Número 170 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 5 de julho de 2006 

«Avista-se o grito das araras.» (João Guimarães Rosa) *
 


Solange Firmino



Caros amigos,


Nascida em 1972, a carioca Solange Firmino é uma poeta dos tempos da internet. Escreve desde a adolescência e participou, nos anos 90, de várias antologias poéticas. Mas não tem livro-solo. Seus poemas estão publicados em sites, blogs, fanzines e jornais literários. Formada em letras, Solange é professora do ensino médio.

Quem tem a oportunidade de ler alguns versos de Solange Firmino percebe, sem esforço, que ela alimenta uma verdadeira fascinação pela mitologia grega. Isso fica patente no poema "Esfinge", que abre a pequena antologia ao lado, assim como em "Geometria de Ícaro", "Fluxo I" e "Fluxo II". É justamente nesses textos em que a poema atinge seus vôos mais altos. Na pele da esfinge, ela provoca: "Descobre o segredo que habita / onde me esquivo, / onde a pergunta é só disfarce, / reverso".

Em "Fluxo", I e II, ela vai buscar inspiração em Heráclito de Éfeso e seu rio em perpétuo movimento. Já em "Estátua de Mineiro no Rio", a poeta brinca com referências à obra de Drummond para compor um texto motivado pela estátua do poeta itabirano na praia de Copacabana.

Encontrei Solange Firmino em minhas deambulações na web à procura de poetas. Se no verdadeiro aluvião de sites e blogs literários há muita bobagem, muita coisa que não justifica um só minuto de leitura, há também essas surpresas gratificantes. Aleluia!


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



ATUALIZAÇÃO

A poeta Solange Firmino tem, hoje, vários livros publicados: Fragmentos da insônia (2016); Das estações (2017); Geometria do abismo (2017); e Alguns haicais e mínimos poemas (2018). Mais informações no blog da autora.   [31/10/2019]



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EPÍGRAFES

A partir deste número, acato uma sugestão do escritor Valdomiro Santana, de Salvador, e passo a indicar a fonte das frases e versos usados como epígrafe no cabeçalho do boletim. A informação vai ser colocada no final do retângulo bibliográfico, no rodapé da página.

 


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DRUMMOND E A COPA

A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?


      Carlos Drummond de Andrade,
      na crônica "Perder, Ganhar,
      Viver", publicada no Jornal
      do Brasil
em 21/06/1982.

Mude-se a data, e o texto acima vale para hoje. Apenas com uma diferença: na mesma crônica, Drummond diz que gostaria de passar a mão pela cabeça dos jogadores de 1982. Não conheço ninguém que tenha um pensamento tão carinhoso dirigido à pífia e ausente seleção de 2006.




 

Geometria de Ícaro

Solange Firmino

 




Andrew Atroshenko - Isabel
Andrew Atroshenko, pintor russo, Isabel



ESFINGE 

Decifra meu enigma
e toda a verdade,
toda a essência
por trás do verso.

Segue pela trilha do meu corpo
e revela a paisagem escondida.
Repousa sem tédio no meu abraço.
Implora pelo princípio e fim
de cada ato.

Descobre o segredo que habita
onde me esquivo,
onde a pergunta é só disfarce,
reverso.

Se me escondo,
é para devorar melhor.



Andrew Atroshenko - Sterling-detail
Andrew Atroshenko, Sterling (detalhe)



ESTÁTUA DE MINEIRO NO RIO

                              A Carlos Drummond de Andrade

Imagem fria e taciturna,
cem por cento de bronze.
Suporta calada e tímida,
no pedregoso calçadão,
a vida que persiste
ao redor.

Não profere palavras melodiosas
no chão varrido
onde pousa sua sombra;
não sabe se é noite, mar
ou distância,
na espantosa solidão do Rio,
onde voz e buzina se confundem.

Mas está cercada de mãos, afetos,
procuras.
Sem pensamento de infância ou saudade,
somente a contemplação muda
dos ritmos que passam:
curiosos ou indiferentes.
Param, fotografam,
agridem.

É uma nova categoria de eterno,
estar ali sem estar.
Legado de bronze no meio do caminho,
entre os homens e o mar,
no grande mundo que está crescendo
todos os dias.
Eterníssimo.



Andrew Atroshenko - Konowing
Andrew Atroshenko, Consciente



GEOMETRIA DE ÍCARO

O céu côncavo
abarca o vôo.

O sol oblíquo
derrete a cera
e o sonho.

O mar convexo
recebe
a queda.



FLUXO

         Uma pessoa não entra no mesmo rio duas vezes; na
         segunda vez não é o mesmo rio nem a mesma pessoa.

                                   Heráclito de Éfeso, 500 a.C.

Os dias se movimentam
em procissão contínua
águas de Heráclito
nos diferentes rios
relógios nas longas noites
siderais
astros e seus atos
em danças geométricas

Estrelas se formam
a cada instante que
inspiro
respiro
raios de sol tocam
seus acordes
nas frestas dos ventos
que copulam nas asas
dos pássaros
meu filho sorri no
mistério da existência

Silêncio ruído solstício
morte nascimento guerra
gira o mundo
em ritmo novo
repetição
sempre igual...





Andrew Atroshenko - Nature
Andrew Atroshenko, Nature



FLUXO II

Nasci na entranha antiga
do tempo
pertenço às gerações guardadas
no princípio do mundo
secreto

Trilho o caminho incógnito
que me leva ao destino
que não sei se
é finito
ou perene

É certo que não decifro
a existência hermética
presa aos movimentos
dos equinócios
antes e depois
pulsante vaivém de
ontens
hojes
amanhãs

Pássaro na gaiola,
labirintos me perderam
de mim,
quero o fio que
Ariadne deu a Teseu.




(DE)COMPOSIÇÃO

A asa
é um mistério
elaborado
no casulo.

Compõe-se de
espera
a borboleta.
Decompõe-se
a lagarta.
 



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Solange Firmino
Poemas inéditos em livro.
Todos foram publicados em sites literários.
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* João Guimarães Rosa, in Ave, Palavra.
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Imagens: Andrew Atroshenko (1965), pintor russo