Número 171 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 12 de julho de 2006 

«Todas as coisas são mesa para os pensamentos.» (Herberto Helder) *
 


Oswald, por Tarsila do Amaral, 1923


Caros,


O paulistano Oswald de Andrade (1890-1954) foi, como se sabe, uma das figuras mais importantes de nosso modernismo. Poeta, romancista e ensaísta, fundou em 1911 o jornal semanal O Pirralho. Em 1912, viajou à Europa e lá tomou contato com as novas idéias literárias. De volta ao Brasil, continuou no jornalismo e passou a escrever os primeiros poemas e romances.

No final dos anos 10, conheceu Mário de Andrade e Di Cavalcanti. Assim começou a discussão de idéias que iria desaguar na Semana de Arte Moderna. Polemista, impiedoso na crítica, Oswald foi o limpa-trilhos do modernismo. Sarcástico, seus manifestos (Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924; Manifesto Antropófago, 1928) são demolidores.

Os dois únicos livros de poesia publicados por Oswald de Andrade foram Pau-Brasil (1925) e Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927). A influência do poeta estende-se claramente até os dias atuais. Após sua morte, escritores como José Paulo Paes, os poetas concretos e os escritores da chamada poesia marginal beberam extensamente nas idéias do modernista.

José Paulo Paes e, posteriormente, os poetas marginais dos anos 70 e 80 praticaram o poema-piada, recurso lançado por Oswald. Os concretistas, por seu turno, valorizavam em especial a concisão do texto e o discurso anti-retórico presentes na poesia de Oswald de Andrade.

Naturalmente, os pontos abraçados por esses poetas representam o pomo da discórdia com as correntes literárias que se opõem a eles. O poema-piada, por exemplo, é abominado. Quem o critica entende que fazia sentido no primeiro momento do modernismo, quando um dos pontos-chave era manifestar a recusa à linguagem tradicional, ao "lado doutor", como ironiza Oswald no "Manifesto Pau-Brasil". Mas, passada essa fase, o poema-piada teria perdido o sentido com a consolidação das liberdades de expressão artística conquistadas pelo modernismo.

Ironicamente, o primeiro crítico do poema-piada foi exatamente Mário de Andrade, um modernista de primeira hora. Vale ressaltar que, a partir de certo momento, os dois Andrades da Semana de Arte Moderna colocaram-se em campos estéticos opostos. E também em rumos pessoais bem diferentes, já que os dois romperam a amizade em 1929.  "O poema-piada é um dos maiores defeitos a que nos levaram a poesia contemporânea", escreve Mário no ensaio "A Poesia em 1930", a propósito do volume Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade.

Segundo Mário, "o poema-piada é a única restrição de valor permanente que se possa fazer a Alguma Poesia". Escrito durante os anos 20, o primeiro livro do poeta itabirano  tem de fato essa característica protomodernista. (Há quem diga que os poemas-piada de Bandeira e Drummond são de outra estirpe. Mas não vamos entrar nisso, que é outra história.)

Fora da poesia, as idéias estéticas de Oswald de Andrade também tiveram forte reverberação na música popular, no fim dos anos 60, com o tropicalismo. Oswald está presente em várias canções do movimento, como "Tropicália"  (Caetano Veloso), "Marginália II" e "Geléia Geral" (Gilberto Gil e Torquato Neto).  Em "Geléia Geral",  a colagem do letrista Torquato Neto inclui explicitamente mais de uma referência oswaldiana.

Lá está, por exemplo, "A alegria é a prova dos nove", frase que Oswald repete como um refrão no Manifesto Antropófago. Também lá se encontra a expressão "Brutalidade jardim", que vem do romance experimental Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). Além disso, há todo um clima pau-brasil em "Marginália II": "entre cascatas, palmeiras / araçás e bananeiras / ao canto da juriti". Dois dos poemas ao lado, "Escapulário" e "Relicário", foram também musicados, respectivamente, por Caetano Veloso (LP Jóia, 1975) e João Bosco (CD Dá Licença, Meu Senhor, 1995).

Na pequena amostra ao lado, procurei destacar alguns dos pontos centrais da poesia oswaldiana. De saída, encontra-se a ironia na "Balada do Esplanada":
"Eu qu'ria / Poder / Encher / Este papel / De versos lindos / É tão distinto / Ser menestrel".  Há também exemplares do poema-piada, como "Relicário", "Senhor Feudal", e ainda exercícios líricos marcados pela linguagem enxuta do autor: "3 de Maio", "Ditirambo" (Meu amor me ensinou a ser simples / Como um largo de igreja") e outros. Mas o supra-sumo da concisão está em "Amor", poema de uma só palavra.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado





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Desde a semana passada, edições deste boletim estão sendo reproduzidas num programa de rádio em Feira de Santana, BA. O programa, chamado Terça em Ponto, vai ao ar às terças-feiras, das 20 às 21 horas, na Rádio Sertão FM (106,3 MHz), uma emissora comunitária.

A produção do Terça em Ponto é da responsabilidade de dois núcleos da Universidade Estadual de Feira de Santana, ligados ao Departamento de Ciências Exatas: NIS Núcleo de Informática e Sociedade e NEMOC Núcleo de Educação Matemática Omar Catunda. O poesia.net é apenas um dos quadros do programa.

Se você está em Feira de Santana, sintonize o Terça em Ponto.
 

O antimenestrel

Oswald de Andrade

 

 

BALADA DO ESPLANADA

Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.

É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu qu'ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel

No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel

Pra m'inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador


        Oferta

Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor
 


RELICÁRIO

No baile da Corte
Foi o Conde d'Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí



3 DE MAIO

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi



DITIRAMBO

Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade



ESCAPULÁRIO

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia



AMOR

Humor

 

SENHOR FEUDAL

Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia



OCASO

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Oswald de Andrade
•  Edilberto Coutinho (org.)
    Cadernos de Poesia do Aluno Oswald
    (Poesias Reunidas)
   
Círculo do Livro, São Paulo, s/data
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* Herberto Helder, in O Corpo O Luxo A Obra