Maria da Conceição Paranhos
Caros amigos,
Baiana de Salvador, a poeta Maria da Conceição Paranhos publica desde o final
dos anos 60, tanto em edições solo como participante de coletâneas. Em 1969, ela
conquistou o prêmio Arthur Salles com seu livro de estréia em poesia, Chão
Circular. Formada em letras, é doutora em teoria da literatura e também
escreve ensaios e contos.
Em 1967, ao lado de nomes como Myriam Fraga, Ruy Espinheira Filho, Antonio
Brasileiro e Florisvaldo Mattos, participou da antologia Moderna Poesia
Bahiana (sic), publicada pelas Edições Tempo Brasileiro.
Os poemas que selecionei para este boletim estão no livro As Esporas do Tempo,
de 1996. Maria da Conceição desenvolve um lirismo centrado na reflexão sobre a
vida, o passar do tempo os acidentes do amor, a insônia, a convivência difícil.
Em cada passo a poeta reencontra no ser a embargada "sede de voar", revelada
pela poeta em "Ilha Iluminada".
Um abraço,
Carlos Machado
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Sede de voar
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Maria da Conceição Paranhos |
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ESCUTA
Ocorre que há uns lapsos na história,
há uns lapsos. Então vêm, videntes,
relatar histórias conhecidas
em noites longas de calor, insônia.
Ouvimos. Pacientemente.
Sob discursos jazem outras vozes.
Necessário cantar.
Animais se aninham ao nosso ânimo,
baixam seu brado à espera da canção.
E os leões de pedra dos portões
deixam rolar os globos que os sustentam.
Falamos línguas obscenas.
Não. Endureceu-se o ouvir.
Indefinidamente?
Afrontar a rija espada dos confrontos,
permitir soluções, se o peito arfa
curvado de rajadas imprudentes.
Se não se deixa a alma nesses lances
em que transidos vagamos dementes,
como afrontar as rugas, decifrar mensagens
(não correm ventos nas paisagens mortas,
largadas ao relento)?
Necessário é amar.
Primeiro e último tormento.
ILHA ILUMINADA
A vida surge rara,
ressurge das fenestras,
uma explosão contida,
um girassol sedento
imóvel na moldura.
Vigiam olhos d’água —
aberto azul turquesa,
piscina de desejo
a refletir o alto.
Cá dentro, hospital,
o choro dos nascidos.
Também meu ventre abriu-se,
menino, numa rosa.
De bruços na varanda,
medito e reencontro
um corpo tumescido,
a face repartida
nos ritos da espécie
e sua garra firme
e minha solidão.
Retomo minha voz:
embargo, engasgo,
tosse, difícil
redenção.
Suor, em fio, escorre
da sede de voar.
Janela tão pequena,
qual ilha iluminada,
afronta a escuridão
dos blocos, argamassa,
em fila, ameaça.
Eu grito, de paixão.
DESVELANDO O TEMPO
Ocultem os outros
a palavra tempo
em poemas curtos
com tal tema, centro.
A palavra tempo
deve ser usada
tantas vezes quanto
impuser nossa alma.
A palavra tempo
descerra suas portas
de argila e de vento,
suas linhas tortas.
Escrever o tempo
permite retornos:
ligeiros transtornos,
fugaz contratempo.
Porque tempo, tempo,
tempo passa, corre;
se você não dorme,
ele pára, lento.
Importa saber
com visão preclara
o que quer dizer
o tempo, que exala.
CONSTRUÇÃO TARDIA
Acordamos tarde para a tarefa
de juntar as partes da vida,
jogo de armar em mãos inábeis.
Demasiado próximos da seiva,
enxergamos pouco.
Quem disse que é tão simples
dividir a vida em frases?
(ó infância rasurada!)
Só tempos fases.
A vida invade o tempo
(e não o oposto)
e nos atordoa
com sua face leve,
sedução e jogo,
ó vida, vida,
construção tardia:
acordamos tarde nessa arquitetura.
Grande é a gula. Parcas as nascentes.
Mas a garganta molha-se de sede,
procriando espaços de viver.
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