Número 22

Sexta-feira, 25 de outubro de 2002 

"Somos humanos, isto é, achamos que somos." (C.D.A.)

  Falta um disco

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


Cronista durante cinco décadas a fio, Drummond exibia uma capacidade privilegiada de observar pequenos fatos do cotidiano e transformá-los em matéria para suas colunas de jornal. Nesta crônica cheia de bom-humor, ele se diverte com uma mania que, de vez em quando, reaparece: a de pessoas que vêem discos voadores, ETs, duendes e afins.

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DRUMMOND CORROMPIDO

Atenção, drummondianos: cuidado com o livro Carlos Drummond de Andrade - Poesia, volume 118 da Coleção Nossos Clássicos, da Agir Editora. Esse voluminho didático excede a cota de erros aceitáveis, em qualquer critério que se queira aplicar. Ao folhear o livro pela primeira vez, dei de cara com duas adulterações graves. No conhecido poema “O Lutador” (do livro José), os versos iniciais viraram: “Lutar com palavras / é a luta mais vã, / Enquanto lutamos/ mal rompe a manhã.” Somente aí, dois erros: vírgula em lugar do ponto (em vã) e "Entanto" virou "Enquanto". Em “Consideração do Poema” (de A Rosa do Povo), o verso “Poeta do finito e da matéria” foi corrompido para “Poeta do finito e da miséria”!

Depois dessa primeira impressão muito má que o livro me causou, procurei o site da Agir (www.agireditora.com.br) e deixei para os editores (editorial@agireditora.com.br) um e-mail expressando meu estranhamento. Uma mensagem, diga-se, educada, na qual fiz constar meu nome, endereço e tudo mais, para que não parecesse uma coisa de maluquinho que só deseja ver o circo pegar fogo. Vocês responderam? Nem eles.

Então, como já desconfiava que haveria mais erros, passei a ler o volume, agora com mais atenção e intenção. Não deu outra: o livro traz 45 poemas — 21 contêm erros, em certos casos até cinco no mesmo texto. No poema “Eterno” (de Fazendeiro do Ar, reproduzido aqui no boletim n. 13), sumiram com o verso “é tudo que passou, porque passou”. Isso mesmo: o verso desapareceu!

No mais, entortam a pontuação, engolem os esses dos plurais, trocam palavras e, pior, quebram versos onde não existe quebra ou, então, juntam versos originalmente separados. Há também um total desrespeito à estrofação: ora reúnem grupos de versos que nas obras oficiais estão separados, ora desmembram linhas que formavam um bloco único.

Esse desleixo editorial é terrivelmente lamentável, em especial quando se trata de obra didática. E os erros se multiplicam, pois o voluminho já está na 3ª reimpressão da 2ª edição. Fiquem de olho.

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O alerta acima foi escrito em 2002. O livro em questão certamente não está mais circulando. Eu poderia, portanto, eliminar a nota. Mas decidi mantê-la como registro histórico.

Junho/2014

 


Ouça Drummond lendo o poema "Falta um Disco"


Amor,
estou triste porque
sou o único brasileiro vivo
que nunca viu um disco voador.
Na minha rua todos viram
e falaram com seus tripulantes
na língua misturada de carioca
e de sinais verdes luminescentes
que qualquer um entende, pois não?
Entraram a bordo (convidados)
voaram por aí
por ali, por além
sem necessidade de passaporte
e certidão negativa de IR,
sem dólares, amor, sem dólares.
Voltaram cheios de notícias
e de superioridade.
Olham-me com desprezo benévolo.
Sou o pária,
aquele que vê apenas caminhão
cartaz de cinema, buraco na rua
& outras evidências pedestres.
Um amigo que eu tenho
todas as semanas vai ver o seu disco
na praia de Itaipu.
Este não diz nada para mim,
de boca, mas o jeito,
os olhos! contam de prodígios
tornados simples de tão semanais
apenas secretos para quem não é
capaz de ouvir e de entender um disco.
Por que a mim, somente a mim
recusa-se o OVNI?
Talvez para que a sigla
de todo não se perca, pois enfim
nada existe de mais identificado
do que um disco voador hoje presente
em São Paulo, Bahia
Barra da Tijuca e Barra Mansa.
(Os pastores desta aldeia
já me fazem zombaria
pois procuro, em vão procuro
noite e dia
o zumbido, a forma, a cor
de um só disco voador.)
Bem sei que em toda parte
eles circulam: nas praias
no infinito céu hoje finito
até no sítio de um outro amigo em Teresópolis.
Bem sei e sofro
com a falta de confiança neste poeta
que muita coisa viu extraterrena
em sonhos e acordado
viu sereias, dragões
o Príncipe das Trevas
a aurora boreal encarnada em mulher
os sete arcanjos de Congonhas da Luz
e doces almas do outro mundo em procissão.
Mas o disco, o disco?
Ele me foge e ri
de minha busca.

Um passou bem perto (contam)
quase a me roçar. Não viu? Não vi.
Dele desceu (parece)
um sujeitinho furta-cor gentil
puxou-me pelo braço: Vamos (ou: plnx),
talvez...?
Isso me garantem meus vizinhos
e eu, chamado não chamado
insensível e cego sem ouvidos
deixei passar a minha vez.
Amor, estou tristinho, estou tristonho
por ser o só
que nunca viu um disco voador
hoje comum na Rua do Ouvidor.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In Claro Enigma
José Olympio, 1951
© Graña Drummond