Alexandre Bonafim
Caros,
O poeta, ensaísta e professor de literatura Alexandre Bonafim estréia
agora em livro com a coletânea Biografia do Deserto. Chamo a atenção para
a estréia em livro porque, há alguns meses, Bonafim vem publicando poemas,
ensaios e impressões de leitura em seu blog, Arquipélago do Silêncio. Nascido na
capital mineira em 1976, Bonafim reside em Franca, no interior de São Paulo, e é
professor de literatura em Araraquara.
Em Biografia do Deserto, o poeta lança um olhar de angústia e
perplexidade ao teatro do mundo. E o que ele vê é marcado pela carência, pela
impossibilidade do encontro. Ou talvez pela busca de alguma coisa perdida,
sufocada num "tempo de silêncio". Este é, aliás, o título de um poema que não
consta do livro, e sim no blog, mas que me pareceu representar bem a fisionomia
geral do trabalho de Bonafim.
A mesma busca retorna em "Na Intimidade da Noite", texto em que o poeta, após
mergulhar em "correntezas de assombros", "rios de vertigens", desemboca
melancolicamente nestes versos: "E nessa queda sonâmbula /
vôo de asas e estrelas partidas /
só a poesia te acompanha /
roteiro de solidão e amargura." Esse é um dos eixos do "deserto" biografado por
Bonafim. Uma canção na qual predominam as cordas graves.
A angústia também perpassa a observação de um anjo de jazigo, personagem central
do poema "O Anjo". Sob o túmulo / o anjo respira / a lenta agonia / de todas as
ausências." O texto "Liberdade Livre (Um dos Cavalos Amarelos de Franz Marc)"
fecha esta pequena amostra do trabalho de Alexandre Bonafim. Nesse poema, o
autor usa como ponto de partida uma tela de Marc, pintor expressionista alemão
do início do século XX. Aqui, o tom é o inverso do que se registra nos outros
poemas.
O próprio título, "Liberdade Livre", já causa certo estranhamento.
Aparentemente, o poeta vislumbra, no cavalo amarelo, a ambição de uma vida sem
peias, a ânsia de uma verdadeira descompressão existencial: "um cavalo amarelo /
desenhado pelas mãos / de um menino". Em sua marcha livre pela cidade, entre
automóveis, lixo e fumaça industrial, o eqüino deflagra nas crianças e nas
andorinhas o fenômeno da alegria. É como se o poeta pusesse um traço de união
entre liberdade e alegria. Não é por acaso que se trata de um "um cavalo livre /
desatado de celas". Celas com C, isso mesmo.
Naturalmente, como esse animal é um sonho humano — na essência, um bicho da
mesma classe do elefante que sai às ruas no poema de Drummond. Uma diferença é
que o paquiderme drummondiano parte cheio de esperança, "faminto de seres / e
situações patéticas". Volta derreado, semidestruído pela incompreensão. O
cavalo de Bonafim sai dessa mesma incompreensão e, por alguma arte mágica,
torna-se, ele mesmo, o catalisador de uma feérica instauração da alegria.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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1ª MOSTRA DE LITERATURA
DIADEMA, SP – DE 17/11 a 30/11
Se você estiver na Grande São Paulo, confira a programação da 1ª Mostra
Internacional de Literatura – Poesia & Prosa. Será um
superevento literário, realizado de 17 a 30 de novembro em Diadema, com leituras
e outras atividades artísticas, além do diálogo do público com os autores. A
mostra é iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de Diadema, em parceria
com o Grupo Palavreiros.
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O cavalo amarelo
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Alexandre Bonafim |
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TEMPO DE SILÊNCIO
Era o tempo do silêncio.
Com toda a paciência
a hora amadureceu
a ausência dos pássaros
a serenidade das árvores.
Crianças desataram
os nós dos ventos.
Crisântemos choraram
sob as crinas do tempo.
Era a hora da despedida.
Com todo o cuidado
ele acariciou-lhe o rosto
beijou-lhe os olhos.
Ele a abraçou
como quem acalanta
nos braços
um recém-nascido.
Era o tempo do ocaso.
Namorados colheram
os sorrisos da tarde.
Frutos tombaram
sobre as lágrimas da terra.
Era a hora do amadurecimento.
Com toda a ternura
ele desprendeu-se
daqueles cabelos de jasmim
desatou-se
daquele corpo de orvalho.
Ele despediu-se
de sua própria face
disse adeus ao próprio nome
e desnudo de si mesmo
afastou-se em direção ao outono
perdeu-se na amplidão
sem sequer voltar-lhe o rosto.
Era o tempo do silêncio.
NA INTIMIDADE DA NOITE
Na intimidade da noite
teu corpo estertora
pleno de energia.
A vida
singelo milagre
correnteza de assombros
moinho de espantos
espoca em tuas veias
em tuas pupilas
nos teus músculos em alerta.
Um imenso rio de vertigens
navega nos teus pulsos
te incendeia
te impele aos ventos
e desatinos.
Só a loucura acompanha
o fluxo dos teus pensamentos.
Só a insensatez mede
teus passos
costura tuas palavras
e olhares.
Súbito podes estourar
de tanta vida
podes ter uma overdose
desse vício que te alimenta
e mata.
E nessa queda sonâmbula
vôo de asas e estrelas partidas
só a poesia te acompanha
roteiro de solidão e amargura.
O ANJO
Sobre o jazigo
o anjo assiste
ao lento fluir
da eternidade.
De tanto se ferir
na noite
na chuva
no instante
de tanto se rasgar
no sol
no vento
no nada
o anjo teve a face
cinzelada pela cicatriz
do espanto.
Dói-lhe na entranha
nos ossos de pedra
o grito das cinzas
por ele veladas.
Lateja-lhe na carne
no ventre de argila
o silêncio do homem
(areia sob os seus pés)
por ele emudecido.
Impassível
acorrentado em sua mudez
ancorado em sua prisão
o anjo chora por dentro
no íntimo do mármore
a dor das veias
a pulsar na terra.
Sobre o túmulo
o anjo respira
a lenta agonia
de todas as ausências.
LIBERDADE LIVRE
(um dos cavalos amarelos de
Franz Marc)
a António Ramos Rosa
Por entre carros
e buzinas
cortando a fumaça
das fábricas
cavalgando
sobre o lixo
do asfalto
súbita magia
desatou suas crinas:
um cavalo a correr
um cavalo amarelo
desenhado pelas mãos
de um menino
esculpido pelo cinzel
dos ventos
um cavalo livre
desatado de celas
e esporas
envolvido por nuvens
e brisas
súbito
explodiu a vida
arrebentou o coração
da cidade
na plena agitação
do trânsito.
As crianças que dormiam
as viúvas que choravam
as andorinhas que voavam
repentinamente
foram tomadas pela alegria:
um cavalo amarelo
um cavalo a correr
desatou súbita magia
nas crinas do vento
nas pedras do mundo.
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