André Caramuru Aubert
Amigas e amigos,
Já tive a oportunidade de dizer aqui no poesia.net — não me
lembro bem onde nem quando — que considero a poesia uma atividade
semiclandestina. Um exemplo disso ocorreu entre mim e André Caramuru Aubert,
autor destacado neste boletim.
Conheci Caramuru (na época, se não me
falha a memória, ele não assinava o Aubert) no jornalismo, no início dos anos
90. Eu era editor de uma revista de tecnologia digital e ele, colaborador,
responsável por uma coluna sobre computadores Apple.
A coluna deixou de
ser publicada, e nos perdemos de vista. Nunca me passara pela cabeça que aquele
colunista, conhecedor de computadores Macintosh, alimentasse qualquer interesse
por literatura, muito menos por poesia. O mesmo valia da parte dele em relação a
mim.
Reencontrei-o este ano, durante o lançamento de um livro — de poesia, claro.
Fiquei sabendo que ele também daria a público em breve um livro de... poesia.
Contei-lhe que editava um boletim de poesia e que também havia acabado de lançar
uma coletânea. O espanto foi mútuo. Éramos poetas clandestinos.
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André Caramuru Aubert é paulistano, nascido em 1961.
Historiador, tradutor e editor, ultimamente colabora no jornal literário
Rascunho, no qual apresenta e traduz poetas estrangeiros. Prosador, Caramuru
publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e
Cemitérios,
todos pela Editora Descaminhos, especializada em livros digitais.
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outubro / dezembro, o primeiro livro de poemas de André Caramuru, divide-se
em três partes: “outubro”, “dezembro” — já anunciadas no título — e, como se
fosse um CD musical, uma terceira chamada “bônus tracks”. As duas primeiras,
fazendo jus aos nomes, contêm 31 poemas cada, cujos títulos se organizam como
os dias daqueles dois meses, de 1 a 31. Na parte adicional, são apenas dez poemas,
também numerados sequencialmente.
Para a pequena amostra de poemas ao lado, selecionei três “dias” de outubro e
quatro de dezembro. Desde a estrutura calendárica, percebe-se que a coletânea
de André Caramuru busca uma forma de abraçar o tempo, dando conta de acontecimentos
miúdos, extraídos da memória ou observados em casa, na rua, no supermercado
— enfim, na vida cotidiana.
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OUTUBRO
O primeiro poema da seção "outubro", “4. tempo”, provém da memória. Desenha um quadro
no qual a avó “tenta segurar o tempo, que escorre entre seus dedos”. Em “11. domingo”,
o narrador, enfastiado e sozinho em casa, “olha o tempo passar”. A nota que se destaca
na “vida besta” desse domingo é o rugido distante de uma motocicleta.
“22. poema” é como uma anotação: algo que o narrador não disse à amada, e perdeu
definitivamente a oportunidade de fazê-lo. Como se vê, as questões são diminutas,
pedestres e nunca se levantam do chão. Nenhuma dúvida ou anseio transcendental,
nada que se arvore a criar asas e saltar do trivial para o épico, ou mesmo para
o sentimentalismo rasgado.
Para manter esse tom estudadamente menor, os poemas de André Caramuru são sempre prosaicos.
Prosa, mesmo. Não há metáforas, nem mesmo outra figura de linguagem que confira ao discurso
alguma nuance mais sublime. Trata-se de uma poesia que deseja permanecer no chão. Neste aspecto,
torna-se clara a vinculação do poeta à produção lírica americana, muito marcada pela linguagem
direta e completamente destituída de ênfase.
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DEZEMBRO
Os dias de “dezembro” não são muito diferentes. “6” descreve uma caminhada pelas ruas de
São Paulo e traz para o primeiro plano, como objeto de observação, uma mulher de pele
muito branca — característica que conduz o narrador a concluir que ela mora num apartamento
onde “quase não deve bater sol”. Mais uma vez, vidas miúdas, registros banais.
Em “17. p/b” é a memória que retorna. O narrador se põe a pensar por que certos episódios de suas
lembranças ficaram registrados em preto e branco (o p/b do título). No dia seguinte, “18. celebrar
a vida”, misturam-se cenas cotidianas a informações do noticiário. No primeiro movimento, o
narrador acorda e se sente péssimo, “com a cara de Muamar Kadafi” — não o jovem, mas o
derrotado e massacrado Kadafi. Resolve, então, sair para “celebrar a vida”. Entra num supermercado.
Ironia nada sutil: então o supermercado é o lugar para “celebrar a vida”?
No centro de compras, vem uma exaustiva sequência de ofertas, preços, listas de produtos, “pacotes com doze
unidades, pague onze”. Incrivelmente, o espaço mercantil e a música ambiente transformam o
ex-malogrado Kadafi em alguém confiante, que sente “o privilégio de estar vivo”. Milagre!
Outra ironia: até mesmo a música tocada no supermercado, não por acaso duas canções de
contestação — “Samba de Orly” (Chico Buarque/ Toquinho/ Vinicius de Moraes) e “Get Up, Stand Up”
(Bob Marley) — passam a funcionar, ao contrário, como elementos anestesiantes dentro da equação
que iguala felicidade a consumo.
O último poema de dezembro mostrado aqui é “30. autocrítica”. Num texto que tem todo o jeito de
lamentação e confissão de fracasso, o poeta faz na verdade uma profissão de fé. Com ácida ironia
dirigida a autores clássicos, letristas da MPB, concretistas e surrealistas, ele na verdade afirma
sua crença no tipo de poesia que escreve — aquela que segue os mesmos padrões dos poetas
americanos que lê e traduz.
Não é à toa que, no prefácio de outubro / dezembro, o poeta Alberto Bresciani associa a poesia de
André Caramuru Aubert à do americano William Carlos Williams, um dos pioneiros dessa poesia despojada,
reduzida ao osso. Diz Bresciani: “Os dois poetas, convictos, dispensam efeitos especiais de última
geração, selecionando cuidadosamente as palavras, as mais descomplicadas, para nomear o mundo”.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
Cada bicho
com seu capricho • Carlos Machado, poemas • Geraldo Valério, ilustrações
Convido os amigos de São Paulo para o lançamento de
meu livro de poemas para crianças, Cada bicho com seu capricho, publicado pela Editora MOVpalavras,
especializada em literatura infantil.
Será, na verdade, um lançamento
coletivo, com sessão de autógrafos de sete autores:
• Carlos Machado – Cada bicho com seu capricho
• Cristiane Tavares e Chris Mazzota – Aos olhos do mar
• Dani Gutfreund – Olha lá a Ana!
• Danilo Gusmão – céu-tamanho
• Laura Teixeira – Bolinha
branca
e Pássaro-desenho
• Marcelo Cipis – Meus tipos esquecíveis
• Renato Zapata - Menino Semente
Quando: Domingo, 04/10/2015, das 15h às
18h
Onde: Livraria da Vila Rua Fradique Coutinho, 915 São Paulo - SP
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Treme Ainda • Fabio Weintraub
Caçambas • Ruy Proença
Os poetas Fabio Weintraub e Ruy Proença lançam juntos, no Rio e em São Paulo, seus livros de poemas Treme Ainda
(Fabio) e Caçambas (Ruy), ambos pela Editora 34.
No Rio de Janeiro:
Sábado, 26/9, das 14 às 18h
Espaço Azougue Editorial
Rua Visconde de Pirajá, 82, loja 101, subsolo
Em São Paulo:
Quinta-feira, 15/10, das 19 às 21h30
Casa das Rosas
Av. Paulista, 37 - Bela Vista
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Dias de outubro e dezembro
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André Caramuru Aubert
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Steve Mills (1959), pintor fotorrealista americano,
De pé (2008)
|------> Três dias de "Outubro"
4. tempo
no jardim interno da casa de interior, repleto de folhagens coloridas
minha avó sentada, na cadeira de vime tomando sol; um sol tépido de
outono, vestida com uma camisola de flanela quadriculada, vermelha,
branca e amarela, ela tem os óculos de leitura dependurados por uma
correntinha e com uma das mãos segura um pedaço do jornal do dia, que não
lê, e com a outra tenta segurar o tempo, que escorre entre seus
dedos, mas não consegue.
Steve Mills,
Jarras de luz (2001)
11. domingo
enjaulado nesta sala, neste apartamento neste domingo ensolarado de
céu muito azul eu olho o tempo passar sem ter o que fazer, para quem
ligar pego uma cerveja na geladeira e lá fora, longe, uma motocicleta
ruge, quebrando o silêncio eu vou até a janela e olho.
Steve Mills,
Náutica
22. poema
para Clélia
Eu deveria ter dito que os seus olhos castanhos
resumem, neles, tudo o que há no Universo, tudo mesmo, toda a magia, o
espaço e o tempo, a
[ energia, a música, tudo, mas eu não disse (talvez
por ser tímido, ou por acreditar que a frase sairia
[ forçada e artificial),
e o momento passou.
Steve Mills,
Xadrez chinês (2003)
|------> Dias de "Dezembro"
6.
7:30 da manhã, céu azul, e eu subo, distraído, a escadaria do
viaduto, e estou na Teodoro Sampaio, indo tirar dinheiro no
caixa-eletrônico, logo ali adiante (duzentos metros); as pessoas já se
movimentam pela rua, vão e vêm, o ponto de ônibus está repleto, a
banca de frutas vai sendo armada, e de dentro de uma galeria sombria e
profunda como uma gruta, sai uma mulher que tem a pele muito branca, e
eu fico imaginando que o apartamento onde ela mora provavelmente tem
vista para o prédio ao lado, e na sala e nos quartos, é certo, quase
não deve bater sol.
Steve Mills,
Não lidos
17. p/b
será por causa das fotos, que as memórias da infância às vezes vêm em
preto e branco? que me vem em preto e branco o mundo que eu via, da
janela do banco de trás do Gordini marrom, que numa longínqua tarde de
domingo subia resfolegante a Anchieta, na volta de Santos? que me vêm
em preto e branco: o cheiro de queimado, o motor fervendo, a fumaça, o
carro parado no acostamento, e eu sentado, ali, numa pedra, olhando,
pensando, esperando o tempo passar, enquanto meu pai, gringo, alto, de
bermuda cáqui e camisa xadrez abria a tampa do motor, do qual ele nada
entendia, e coçava a cabeça, enquanto a mulher dele, de vestido florido,
óculos escuros e lenço na cabeça, lamentava aquilo tudo? daquele
domingo não restaram fotos, por que será que estas imagens vêm para mim,
agora, em preto e branco?
Steve Mills,
Canetas e lápis (1995)
18. celebrar a vida
acordo, vou ao banheiro. olho meu rosto no espelho, me assusto: estou inchado, os
olhos injetados, pareço Muamar Kadafi, estou com a cara de Muamar
Kadafi, e não
é o Kadafi jovem, confiante, cercado por um batalhão de seguranças altas,
belas e búlgaras, mas aquele do fim, que apareceu na TV,
perseguido,
assustado, capturado num buraco de esgoto e linchado sem piedade. é este
Kadafi que o espelho me mostra hoje.
vou para a rua, vou celebrar a
vida. agora estou neste lugar, e meu carrinho prateado brilhante trisca o
piso brilhante, avança, corre, derrapa nas curvas. as prateleiras brilham
e eu celebro a vida. café do ponto a 9,99. antigamente batia um cheiro
gostoso de pó de café quando eu passava por aqui, não
mais, agora eles embalam a vácuo. não posso me
esquecer do requeijão, do detergente de
pia. oferta: camarão congelado a 39,49; isto é oferta?
as prateleiras
brilham. um casal de velhinhos presta muita atenção nos preços e discute
sobre cada produto. será que a vida toda, deles, foi assim? oferta:
azeitona verde fatiada 155 gramas a 6,99. sou feliz. esqueço minha cara
de Kadafi. oferta: papel higiênico neve, pacote com doze
unidades, pague
onze, por 14,39. água de coco, vinho, achocolatados. oferta: cerveja
importada irlandesa a 9,50. fico tentado mas não levo. ofertas: pão
integral light, macarrão italiano de grão duro, abóbora japonesa
descascada. sinto, em minhas entranhas, o privilégio de estar vivo. a
música me embala e me conduz. eu derrapo nas curvas, eu batuco no
carrinho prateado. Chico Buarque manda que o irmão pegue o avião, Bob
Marley manda que eu me levante e me erga.
Steve Mills,
Começando de novo (2004)
30. autocrítica
eu sempre
sonhei escrever um poema longo, imponente e épico, nem que não fosse, vá lá,
como a Odisseia, a Divina Comédia, os Lusíadas, o Eugene Onegin ou,
ainda, o Fausto. Mas que quando alguém lesse pudesse dizer, ah, este moço
se inspirou no Cobra Norato, ou nos Cantos, ou no Waste Land,
talvez no Patterson, quem sabe no Poema Sujo, ou ainda na
Morte e Vida Severina, nas
Dream Songs, ou no The Morning of the Poems.
eu também pretendi
compor poemas como as canções tão lindas que os brasileiros criam, poemas
que saíssem leves e líricos, falando de barquinhos que
vão e vêm, de
pegar trens azuis e de lugares onde o imperador fez xixi.
e teve
uma época em que eu queria, como os poetas concretos, usar tesoura, cola
e xerox e formar quadrados, círculos labirínticos e imagens de efeito
com
as letras e as palavras, mas
depois desisti, embora nunca tenha
abandonado o desejo de saber redigir poemas meio surrealistas, meio
vagos
e pouco claros até mesmo para mim, tão na moda, tão em uso, daqueles que
são mais ou menos desse jeito: pássaros voam, rios de fogo / a boneca
estraçalhada / asfalto / luz / o que há? a moça pálida atravessa a
rua, o
velho / o que há? a vida / de dentro do buraco o bueiro me olha
nos olhos / meus dentes apodrecem e caem / o sobrevoo.
no fim das contas, o que
eu gostaria mesmo era de poder escrever poemas que impressionassem as
pessoas, que as comovessem e as deixassem sem fôlego;
que as levassem a
rir de tristeza e a chorar de alegria; que fossem o sinônimo da arte em
sua mais pura realização; e que, o mais importante,
fizessem com que os
homens (sofridamente) me invejassem, e as mulheres (ardentemente) me
desejassem...
ah, eu queria tanta coisa! nada disso, porém, eu
consigo; limitado que sou, só faço poemas sobre
os meus
fantasmas, e os
danados teimam em ser simples, concisos, piegas e até (fazer o quê?) meio
sem graça.
que pena.
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