José Chagas
Caros amigos,
Paraibano de nascimento e maranhense na arte, José Chagas (1924-) é dono de obra
vasta e significativa, no entanto pouco divulgada. Com mais de vinte livros de
poesia, Chagas estreou em 1955 com o livro Canção da Expectativa.
Hábil sonetista, cultor de rimas preciosas, ele escreve no pórtico do livro
Os Canhões do Silêncio (1979): "Quem tem medo de rima?" E, como para
provar sua destreza em versos não rimados, fecha o mesmo intróito com o texto
"[Por Trás do Poema]", reproduzido ao lado. (Atenção: estou usando entre
colchetes os primeiros versos ou títulos por mim atribuídos a poemas ou trechos
sem título.)
Os Canhões é um volume em que José Chagas toma como ponto de partida o
Desterro, um bairro de São Luís, e daí constrói, em mais de 200 páginas, com
ritmo variado, uma crônica da existência humana.
Chagas parece dedicar uma preferência toda especial pelo metro curto: há
numerosos quadrissílabos, pentassílabos e até linhas de apenas duas ou três
sílabas métricas. Dentro dessas medidas, que a outros parecem cubículos
sufocantes, sem espaço para a expansão
poética, Chagas consegue mover-se sem perder a fluência ou soar artificial.
Exemplo: o trecho "[Aqui os telhados]".
Uma amostra da vasta produção sonetística de José Chagas é dada ao lado por
"Lavoura Azul", extraído do livro homônimo, de 1974. Esse volume difere dos
outros do poeta num detalhe: compõe-se de poemas soltos, cada qual com seu
título. Em geral, Chagas elege um título e um tema e apresenta o livro na forma
de um poema único.
Esse mesmo procedimento está em Antropoema, de 1988, uma coleção de
sonetos que reflete sobre os avanços da ciência médica para estender a vida. O
soneto "85", ao lado, trata do transplante de coração.
Veja, ainda, três trechos do volume Alcântara — Negociação do Azul ou A
Castração dos Anjos (1994), que se debruça sobre as ruínas coloniais da
cidade de Alcântara, no Maranhão. Em certo trecho, o poeta avisa: "Ninguém é
visitante/ de Alcântara/ sem uma visita antes/ aos escombros de si mesmo".
Noutro momento, empolgado, ele descobre: "Alcântara não é substantivo/ é verbo
(...) Eu alcantarei/ tu alcantarás/ ele alcantará."
Para conhecer mais de perto o trabalho do poeta José Chagas, consulte o volume
Antologia Poética (EDUFMA/ Topbooks, 1998), ainda disponível nas
livrarias. É uma incursão que vale a pena. Se tiver sorte, você também poderá
encontrar a coletânea Os Canhões do Silêncio, em 3a. edição, publicada
pela Editora Siciliano em 2002.
Um grande abraço,
Carlos Machado
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O poeta José Chagas faleceu em 13 de maio de 2014, em São Luís, aos 89 anos de
idade.
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[POR TRÁS DO POEMA]
Por trás do poema
não se respira
Ventos se quebram
rolam onde o chão trabalha
um verde de outra cor
Por trás do poema
devemos estar mortos
inoticiados
Palavras emigram
vão para o labor de espessas
emoções
Por trás do poema
as chuvas se gastam
gastam-se os vôos os frutos
a alegria branca das praias
O tempo inicia seus escombros
por trás do poema
Uma rua de estátuas
cai sua cinza
cai o seu nada
de muitos séculos
E um rio em si mesmo se afoga
seca em suas areias
a vontade de mar
Não olheis nunca por trás do poema
podem vossos olhos
em sal tornar-se
[AQUI OS TELHADOS]
Aqui os telhados
brotam como roças.
São vales plantados
de saudades nossas,
suspensos jardins
de uma babilônia
de sonhos afins
e de lenda errônea.
Aqui as lembranças
pastam, nas ruínas,
verdes folhas mansas
de saudades finas.
A memória come
desse verde estranho
e os dias em fome
trazem seu rebanho
para alimentar-se
durante o inverso
no verde disfarce
desse sonho eterno.
De Os Canhões do Silêncio (1979)
LAVOURA AZUL
Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.
Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.
Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.
Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.
De Lavoura Azul (1974)
85
O homem, na cirurgia,
a trocar peça por peça,
sucata que se avalia
pelo nada que se meça,
pensa que então se recria,
a acreditar na promessa
ou na pura fantasia
de que por si recomeça.
Mas na verdade ele tem
de esperar que morra alguém
que outorgue a peça exigida.
Pois são os mortos que outorgam
o favor de um novo órgão
como empréstimo de vida.
De Antropoema (1988)
[ALCÂNTARA]
Quem toca a pele
desse silêncio
sente nos dedos o vibrar
dos fatos
no acumular dos dias
formando séculos
em seu tecido de sombras
que costuram a face
do eterno
Que fere a pele desse silêncio
vê que o passado está ao alcance
das mãos
mas é impossível apanhá-lo
como se apanha um fruto
como se colhe uma flor
ou como se retém uma água
que se bebesse
ou nos batizasse
lavando os nossos nomes
para que pudessem ser ditos
na pureza dos ventos
ou dos passados conventos
•
Não se pode ver Alcântara
a olho nu
Alcântara requer
uma lente memorial
para ampliar
o que se contempla para trás
ou por detrás de nossas ruínas
humanas
ou para além do nosso esquecimento
através dos muros
endurecidos
dos séculos
O olho comum
é cego
que olho sem memória
não avista senão
a forma ilusória
da própria visão
O olho comum
não avista nada
além do debrum
da coisa visada
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A noite sobre Alcântara é mais densa
que qualquer noite de qualquer cidade
e as horas passam sem pedir licença
para o que nos encante ou desagrade
O tempo em seu eterno se condensa
e a escuridão não sabe o quanto dá de
seu mistério para a recompensa
de uma idade parada noutra idade
É que a noite de Alcântara incorpora
o que ficou de uma apagada aurora
cujo sol não se acende nunca mais
E Alcântara de noite sonha medo
o medo que ela tem de acordar cedo
todos os seus fantasmas ancestrais
De Alcântara - Negociação do Azul (1994)
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