Número 134 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 2005 

«Da resistência da matéria / O que se retém? Nada, quando muito o belo.» (Czeslaw Milosz)
 


Jorge Luis Borges


Caros,


É difícil escrever sobre escritores exponenciais. Fica sempre a sensação de que faltou dizer quase tudo. É o caso do poeta, ficcionista e bibliófilo argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que é seguramente o maior nome das letras em seu país e um dos pontos altos da literatura mundial no século XX.

Nascido em Buenos Aires, Borges transferiu-se em 1914 para a Suíça, onde completou o curso secundário. Em 1919, passa a morar na Espanha. No início dos anos 20, retorna a Buenos Aires. Aí publica, em 1923, seu primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires. Inicia, na mesma época, intensa colaboração com jornais e revistas. 

Em 1955, ele passa a integrar a Academia Argentina de Escritores e assume a diretoria da Biblioteca Nacional — posição que ocuparia até se aposentar, em 1973. Diretor de biblioteca: nada mais adequado ao modo de ser desse escritor. Dono de incrível erudição, Borges teve sua vida marcada pela profunda convivência com os livros.

Com vasta produção em poesia, contos, novelas e ensaios, Borges tornou-se um clássico moderno. Ele publicou, em separado, volumes de ficção e coletâneas de poesia. Mas, num movimento nada trivial, não raro misturou prosa e poesia num mesmo título. Na obra de Borges poesia e reflexão andam sempre de mãos dadas. Talvez esse seja um dos aspectos que dão ao seu trabalho sua feição clássica e atemporal.


É certo que, ao longo da vida, Borges, tornou-se um evidente reacionário. Em 1976, por exemplo, apertou a mão de Augusto Pinochet, o sanguinário ditador chileno, e aceitou dele uma condecoração. Isso lhe tirou de vez a possibilidade de competir ao Prêmio Nobel de Literatura — galardão que lhe seria mais do que merecido, em vista de sua estupenda obra.

No livro Pós-Escrito a O Nome da Rosa, Umberto Eco admite que o vilão do romance, o monge e bibliotecário Jorge de Burgos foi inspirado em Borges. "Todos me perguntam por que o meu Jorge, pelo nome, evoca Borges, e por que Borges é tão perverso. Mas eu não sei", escreve Eco. O escritor italiano parece lançar um olhar contraditório em direção ao argentino. De um lado, reconhece seu magnífico trabalho. De outro, condena seu alinhamento com o que havia de pior em ditaduras dos anos 70.

A ambigüidade de Umberto Eco é sintomática. Borges é um exemplo eloqüente de como a grande arte transcende as limitações humanas do artista. É um escritor para ser lido e relido. Um fazedor de realidades erguidas com palavras.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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LANÇAMENTO DUPLO

Publicados em revistas e na internet, os poetas Ana Rüsche e Fabio Aristimunho Vargas reúnem pela primeira vez seus escritos em livro. Ana Rüsche estréia com o volume Rasgada e Fabio Vargas traz o seu Medianeira, ambos pela Quinze e Trinta Edições. O lançamento dos dois livros será em São Paulo, na próxima semana:
Local - Casa das Rosas
            (Av. Paulista, 37)
Data - 20 de setembro, terça-feira
Hora - 20:00


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ANTONIO BRASILEIRO LANÇA SEUS POEMAS REUNIDOS

Registro, com satisfação, o lançamento do volume Poemas Reunidos, de Antonio Brasileiro, poeta baiano radicado em Feira de Santana. Criador do grupo Hera e da revista homônima — a publicação literária independente de maior longevidade no país —, Brasileiro compila nesse livro o conteúdo de sete coletâneas anteriores.

Em minha opinião, Brasileiro é, sem favor, uma das vozes mais importantes da poesia contemporânea brasileira. Pena que sua produção seja pouco conhecida. É de lamentar que o volume Poemas Reunidos, lançado pela Secretaria de Cultura da Bahia, não tenha circulação comercial. Assim, a maior parte de vocês, que lêem esta nota, não vai poder atestar minha afirmação sobre a alta qualidade da obra desse poeta.

Brasileiro foi tema do poesia.net. n. 26. Visite, ou revisite, o boletim e veja alguns dos poemas que estão nesse novo livro.

Aproveito o espaço aqui e acrescento mais dois:



DAS COISAS MEMORÁVEIS

Um dia o mundo inteiro vai ser
                           [ memória.
Tudo será memória.
As pessoas que vemos transitar
                           [ naquela rua,
as gentis ou as sábias, ou as más,
                 [ todas, todas.
E o mendigo que passa sem o cão,
o ginasta, a mãe, o bobo, o cético,
                           [ a turista.
Deus, inclusive, regendo o fim das
                           [ coisas
memoráveis, também será
                           [ memória. Deus
e os pardais.
E os grandes esqueletos do Museu
                           [ Britânico.
Todo sofrimento será memória. Eu,
                           [ sentado aqui,
serei só estes versos que dizem
                           [ haver um eu
sentado aqui.

De Pequenos Assombros (1998/2000)

 

DIVISOR DE ÁGUAS

Prezados senhores, somos todos
da mesma cepa se vistos de
                                  [ binóculo.
     Mas não somos os mesmos.

Eu, com meus poemas
                         [ indevassáveis
vós, com vossas gravatas
                         [ coloridas/
eu, com esta consciência de mim
vós, com vossa mesa farta/
eu, buscando o sempre inatingível
vós, com vossas gravatas
                         [ coloridas/
eu, meditando muito sobre vós
vós, com vossa mesa farta

Não somos da mesma cepa, mas
                         [ vistos
de binóculo somos os mesmos.
     Eis uma grande injustiça.

De A Pura Mentira (1978/1982)

O fazedor

Jorge Luis Borges

 


THE UNENDING GIFT

                    Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques

Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New England, sei que morreu. Senti,
        como outras vezes, a tristeza de
        compreender que somos como um sonho.
        Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são
                                            [ imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela não
                                            [ ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
        uma coisa a mais, uma das vaidades ou
        hábitos da casa; agora é ilimitada,
        incessante, capaz de qualquer forma e
        qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como
        uma música e estará comigo até o fim.
        Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na
                        [ promessa há algo imortal.)


THE UNENDING GIFT

Un pintor nos prometió un cuadro.
Ahora, en New England, se que ha muerto. Sentí
        como otras veces, la tristeza y la sorpresa
        de comprender que somos como un sueño.
        Pensé en el hombre y en el cuadro perdidos.
(Sólo los dioses pueden prometer, porque son
                                            [ inmortales).
Pensé en el lugar prefijado que la tela no
                                            [ ocupará.
Pensé después: si estuviera ahí, sería con el
        tiempo esa cosa más, una cosa, una de las
        vanidades o hábitos de mi casa; ahora es
        ilimitada, incesante, capaz de cualquier
        forma y cualquier color y no atada a
        ninguno.
Existe de algún modo. Vivirá y crecerá como una
        música, y estará conmigo hasta el fin.
        Gracias, Jorge Larco.
(También los hombres pueden prometer, porque
                   [ en la promesa hay algo inmortal).

               De Elogío de la Sombra, 1969


ARTE POÉTICA

                    Tradução de Rolando Roque da Silva

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
 

ARTE POÉTICA

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

               De El Hacedor (1960)
 


AS COISAS

                    Tradução de Ferreira Gullar

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.


LAS COSAS

El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido.

               De Elogío de la Sombra, 1969

 


FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO

                                     (trechos)

                    Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques

27. Não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.

30. Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.

33. Dá o santo aos cães, atira tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.

41. Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia...
 

FRAGMENTOS DE UN EVANGELIO APÓCRIFO

27. Yo no hablo de venganzas ni de perdones; el olvido es la única venganza y el único perdón.

30. No acumules oro en la tierra, porque el oro es padre del ocio, y éste, de la tristeza y del tedio.

33. Da lo santo a los perros, echa tus perlas a los
puercos; lo que importa es dar.

41. Nada se edifica sobre la piedra, todo sobre la arena. Pero nuestro deber es edificar como si fuera piedra la arena...


               De Elogío de la Sombra, 1969
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Jorge Luis Borges
•  "Arte Poética"
    In O Fazedor
   
Tradução de Rolando Roque da Silva
    Ed. Bertrand Brasil, 4a. ed., Rio, 1987
•  "As coisas"
    Tradução de Ferreira Gullar
    In Site do tradutor
•  "The Unending Gift"; "Fragmentos de um  
    Evangelho Apócrifo"
    In Obra Completa
   
Tradução (dos poemas indicados)
    de Carlos Nejar e Alfredo Jacques
    Editora Globo, São Paulo, 1999