Número 112 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 2005 

«Fazer um poema/ não é dizer coisas profundas./ É ver as coisas/ como as coisas não são.» (Francisco Carvalho)
 


Czeslaw Milosz



Caros,

O poeta polonês Czeslaw Milosz (1911-2004) foi um homem com uma história pessoal marcada pelas reviravoltas políticas do século XX. Nasceu onde hoje é a Lituânia e lá viveu até a juventude. Passou a infância em meio às batalhas da Primeira Guerra Mundial, na frente russa. O pai era engenheiro e construía estradas para o czar. Depois da guerra, sua cidade natal passou a fazer parte da Polônia (o polonês era, originalmente, a língua de sua família).

Durante a Segunda Guerra Mundial, Milosz estava em Varsóvia, combatendo os nazistas. Com a formação da república socialista polonesa, ele se tornou adido cultural em Washington. Desiludido com o stalinismo, pediu asilo político na França em 1953. Lá, nesse mesmo ano, publicou o livro A Mente Cativa, que criticava o Partido Comunista Polonês. A obra, naturalmente, foi censurada na Polônia, onde circulava de forma clandestina.

Em 1960, Milosz assumiu a posição de professor de literatura na Universidade da Califórmia, em Berkeley, e naturalizou-se americano dez anos depois. Poliglota — dominava russo, polonês, inglês, latim, grego e hebreu —, ele traduziu poetas como Shakespeare, Milton, Baudelaire e T.S. Eliot para seu idioma natal.

Em 1980 o poeta recebeu o Prêmio Nobel de literatura, o que elevou bastante sua popularidade. Atualmente, uma pesquisa no Google com a chave “Czeslaw Milosz” traz 114 mil resultados. Boa parte dos sites que fazem esse número são em polonês. Milosz voltou para a Polônia em 1989.

Lá, sua popularidade é tanta que no monumento do sindicato Solidariedade em Gdansk há três figuras: Lech Walesa, o papa João Paulo II e Milosz. O poeta morreu na Polônia, em agosto de 2004, aos 93 anos.

E quanto à poesia de Milosz? Os poemas transcritos ao lado vêm da antologia Não Mais, publicada em 2003 pela editora da Universidade de Brasília, com seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Na apresentação, os tradutores ressaltam bem a preocupação de Czeslaw Milosz em perseguir a realidade em seus poemas: “Sou um poeta da realidade. / Digo que a terra não é um eco, / Nem o homem um fantasma.”

Católico — como a maioria  dos poloneses, conforme vimos agora com a morte do papa —, Milosz declarou certa vez ao jornal The Washington Post que era “um grande partidário da esperança humana”.

Observem a força dos versos finais do poema “Não Mais”, que deu título à antologia brasileira: “Da resistência da matéria / O que se retém? Nada, quando muito o belo. / Então devem nos bastar as flores da cerejeira / E os crisântemos e a lua cheia.”

Apreciem também a elegância de “Janela” e “Dádiva”. Degustem, por fim, o bom-humor da deliciosa “Descrição de si Mesmo Junto a um Copo de Whisky no Aeroporto...”, escrito pelo poeta aos 89 anos.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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INVENÇÃO RECIFE

Nesta quarta-feira, 13 de abril, em Recife, realiza-se o lançamento da antologia poética Invenção Recife Vol. 2. O trabalho tem apresentação do poeta e ensaísta mineiro Fabrício Marques e a participação de Alípio Carvalho Neto, Eduardo Diógenes, Frederico Barbosa, Jomard Muniz de Britto, Marcelino Freire, Mário Hélio, Paulo Bruscky, Pietro Wagner, Sérgio Ricardo Soares e Siba Veloso.
Local: Teatro Hermilo Borba Filho
Rua do Apolo, 121 – Recife
Quando: 13/03/2005, 19 horas


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Um poeta da realidade

Czeslaw Milosz

 


 



NÃO MAIS

Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o
                                          [ pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se
                                          [ abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das
                                          [ galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus
                                          [ pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe
                                          [ o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro
                                          [ pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera
                                          [ pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.

                         Montgeron, 1957







JANELA

Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à luz.

Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de fruto.

Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu neste sonho.

                         Berkeley, 1965



DÁDIVA

Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de
                                        [ madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse
                                        [ possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena
                                        [ invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.

                         Berkeley, 1971







DESCRIÇÃO DE SI MESMO JUNTO A UM COPO DE WHISKY NO AEROPORTO, DIGAMOS EM MINNEAPOLIS


Meus ouvidos ouvem cada vez menos das con-versas, meus olhos vão ficando mais fracos, mas não se fartaram.

Vejo suas pernas em minissaias, em calças com-pridas ou tecidos voláteis,

Observo uma a uma, suas bundas e coxas, pen-sativo, acalentado por sonhos pornô.

Velho depravado, é a cova que te espera, não os jogos e folguedos da juventude.

Não é verdade, faço apenas o que sempre fiz, compondo cenas dessa terra sob as ordens de uma imaginação erótica.

Não desejo a estas criaturas, desejo tudo, e elas são como o signo de uma convivência extática.

Não é minha culpa se somos feitos assim, metade contemplação desinteressada, e metade apetite.

Se após a morte eu chegar ao Céu, lá deve ser como aqui, só que me terei desfeito da obtusidade dos sentidos e do peso dos ossos.

Tornado puro olhar, sorverei ainda as proporções do corpo humano, a cor da íris, uma rua de Paris em junho de manhãzinha, toda a incompreensível, a incompreensível multidão das coisas visíveis.

                         (2000)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Foto: CC BY-SA 4.0 Artur Paulowski

Czeslaw Milosz
In Não Mais
Seleção, tradução e introdução de
Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza
Editora UNB, Brasília, 2003