Número 325 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

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«Cada vez que me debruço / sobre minha própria face / não me vejo como sou / mas como sou no disfarce.» (Antonio Brasileiro) *

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João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto

 

Amigas e amigos,

Fevereiro chegou, e é hora de retomar as edições quinzenais do poesia.net. Este é, portanto, o primeiro boletim de 2015. Desta vez, já em nosso décimo terceiro ano de estrada, vamos empreender uma viagem de volta ao boletim n. 1, revisitando a obra do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Nome dos mais celebrados e influentes da poesia brasileira no século XX, Cabral dispensa apresentações. Para este boletim, selecionei alguns poemas que nos permitem fazer um breve passeio pela obra do poeta pernambucano.

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Comecemos por um de seus textos mais conhecidos, “Tecendo a Manhã”, do livro A Educação pela Pedra, de 1966. Nesse texto antológico, o poeta enxerga na rede de galos que cantam na madrugada um verdadeiro tear no qual os gritos das aves se entrelaçam com os fios do sol e vão compondo o tecido luminoso da manhã.

Observe-se um detalhe: em relação às aves, não aparece nenhuma referência a “canto” ou “cantar”. E não é por acaso. Para o efeito “têxtil” do poema, “grito” é mais indicado. Trata-se de um vocábulo que parece conter, no estrato sonoro, a ideia de algo mais fino — com jeito de fio, ou fibra — e portanto mais adequado à trama com os raios de sol.

“Tecendo a Manhã” é, com toda a razão, um dos poemas mais apreciados de João Cabral.

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Praticante e proponente de uma poesia marcada pela concretude das imagens, Cabral tornou-se uma espécie de porta-bandeira da negação do lírico, um autor avesso à poesia subjetiva e sentimental. Isso leva alguns a entender que a obra do poeta recifense passou em branco pelos temas do amor e do erotismo. Não é verdade.

Veja-se este texto, “Paisagem pelo Telefone”, publicado originalmente no livro Quaderna (1960). Aqui, o poeta descreve os devaneios eróticos de um homem que conversa com uma mulher — namorada? — pelo telefone. O desenvolvimento é típico do estilo cabralino: uma imagem puxa outra, todas sempre construídas em cima de referências concretas.

Primeiro, a conversação telefônica com a mulher o faz supor que ela se encontra numa sala com duzentas janelas, “toda de luz invadida”. Para reforçar a ideia de completa ausência de sombras, o homem supõe que a sala está aberta para uma praia pernambucana, “no prumo do meio-dia”. A paisagem marinha traz à cena jangadas, velas brancas. Observem: nada de abstrações.

Na quadra que começa com “Pois, assim, no telefone”, o homem passa a dizer à interlocutora que também a imagina despida, naquela claridade do meio-dia nordestino: “eu diria / que estavas de todo nua, só de teu banho vestida”. Por fim, sedutor e malicioso, afirma que a amiga é uma criatura que tem claridade própria. Por isso, diz ele, a água do banho apenas “libera a luz que já tinhas”.

Também em outros textos de Quaderna, Cabral envereda pela dicção sensual, quase erótica. Um exemplo é o poema “Jogos Frutais” (não transcrito aqui), no qual ele traça um paralelo entre a mulher e diversas frutas nordestinas. Num tom que às vezes lembra o Cântico dos Cânticos com sotaque pernambucano, ele canta: “És tão elegante quanto / um pé de cana, / despindo a perna nua / de dentre a palha. / E tens a perna / do mesmo metal sadio / da cana esbelta”. Num trecho de erotismo mais explícito, diz: “Não és uma fruta fruta / só para o dente, / nem és uma fruta flor, / olor somente. / Fruta completa: / para todos os sentidos, / para cama e mesa”.

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O próximo poema vem do livro A Escola das Facas, de 1980. Trata-se de “Forte de Orange, Itamaracá”. Nele, João Cabral de Melo Neto descreve o embate do tempo e seu inescapável poder corrosivo contra as temíveis armas de guerra dessa fortificação construída pelos holandeses em 1631. Após a expulsão dos flamengos em 1654, o lugar foi abandonado e depois ocupado pelos portugueses. Hoje, tombado, é atração turística.

Composto de 24 versos sem separação de estrofes, o texto é todo marcado por rimas toantes em /u/ nos versos pares: hirsuto, musgo, pulso, absoluto etc. Os oito versos finais descrevem, com toda a cerimônia das tragédias, a rendição inexorável das coisas diante do tempo. É o princípio da água mole em pedra dura aplicado a uma edificação militar que, quando construída, parecia eterna e inviolável. No final, conforme o verso de Cabral, o ferro se rende ao musgo.

Embora pouco citado, esse é um dos poemas mais expressivos de João Cabral.

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Seria pecado capital passar pela obra de João Cabral de Melo Neto e não falar de Sevilha. Como se sabe, o poeta, diplomata de carreira, morou nessa cidade espanhola e escreveu copiosamente sobre as gentes e costumes sevilhanos. Além de poemas dispersos em vários livros, ele publicou uma coletânea, Sevilha Andando (1990), totalmente dedicada a essa cidade andaluz. Desse volume pincei o poema “Uma Bailadora Sevilhana”.

Nas oito parelhas que perfazem o texto, quem fala é a mulher referida no título, uma dançarina de flamenco. Fala de si e de sua arte, um dos símbolos da cultura espanhola — mais especificamente da região de Andaluzia, comunidade autônoma localizada no sul da Espanha, cuja capital é exatamente a Sevilha que tanto encantou o autor de Quaderna.

Nos dois versos finais, a dançarina sevilhana faz uma síntese magistral: “dançar flamenco é cada vez; / é fazer; é um faz, nunca um fez”. Ela diz isso em tom de crítica a outra bailadora que, a seu ver, “dança repetido; / dança sem se expor, sem perigo”. Essa artista rigorosa, minuciosa, que tem todo o jeito de ser um alter ego de João Cabral, fala na verdade de qualquer arte. O ato de criar pressupõe correr riscos e fugir da repetição.

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Eis outro exemplo de como João Cabral trabalha com questões abstratas sem abrir mão das imagens e do vocabulário concretos. Em “Questão de Pontuação”, poema de Agrestes (1985), ele traça paralelos entre o texto e a vida, usando como referência três sinais de pontuação: a exclamação, a interrogação e o ponto final.


Abraço, e um bom 2015 para todos nós.


Carlos Machado

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JOÃO CABRAL: BREVE NOTÍCIA

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 1920 e passou parte da infância nos engenhos da família no interior de Pernambuco. De volta a Recife, estudou no Colégio Marista, onde concluiu o curso secundário. No início dos anos 40, muda-se para o Rio de Janeiro. Funcionário público, prestou concurso em 1945 para a carreira diplomática, que exerceu até a aposentadoria em 1990, no cargo de embaixador. Morou em vários países, como Senegal, Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Equador.  Cabral faleceu no Rio de Janeiro em 1999.

Fazem parte de sua obra poética títulos como Pedra do Sono, 1942; O Engenheiro, 1945; O Cão sem Plumas, 1950; O Rio, 1954; Quaderna, 1960; A Educação pela Pedra, 1966; Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta, 1966; Museu de Tudo, 1975; A Escola das Facas, 1980; Agrestes, 1985; Auto do Frade, 1986; Crime na Calle Relator, 1987; e Sevilha Andando, 1989.






 

Criaturas de João Cabral

João Cabral de Melo Neto
 

 



Cícero Dias - Casal na varanda
Cícero Dias (1907-2003), pintor pernambucano, Casal na varanda



TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma teia tênue
se vá tecendo, entre todos os galos.


2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


          De A Educação pela Pedra (1966)





Cícero Dias - Casal no barco
Cícero Dias, Casal no barco




PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

          De Quaderna (1960)




Cícero Dias - Mulher e guarda-chuva
Cícero Dias, Mulher e guarda-chuva




FORTE DE ORANGE, ITAMARACÁ

A pedra bruta da guerra,
seu grão granítico, hirsuto,
foi toda sitiada por
erva-de-passarinho, musgo.
Junto da pedra que o tempo
rói, pingando como um pulso,
inroído, o metal canhão
parece eterno, absoluto.
Porém o pingar do tempo
pontual, penetra tudo;
se seu pulso não se sente,
bate sempre, e pontiagudo,
e a guerrilha vegetal
no seu infiltrar-se mudo,
conta com o tempo, suas gotas
contra o ferro inútil, viúvo.
E um dia os canhões de ferro,
sua tesão vã, dedos duros,
se renderão ante o tempo
e seu discurso, ou decurso:
ele fará, com seu pingo
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem,
se possuam, ferro e musgo.

          De A Escola das Facas (1980)

 


Cícero Dias - Mulher na varanda
Cícero Dias, Mulher na varanda




UMA BAILADORA SEVILHANA

Como e por que sou bailadora?
Quando era entre menina e moça

tinha comprida cabeleira
que me vinha até as cadeiras.

Me diziam: com essas tranças
não pode não votar-se à dança.

Então, me ensinam a dançar.
Sou? O que não pude decorar.

Vendo famosa bailadora:
ei-la apagada, quase mocha.

"Não te agrada F... de Tal,
que todo dia sai no jornal?"

"Não gosto: dança repetido;
dança sem se expor, sem perigo;

dançar flamenco é cada vez;
é fazer; é um faz, nunca um fez."

          De Agrestes (1985)




Cícero Dias - Paisagem com o bondinho do Pão de Açúcar
Cícero Dias, Paisagem com o bondinho do Pão de Açúcar




QUESTÃO DE PONTUAÇÃO

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

          De Agrestes (1985)


poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015


João Cabral de Melo Neto
   In Poesia Completa e Prosa
   Nova Aguilar, 1a. ed., Rio de Janeiro, 1994
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* Antonio Brasileiro, "Toada", in Poemas Reunidos (2005)
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- Todas as imagens: pinturas do pernambucano Cícero Dias (1907-2003)