Cassiano Ricardo
Caros,
Assim como Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Jorge de
Lima, modernistas nascidos no século XIX, Cassiano Ricardo (1895-1974) iniciou
sua trajetória poética ainda sob a influência do parnasianismo e do simbolismo.
Estreou em 1915 com o volume Dentro da Noite, ao qual se seguiu A
Frauta de Pã, de 1917. Marcados pela predominância de sonetos e versos
alexandrinos, esses livros não conquistaram muita repercussão.
A obra de Cassiano
Ricardo passa a receber maior atenção após sua adesão aos modernistas e
especialmente com o lançamento dos livros Vamos Caçar Papagaios (1926)
e Martim-Cererê (1928). Nessas coletâneas publicou poemas antológicos que lhe valem a
inclusão obrigatória em qualquer antologia que trate dos primeiros passos da
poesia que se seguiu à Semana de Arte Moderna.
Como quase tudo no século
XX, os grupos poéticos também estavam vinculados a uma visão política do mundo e da
construção do Brasil. Cassiano, inicialmente, ligou-se às concepções modernistas
dos grupos Verde-Amarelo e Anta, que acabaram desaguando num nacionalismo
ufanista. O grupo da Anta seguiu uma orientação claramente de direita, do qual
sairia, nos anos 30, o Integralismo de Plínio Salgado, líder fascista
tupiniquim. Posteriormente, Cassiano Ricardo faria autocrítica, e declararia um
erro sua participação no grupo Anta.
Em 1946, Cassiano lança O
Sangue das Horas, seguido por Um Dia Depois do Outro (1947). Aí o
poeta já é outro. Em vez dos papagaios e do ambiente rural, os poemas se
voltam para a preocupação existencial de quem vive nas cidades.
Nos anos
50 e 60, o foco muda mais uma vez para o perigo nuclear, a guerra fria, as ditaduras,
a restrição às liberdades individuais. Jeremias, personagem central de
Jeremias Sem-Chorar, coletânea lançada em 1964, é um sujeito que perde um
olho devido à patada de um cavalo durante a repressão a um comício. O último livro de
Cassiano seria Os Sobreviventes, no qual ele desenvolve os temas de
Jeremias. A essa altura, Cassiano já havia aderido às vanguardas, em explícito
namoro com os concretistas.
•o•
Conheci a poesia de Cassiano Ricardo na adolescência,
durante o curso colegial (hoje, ensino médio). Em seu trabalho, eu achava
interessantes os poemas sobre o perigo nuclear, a guerra fria, o avanço da
tecnologia e as viagens espaciais — um pacote de temas tipicamente anos
60.
Creio que esses temas aproximaram o poeta de muitos jovens da época.
Infelizmente, após a morte de Cassiano Ricardo, em 1974, só foram republicados
dele os livros dos anos 20. Tenho o volume Poesias Completas (José
Olympio, 1957), porque o adquiri há cerca de dois anos num sebo.
Dos
títulos mais novos, tenho Jeremias Sem-Chorar e
Os Sobreviventes, nas edições originais, que também não tiveram
reedições. Tenho ainda uma Seleta em
Prosa e Verso (1975), organizada por Nelly Novaes Coelho, que me permite o acesso
a alguns poemas de João Torto e a Fábula (1956), Montanha
Russa e A Difícil Manhã (ambos de 1960). Esses três livros
situam-se hoje numa espécie de limbo: nem fazem parte da Poesia Completa
de 1957, nem jamais foram reeditados.
Em resumo, hoje — e já faz muito tempo — só é
possível encontrar nas livrarias os volumes Vamos Caçar Papagaios e
Martim-Cererê. Ouvi dizer (não tenho comprovação)
que existe um problema entre os herdeiros dos direitos autorais do poeta, e isso
impede a divulgação de sua obra completa. Uma lástima.
É
verdade que — penso hoje, mais de quarenta anos depois de conhecer e
admirar o autor — muito do que ele escreveu e conquistou minha atenção
nos anos 60 ficou datado. De todo modo, Cassiano Ricardo é um poeta de
referência do século XX, e merecia melhor tratamento.
•o•
Nascido em São
José dos Campos (SP), Cassiano Ricardo formou-se em direito e atuou em cargos
públicos. Foi inclusive chefe do Escritório Comercial do Brasil em Paris, entre
em 1953 e 1954. Além de poesia, escreveu ensaios históricos e
literários. Este boletim é o segundo dedicado ao poeta, que já apareceu aqui na
edição n. 2.
•o•
A seleção de poemas ao lado dá notícia de alguns dos recursos
expressivos de Cassiano Ricardo. “Relâmpago”, texto de Martim-Cererê,
faz o registro de um momento rapidíssimo, como um instantâneo captado por uma
câmera fotográfica. Trata-se de uma cena de caça com arco e flecha, na qual um
arqueiro não identificado abate uma onça. A descrição cheia de movimento
constrói um processo sinestésico, provocando no leitor a ideia de velocidade e
visualidade.
Palavras como relâmpago, usada duas vezes, rápida, elétrico
e árvore acentuam a expectativa, ao mesmo tempo que dão o sentido de velocidade.
Os procedimentos utilizados em “Relâmpago” são, mais ou menos, retomados, anos
depois, no poema “Multiplicação dos Peixes”, de Jeremias Sem-Chorar.
A cena de pescaria é mostrada em seus movimentos, luminosidade e até nos
sons, seja da agitação das águas e da puxada da rede, seja na inquietação dos
peixes. A sequência das palavras xadrez, xis, peixe, repuxo ajuda a
multiplicar os peixes e torna o ambiente mais vivo e buliçoso. No verso “Nunca
tanto xis de tanto peixe”, a letra xis materializa graficamente a presença dos
peixes. Na segunda metade do poema, a câmera, antes em modo paisagem, desce
ao detalhe, focando um único peixe.
•o•
“Acrobatismo é outro texto em que o poeta lança mão da
sinestesia para descrever um brevíssimo acontecimento. Nesse caso o ambiente é a
floresta, onde um louva-a-deus, "pequeno palhaço verde", executa um salto
ornamental.
Textos como
“Relógio”, “A Orquídea” e “Soneto da Ausente”, de Um Dia Depois do Outro,
e ainda “Depois de tudo”, apresentam exemplos de refinado lirismo. Também do mesmo livro é o poemeto “Serenata Sintética”, que
antecipa procedimentos das vanguardas concretistas que viriam a surgir nos anos
50.
Em “Campanário de São José” (de A Difícil Manhã, 1960), um microssoneto de versos
monossilábicos, a chave está no estrato sonoro. Daí porque o autor faz, abaixo
do título, a indicação de que o poema deve ser repetido três vezes na leitura
(certamente em voz alta). Experimente, e perceberá que os sons “em” e “ão”
produzem de fato a sugestão de sinos tocando.
Aliás, os mesmos sons — e para o mesmo efeito —
já haviam sido usados por Manuel Bandeira no poema “Os Sinos”, de O
Ritmo Dissoluto (1924):
“Sino de Belém bate bem-bem-bem // Sino da Paixão bate bão-bão-bão”.
Bandeira enriquece o toque dos sinos, introduzindo metais de timbre mais agudo:
“Sino do Bonfim, por quem chora assim?...”
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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A multiplicação dos peixes
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Cassiano Ricardo
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RELÂMPAGO
A onça-pintada saltou tronco acima que
nem um re- lâmpago de rabo comprido e cabeça amarela: zás! Mas uma
flecha ainda mais rápida que o relâmpago
[fez rolar ali mesmo aquele matinal gatão elétrico e bigodudo que
ficou estendido no chão feito um fruto de cor
[que tivesse caído de uma árvore!
De Martim-Cererê (1928)
Albert Gleizes (1881-1953), francês, Paisagem
Cubista (1914)
LUA CHEIA
Boião de leite que a Noite leva com mãos de treva pra não sei
quem beber.
E que, embora levado muito devagarzinho, vai
derramando pingos brancos pelo caminho...
De
Martim-Cererê (1928)
RELÓGIO
Diante de coisa tão doída conservemo-nos serenos.
Cada minuto de
vida nunca é mais, é sempre menos.
Ser é apenas uma face do não
ser, e não do ser.
Desde o instante em que se nasce já se começa a
morrer.
De
Um Dia Depois do Outro (1947)
Albert Gleizes, Homem Deitado numa Rede (1913)
A ORQUÍDEA
A orquídea parece uma flor viva, uma
boca, e nos assusta. Flor aracnídea.
Vagamente humana, boca,
embora feita de inocentes pétalas, já supõe perfídia.
Já supõe
palavra embora muda. Já supõe insídia.
Que estará dizendo o
lábio quase humano da orquídea?
De
Um Dia Depois do Outro (1947)
SONETO DA AUSENTE
É impossível que na furtiva claridade que te
visita sem estrela nem lua, não percebas o reflexo da lâmpada com que
te procuro pelas ruas da noite.
É impossível que, quando choras, não
vejas que uma de tuas lágrimas é minha. É impossível que, com o teu
corpo de água jovem, não adivinhes toda a minha sede.
É impossível
não sintas que a rosa desfolhada a teus pés, ainda há um minuto, foi
jogada por mim, com a mão do vento.
É impossível não saibas que o
pássaro, caído em teu quarto por um vão da janela, era um recado do
meu pensamento!
De
Um Dia Depois do Outro (1947)
SERENATA SINTÉTICA
Lua morta.
Rua torta.
Tua porta.
De
Um Dia Depois do Outro (1947)
Albert Gleizes, Porto Comercial (1912)
A CANÇÃO MAIS RECENTE
O poeta com a sua lanterna mágica está sempre
no começo das coisas. É como a água, eterna- mente matutina.
Pouco importa a noite lhe ponha a pena do silêncio na asa. Ele tem
a manhã em tudo quanto faça. Alem disso o amanhã nunca deixará de
ter pássa- ros.
De
A Face Perdida (1950)
ACROBATISMO
Parou o vento. Todas as árvores quiseram ver o salto
original. Então, quedaram-se todas com os seus anéis azuis de
orvalho, e os seus colares de ouro teatral, prestando muita atenção.
Foi como se um silêncio fofo de veludo começasse a passear seus pés de lã
por tudo. Nisto uma folha sai, muito viva, de uma rama, e vai cair
sem o menor rumor sobre o tapete de grama. É um louva-a-deus lépido e
longo que se jogou de um trapézio como um pequeno palhaço verde e
lá se foi, a rodopiar, às cambalhotas no ar.
Albert Gleizes, Retrato de Igor Stravinsky (1914)
CAMPANÁRIO DE S. JOSÉ
(para ser repetido,
três vezes, na leitura)
A Antônio Carlos Cabral
Quem não
tem seu
bem que não vem?
Ou vem mas
em vão? Quem?
De
A Difícil Manhã (1960)
DEPOIS DE TUDO
Mas tudo passou tão
depressa. Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo que pelos
vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro pousado na
árvore que eu fui.
De A Difícil Manhã (1960)
MULTIPLICAÇÃO DOS
PEIXES
Súbito uma rede de pescador e toda uma popula- ção piscosa
pu-lula entre o xadrez da malha e o das escamas, numa só escumalha.
Nunca tanto xis de tanto peixe.
Um deles, com a cauda em repuxo, se
conserva vivo por mais tempo, ao sol.
Vivia, há um minuto, dentro
d'água.
Movendo-se
livre e belo
(e esse minuto trêmulo ainda lhe
cin- tila no dorso, ainda molhado).
De
Jeremias Sem-Chorar (1964)
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