesia de Hélio Pellegrino provocou a chegada de dezenas de mensagens à minha caixa postal. Algumas para louvar a qualidade dos versos. Outras confessavam o espanto do leitor ao saber que o mineiro também era poeta. E outras ainda para apontar alguns deslizes no boletim.

Ao mesmo tempo, alguns leitores receberam a página com faixas brancas horizontais que apagavam parte do texto. Em vista disso, resolvi relançar o boletim pellegriniano, como uma espécie de segundo clichê aquela parte da tiragem do jornal que sai com correções e notícias de última hora.


Correções

1. Na identificação das estátuas, na segunda foto ao lado, os dois escritores sentados estavam trocados. Além disso, os bronzes não se encontram mais no lugar em que aparecem na foto. Continuam na Praça da Liberdade, onde são mostrados, porém agora na entrada da Biblioteca Pública Estadual Prof. Luís de Bessa.

2. Não é exatamente uma correção, mas um registro. O leitor e também poeta Henrique Chaudon chama a atenção para a expressão "esquadrias de alumínio ionizado", no poema "Momento", que abre a seleção ao lado. "Na verdade, o alumínio é anodizado", escreve ele. Mas pondera: "Sei que isso não retira um grama da beleza do poema, mas me incomodou muito na primeira leitura".


“Notícias de última hora”

Humberto WerneckTambém entrou no circuito de mensagens sobre o boletim o próprio organizador do volume Minérios Domados, o jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck (foto). Além de fazer a correção sobre as estátuas (n. 1, acima), ele permitiu a reprodução de uma crônica de seu livro Esse Inferno Vai Acabar (2011). É o texto "Pegando um bronze em Beagá", que trata exatamente daquelas estátuas "pedestres" e de outras similares, como a de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana.


Outro escrito de Werneck aparece neste "segundo clichê". É a crônica "Bichos Literários", publicada em O Estado de S. Paulo de 4/12/2011. Nesta, o cronista conta histórias de Pellegrino e seus confrades do grupo dos quatro. Mas as duas crônicas não caberiam nesta página.
Por isso, estão no boletim 274-A, que vocês vão ler clicando no link.
 

Uvas bravas, minerais

Hélio Pellegrino

 



MOMENTO

Oh! A resignação das coisas paradas,
grávidas de silêncio, reverentes,
em sua geometria sem jactância!

A placidez das ruas acolchoadas
contra a dura cintilação do dia;
o recato das árvores, a prece
das esquadrias de alumínio ionizado
na fachada do edifício em frente!

Todas as coisas — em clausura — cumprem votos,
enquanto a vã filosofia do século
pensa que move o mundo.

            Rio, 9/9/87



ALGUMA COISA

                    Para Guilhermino César

Alguma coisa resta: um gesto
nos tendões da mão engelhada.
Uma efusão inacabada
na ferrugem da pele-resto.

Alguma coisa que é da raça
dos minerais, insubornável,
além do amargo e do caroável,
do que perdura — e do que passa.

Alguma coisa inscrita: um grito
no fulgor do dedo anular.
Um puro incêndio sem queimar
— como um segredo afinal dito.

            Porto Alegre, 8/11/86

 

Os Quatro Mineiros: Sabino, Pellegrino, Mendes Campos e Lara Resende
Os Quatro Mineiros: Pellegrino é o segundo (da esq. para a direita), ladeado por
Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende




POEMA RASGADO

Ó borboletas de papel
janelas da insônia
turbilhonando a noite

            Rio, 27/2/80



TEMPO ROMANO

Nesta espádua de pedra
pousam pássaros,

deslembrados de sonhos,
tempos, césares:

— eles, sim, são eternos.

            Roma, 27/12/80



MOMENTO NO METRÔ

Se nos olhássemos
mais tempo,

levaríamos conosco
o duro, o instante,
o implacável diamante
que nos separou.

            Paris, 15/12/80



VAN GOGH EM AMSTERDÃ

Por debaixo de tudo,
diques, dunas, frontões;

Por debaixo de tudo,
nobres pedras, canais
onde remam cisnes.

Por debaixo do mundo
lavra um incêndio.

            Amsterdã, 1º/1/81



QUADRILÁTERO FERRÍFERO

Em tuas colinas rasas
não há vinhedos nem olivais.
Há — púrpura difícil — a hematita,
uva das Minas Gerais.

Uva sáfara, mineral,
fermentando uma pinga de poeira
cujo álcool — lâmina de rocha e cal —
torna triste a embriaguez mineira.

Embriaguez vertical, contida,
cujas cores explodem dentro
do peito: ocre violento, lacre
e prata, sol — e lua ferida.

 

A CEGUEIRA DE ÉDIPO

Caminha errante o velho rei da terra,
sangrando a cada passo o seu desterro.
Pesa-lhe luz demais, ausência de erro
e de noite — montanha que o soterra.

Cego de sua verdade, desenterra
do peito transfixado não o ferro
que o punge por inteiro, nem o berro
que lhe sobe das entranhas, enquanto erra.

Com sua garra terrosa de mendigo,
busca arrancar da carne não a morte
que o rodeia na treva, vinho forte

desde sempre provado. O desabrigo
que o atormenta é outro: sol candente
que vara a sua cegueira — e o faz vidente.



Os Quatro Mineiros: Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino
Estátuas d'Os Quatro Mineiros, em Belo Horizonte. Da esquerda para a direita:
Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino.
Os bronzes ficam na Praça da Liberdade, porém não mais no lugar mostrado na foto



HERÁCLITO, O OBSCURO

A pedra se move menos que a planta.
A planta se move menos que o réptil, movendo-se sobre a pedra.
O réptil se move menos que o leopardo, na espessura da floresta.
O leopardo se move menos que o homem, faminto de espaço.
Todo ser, ao mover-se, exprime o seu desassossego: arco tendido
                                                 [ na direção do vir a ser.
A pedra tem mais sossego que a planta.
A planta tem mais repouso que o réptil.
O réptil é mais sonolento que o leopardo.
O homem, este é pura insônia — trabalho futuro, voo e flecha.



O GALO

Canto forrado em
carne, e sob as penas,
este carvão que
espreita. E salta em
arco sobre os pulmões
do dia. E bifurca a
manhã com a córnea de
seu bico.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Hélio Pellegrino
•  In Minérios Domados: Poesia Reunida
    Seleção e prefácio de Humberto Werneck
    Rocco, Rio de Janeiro, 1993
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* Jorge de Lima (1893-1953), "Canto Primeiro - Fundação da Ilha",
   in Invenção de Orfeu (1952)