Número 206 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 25 de abril de 2007 

«Só na morte não somos estrangeiros.» (Eugénio de Andrade) *
 


John Donne, em 1616


Caros amigos,

Nascido em Londres numa rica família católica e depois convertido ao anglicanismo, John Donne (1572-1631) é um dos expoentes da chamada "poesia metafísica" inglesa. De início, vale observar com cuidado essa denominação. O termo metafísico, nesse caso, não corresponde ao seu significado atual. No início do século XVII, metafísica queria dizer, mais ou menos, "filosofia". Portanto, eram poetas "pensadores". Obviamente, não poderia ser metafísico, com o significado de hoje, um poema erótico como "Elegia: Indo Para o Leito". É verdade que esse erotismo situa-se mais no campo da imaginação que da experiência.

Para este boletim, selecionei dois poemas amorosos de Donne. Um é a já citada "Elegia". O outro, "Em Despedida: Proibindo o Pranto", ambos apresentados no original e na tradução exemplar de Augusto de Campos. Um dos itens que ressaltam nesses dois textos são os raciocínios sofisticados. Na "Elegia" peça que, pela sua ousadia, foi excluída da primeira edição dos poemas de Donne (1633) — ele chega a comparar o corpo sem roupa à alma sem corpo.

Convertido ao anglicanismo, John Donne tornou-se também um clérigo da nova fé. Em 1624, foi nomeado deão da catedral de São Paulo, título que manteve até a morte. São famosos, mais que sua poesia, os sermões e outros textos de inspiração religiosa que ele escreveu. Um deles é amplamente conhecido e citado, embora nem sempre quem o cita saiba associar o texto ao autor. É o texto que contém a célebre frase: "
nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."Trata-se da "Meditação 17", escrita por Donne em 1624. Nessa página, assim como em outras 22 meditações, ele  reflete profundamente sobre a morte, motivado por uma severa enfermidade, da qual se recuperou. Sair dessa doença, escreveu Donne, foi, como nascer de novo. Transcrevo aqui o trecho mais conhecido dessa meditação.

A "Meditação 17", de Donne,  inspirou o título do romance Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, publicado em 1940. Outra curiosidade: parte da tradução de "Elegia: Indo para o Leito", de Augusto de Campos, foi musicada por Péricles Cavalcanti e gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental (Polygram, 1979).

Mais uma dica: todo o conjunto das Meditações de Donne foi reunido agora numa edição bilíngüe, lançada no Brasil pela Editora Landmark. A tradução é de Fabio Cyrino.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



poesia.net em Brasília

No sábado, 31/3/2007, o jornalista Sérgio de Sá publicou a seguinte nota em sua coluna do suplemento Pensar, no jornal Correio Braziliense:


 

Por quem os sinos dobram

John Donne

 


ELEGIA: INDO PARA O LEITO

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
    Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
    Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
    Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

                       Tradução: Augusto de Campos
 

ELEGY: GOING TO BED

Come, Madam, come, all rest my powers defy;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Off with that girdle, like heaven's zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, which you
                                                  [ wear,
That th' eyes of busy fools may be stopp'd there.
Unlace yourself, for that harmonious chime
Tells me from you that now it is bed-time.
Off with that happy busk, which I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state
                                                 [ reveals,
As when from flowery meads th' hill's shadow
                                                 [ steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems which on you do grow.
Off with your hose and shoes ; then softly tread
In this love's hallow'd temple, this soft bed.
In such white robes heaven's angels used to be
Revealed to men ; thou, angel, bring'st with thee
A heaven-like Mahomet's paradise ; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an evil sprite;
Those set our hairs, but these our flesh upright.
      Licence my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann'd,
My mine of precious stones, my empery;
How am I blest in thus discovering thee !
To enter in these bonds, is to be free ;
Then, where my hand is set, my soul shall be.
      Full nakedness ! All joys are due to thee;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems which you women use
Are like Atlanta's ball cast in men's views ;
That, when a fool's eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books' gay coverings made
For laymen, are all women thus array'd.
Themselves are only mystic books, which we
—Whom their imputed grace will dignify —
Must see reveal'd. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself; cast all, yea, this white linen hence;
There is no penance due to innocence :
      To teach thee, I am naked first; why then,
What needst thou have more covering than a
                                                       [ man?




MEDITAÇÃO 17 

                                       (trecho)

Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

                       Tradução: Paulo Vizioli



MEDITATION 17

                                       (excerpt)

No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were; any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.



EM DESPEDIDA: PROIBINDO O PRANTO

Como esses santos homens que se apagam
    Sussurrando aos espíritos: "Que vão...",
Enquanto alguns dos amigos amargos
    Dizem: "Ainda respira." E outros: "Não." —

Nos dissolvamos sem fazer ruído.
    Sem tempestades de ais, sem rios de pranto,
Fora profanação nossa ao ouvido
    Dos leigos descerrar todo este encanto.

O terremoto traz terror e morte
    E o que ele faz expõe a toda a gente,
Mas a trepidação do firmamento,
    Embora ainda maior, é inocente.

O amor desses amantes sublunares
    (Cuja alma é só sentidos) não resiste
A ausência, que transforma em singulares
    Os elementos em que ele consiste.

Mas a nós (por uma afeição tão alta,
    Que nem sabemos do que seja feita,
Interassegurado o pensamento)
    Mãos, olhos, lábios não nos fazem falta.

As duas almas, que são uma só,
    Embora eu deva ir, não sofrerão
Um rompimento, mas uma expansão,
    Como ouro reduzido a aéreo pó.

Se são duas, o são similarmente
    Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
    Inércia, mas se move a cada passo

Da outra, e se no centro quieta jaz,
    Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
    E se endireita quando ela regressa.

Assim serás para mim que pareço
    Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,
    Encontrar meu final em meu começo.
 


A VALEDICTION: FORBIDDING MOURNING

As virtuous men pass mildly away,
    And whisper to their souls to go,
Whilst some of their sad friends do say,
    "Now his breath goes," and some say, "No."

So let us melt, and make no noise,
    No tear-floods, nor sigh-tempests move;
'Twere profanation of our joys
    To tell the laity our love.

Moving of th' earth brings harms and fears;
    Men reckon what it did, and meant;
But trepidation of the spheres,
    Though greater far, is innocent.

Dull sublunary lovers' love
    —Whose soul is sense—cannot admit
Of absence, 'cause it doth remove
    The thing which elemented it.

But we by a love so much refined,
    That ourselves know not what it is,
Inter-assurèd of the mind,
    Care less, eyes, lips and hands to miss.

Our two souls therefore, which are one,
    Though I must go, endure not yet
A breach, but an expansion,
    Like gold to aery thinness beat.

If they be two, they are two so
    As stiff twin compasses are two;
Thy soul, the fix'd foot, makes no show
    To move, but doth, if th' other do.

And though it in the centre sit,
    Yet, when the other far doth roam,
It leans, and hearkens after it,
    And grows erect, as that comes home.

Such wilt thou be to me, who must,
    Like th' other foot, obliquely run;
Thy firmness makes my circle just
    And makes me end where I begun.

                       Tradução: Augusto de Campos
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

John Donne
•  "Elegia: Indo para o leito" e "Em despedida:
    proibindo o pranto"
    In Augusto de Campos
    Verso Reverso Controverso
   
Perspectiva, São Paulo, 1978
•  "Meditação 17"
    in Paulo Vizioli
    John Donne — O Poeta do Amor e da Morte
    J.C. Ismael Editor, São Paulo, 1986
    Texto original em
   
Luminarium - Anthology of English
    Literature

______________
* Eugénio de Andrade,
"XLIX",
  in  Branco no Branco (1984)