A.M. Pires Cabral
Caros,
Nesta edição, o poesia.net apresenta o poeta
português A.M. Pires Cabral. Nascido em Chacim, no nordeste de Portugal, em
1941, António Manuel Pires Cabral formou-se em filologia germânica e em
pedagogia na Universidade de Coimbra.
Professor e diretor de escolas
secundárias, estreou na poesia em 1974, com o volume Algures a Nordeste.
Seguiram-se outros quinze títulos de poesia, mais duas dezenas de romances,
contos e crônicas, além de três peças de teatro. O escritor é também autor de
antologias escolares para o ensino do português.
Lamentavelmente, deste lado do
Atlântico quase não se tem notícia de A.M. Pires Cabral. Tomei conhecimento de
sua poesia de forma bastante inusitada. Ganhei de presente o livro Resumo
– A Poesia em 2013, e lá estão poemas daquele autor. Trata-se de
uma coletânea patrocinada pela rede Fnac portuguesa e certamente vendida apenas
nessa rede de lojas (o livro traz na capa e em outras páginas o logotipo da
empresa).
Segundo os organizadores, o livro “pretende ser uma antologia dos
melhores poemas publicados em Portugal ao longo de 2013”. Eles também esperam
que o Resumo se torne um anuário. Os responsáveis pela seleção foram José
Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de
Freitas.
Os antologistas informam que as fontes de onde extraíram os
poemas resumiram-se a livros e revistas, dada a impossibilidade de ler tudo o
que sai na internet. Eles não dizem, contudo, quais foram as fontes. Aliás,
talvez para reduzir custos, também não oferecem nenhuma informação
biobibliográfica sobre os 37 autores elencados.
Até onde
consegui levantar, o último livro de poesia de A.M. Pires Cabral, Arado,
saiu em 2009. Desse modo, é razoável supor que os poemas constantes do Resumo
tenham aparecido em revistas durante o ano passado.
•o•
A poesia
de A.M. Pires Cabral — a julgar apenas e tão somente pelos dez poemas
publicados no Resumo, dos quais cinco aparecem aqui — tem traços
prosaicos e reflexivos, num estilo que atualmente não é comum no Brasil. Talvez
em parte por causa das influências vanguardistas (poesia concreta, práxis etc.)
e dos textos curtos cultivados pelos poetas marginais dos anos 70, os
brasileiros são, quase sempre, mais concisos. E muitas vezes não dizem, sugerem.
A
dicção de A.M. Pires Cabral é direta. A transcendência poética se constrói com
base em frases de sintaxe normal e sem metáforas. O poeta diz o que diz.
•o•
Curiosamente, os quatro primeiros
poemas transcritos aqui têm dois pontos comuns: a observação da natureza e a
reflexão sobre a morte e a finitude das coisas. Em “A Umas Flores Amarelas”, o
poeta aprecia a beleza simples de flores encontradas no caminho. Termina com um
apelo às flores: que elas continuem belas enquanto ele pode ver as flores —
“antes de as flores virem ter comigo”.
No poema “Amoras Segundo S. Francisco”
o observador, à maneira do santo, saúda a “irmã silva” (bosque, floresta) que dá
ao homem as amoras e seus picos (espinhos). E termina com uma comparação entre
esta vida e “a outra”, desconhecida.
A mesma reflexão sobre o fim da vida
aparece em “Pensando Melhor” e em “Hora do Poente”. No primeiro, a conclusão é
de que tudo é terra e um dia a terra sobrevoará as aves. No outro, o cair da
tarde dá ao sujeito pensante a ideia de que o dia desemboca diretamente na
morte.
•o•
O poema “Fechou a Escola em Grijó” foi escrito com base
num acontecimento. Naturalmente, eu não tinha ideia da existência de Grijó.
Pesquisei. Há várias localidades com esse nome em Portugal. Mas essa do poema
refere-se a um povoado pertencente a Macedo de Cavaleiros, no norte de Portugal,
na região de origem do poeta.
Grijó hoje tem menos de 400 habitantes.
Em 2006, o Ministério da
Educação resolveu fechar a escola primária local (fez isso também em vários
outros povoados) e transportar as crianças para a sede do município — em
Portugal, concelho. Os grijoenses fizeram abaixo-assinados, protestaram, mas não
houve jeito. O poema expressa, além da inconformidade com o desenraizamento das
crianças, a preocupação com a extinção das aldeias.
Matéria do
Diário de Notícias dá conta da proliferação de aldeias-fantasmas em
Portugal. “Aldeias estão a ficar desertas, abandonadas à sua sorte e engolidas
pela vegetação. Nem mesmo as que estão nos arredores de algumas capitais de
distrito [o equivalente, no Brasil, a estado – C.M.] escapam”, diz
o jornal. Uma pessoa entrevistada resume a situação: “Os velhos morreram e os
novos casaram-se e abalaram”.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Aves e amoras ao cair da tarde
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A.M. Pires Cabral
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A UMAS FLORES AMARELAS
Encontro-as por acaso numa ilharga sombria do caminho. São amarelas.
Reluzem como um sol que arda na noite.
Estas flores tão densamente de
ouro, eriçadas de estames que parecem a pelagem dum gato posto à
prova,
a mim, que me comovo com igrejas singelas de preferência a
grandes catedrais,
mostram um esplendor totalmente inesperado
neste chão de pedra que ninguém diria poder florir assim.
Ó flores
cujo nome desconheço, prolongai esse fulgor humilde em cada dia de que
ainda disponho para ver as flores,
antes de as flores virem ter
comigo..
AMORAS SEGUNDO S. FRANCISCO
Como as inquietas aves ribeirinhas,
também nós fazemos em Agosto a nossa safra de amoras, evitando com
prudência os picos que as dificultam e tornam cobiçadas.
Bendita
sejas, irmã silva, que nos dás as amoras e os picos.
Que de tudo
se precisa nesta vida. (Na outra, por enquanto não se sabe.)
PENSANDO MELHOR
Mesmo em tardes muito quentes de Verão, há sempre uma ave aventureira que
sobrevoa a terra.
(Pensando melhor, o que de facto há é terra,
apenas terra — que a seu tempo há-de sobrevoar o voo das aves.)
HORA DO POENTE
Na hora do poente
há mais melancolia e mais sigilo
no quase nocturno voo das aves.
Como se a penumbra
lhes censurasse as asas.
Como se a grande apoteose do ocaso
fosse um presságio do fim
de todas as coisas.
Como se a noite fosse ainda mais
escura do que a escuridão em
que se enrola.
Como se o dia desembocasse
na morte directamente,
sem passar primeiro pelos portais da noite.
Chafariz e igreja matriz no povoado de Grijó, em Macedo
de Cavaleiros, no norte de Portugal
FECHOU A ESCOLA EM GRIJÓ
ao Frederico Amaral Neves
I
Dantes ouviam-se as crianças a
caminho da escola e eram como
pássaros de som nas manhãs de Grijó.
Não eram muitas, mas as vozes joviais
davam sinal de que a aldeia resistia,
continha a distância o deserto que a ronda
como a alcateia ronda uma rês tresmalhada.
Agora as crianças, todas as manhãs,
são acondicionadas como mercadorias
numa viatura com vocação de furgoneta.
Lembram judeus amontoados
em vagões jota a caminho de algures.
Vão aprender em terra estranha o que os seus pais
e os pais dos seus pais aprenderam em Grijó.
II
Só se voltam a ouvir ao fim da
tarde quando a viatura as
despeja no largo da aldeia como
artigos que ficaram por vender.
Mas ouvem-se pouco, porque vêm cansadas.
Ouvem-se pouco e triste porque o seu dia
foi deportado para outra terra onde
não se lhe firmam raízes.
O senhor ministro das Finanças está
contente, porque poupa meia
dúzia de euros com a violenta
trasfega da infância.
Mas está triste Grijó, porque já não ouve
as suas aves da manhã a caminho da escola
— e por isso pode dizer-se que a aldeia encolheu,
ficaram uns metros mais perto
as dunas de amanhã.
III
Caladas as vozes tagarelas das
crianças, nos dias de Grijó
poucas mais vozes se ouvem do
que as de alguns velhos que antecipam
em palavras raras, conformadas,
o dia em que o silêncio cobrirá com estrondo
o (des)povoado definitivamente.
O senhor ministro das Finanças terá
poupado mais alguns euros com a
instauração deste opressivo
silêncio final, e ficará
contente.
Grijó não.
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