Fernando Campanella
Caros,
O mineiro Fernando Campanella (1953-) escreve uma poesia comtemplativa e muito ligada aos elementos
naturais. Nascido em Pouso Alegre, no sul de Minas, onde vive, é professor de
português e inglês, além de fotógrafo. Mantém o blog
Palavreares,
onde publica poemas, crônicas e fotografias. Em outro blog, no
Flickr,
divulga suas fotos, algumas das quais ilustram este boletim.
Os
poemas mostrados aqui foram pinçados de uma amostra que me foi
enviada pelo autor e do material disponível em seu blog. Fernando
Campanella, até o momento, é um poeta da web. Sua poesia publicada está toda na
internet. No entanto, ele me informa que tem, prontos, quatro livros de poemas e
mais um de crônicas.
O trabalho poético de Fernando Campanella —
nome artístico de Antonio Fernando Cruz: o Campanella foi tomado por empréstimo
de uma avó — parece-me
intimamente ligado ao seu olhar de fotógrafo. Em versos, ele reflete sobre as
coisas da terra, plantas e bichos, luzes e seus reflexos. A água. O vento. A
flor.
Constrói desse modo uma poesia sincera, telúrica, despida das veleidades
de quem deseja gritar, falar alto ou proclamar verdades insofismáveis. Trata-se
de algo mais íntimo e sossegado, um sopro que se traduz "em paisagens do
quintal", como diz o poema "Ventos do Leste".
É isso que sinto ver as
fotos produzidas por esse poeta que diz: "Às vezes / tenho o perfil de caracol".
Ou quando pergunta shakespearianamente: "Que diferença faz às flores / se por um
segundo as contemplo?" Em todos os poemas reina essa delicadeza de monge, essa
contemplação do mundo de forma quase religiosa.
Às vezes, o lirismo de Campanella
se afina em diapasão ainda mais reflexivo, como nos poemas "Guerreiros de
Esparta" e "Bálsamo". Mesmo assim, o pensamento se estrutura em ambientes onde a
luz da tarde dedilha uma pétala de gozo, ou se ouve o tilintar dos grilos ao luar.
Um abraço, e até mais ler,
Carlos Machado
•o•
|
Paisagens do quintal
|
Fernando Campanella
|
|
ALHEIO
Às vezes tenho o perfil de um caracol: o dia bate à minha porta e
não desperto —
ando catando poesia na sombra
ando cismando
o universo em espiral.
VENTOS DO LESTE
Com folhas de salgueiros
é como posso pagar
a vossa cortesia.
Matsuo Bashô
Esta viração de outono me traz versos de
Bashô. Revolve memórias da terra — aromas, pastos, rastelos —
traz também o viés da vida — lume e cinza, pétala ressequida.
Esta aragem nos salgueiros do leste tocou poetas longínquos e hoje
ressoa minhas hastes —
já não sou o grande pária do mundo, ave
dispersa na serrania.
Este sopro, de mais longe, de outros
píncaros e ares, traduz-se agora em coisas minhas, em paisagens do
quintal
(e com folhas de laranjeiras minha vez então a pagar
por tão primaz cortesia).
QUE DIFERENÇA FAZ ÀS FLORES
Que diferença faz às flores
se por um segundo as contemplo? Nem sei se algo no mundo precisa de
meu olhar assim atento. Se me procuras, em teu espelho por um tempo me
reflito. Depois ao cálice de mim retrocedo. Eu sou o velho vinho que
me bebo de minha embriaguez me contento.
UMA SÚBITA LUZ CORTA O TEMPO
...sei que os bezerros às vezes param
e me observam
quando por sobre o muro de silêncio os contemplo
— é quando uma súbita luz
corta o tempo —
depois nada mais acontece
a não ser o delicado ruminar de bezerros
absolvendo a tarde de metafísicas inúteis
1993
GUERREIROS DE ESPARTA
Porque me seduziste, escuta-me agora, pequeno grande deus da paixão.
Porque aos teus pés meus sonhos rolaram mesclados em visões de abismos e
porque antes era a imagem de teu banho dourado — a luz da tarde
dedilhando a pétala de teu gozo — e o universo de tuas formas me cegava,
ouve-me agora, príncipe valente. Passaram os jovens deuses guerreiros de
Esparta e as mais puras vestais de Roma Mais adiante também haveremos de
passar, nômades, pela assombrosa esfera luminosa de Tao.
(Cultiva, meu
coração, a substância indivisível que equaciona os destinos e os termos.)
1988
BÁLSAMO
O amor é triste — proclamariam minhas viúvas. mas disse o filósofo: a
alegria corteja a mais profunda eternidade. Todas as vertentes
consideradas,
abandono o vale onde as sombras compõem a
enormidade. Os grilos agora tilintam, e a luz da lua impregna as
árvores de um bálsamo — Meu amor, se
possível, me aguarda, retorno a ti, clara a trilha que agora a meus
olhos se abre.
ANTÍQUA
Ali entre os juncais a face de um deus esquecido reverberava na tarde
— tua alma é antiga, junta-te a nós
— chamavam-me os juncos, e tremiam
ao meu silêncio, um vento que eriçava a memória da água.
REPASTOS
Penso nas vacas como num
mundo cifrado —
a cosmogonia circunscrita das vacas.
Mas que sei de universos fechados?
Eu, que suposta ciência tenho da alma,
dissipo noites, a cismar.
Sei que os bezerros às vezes param, e me observam,
quando por sobre o muro de silêncio os contemplo —
uma súbita luz, então, elide o tempo.
Depois nada mais acontece
a não ser um delicado ruminar de bezerros
absolvendo a tarde de metafísicas inúteis.
LIMBO
...E nenhum rumor de
água a latejar na pedra seca...
T.S. Eliot, “A Terra Desolada”,
tradução de Ivan Junqueira
E quando dei
por mim vi um molusco arrastando nos ombros o tempo da casa.
Vi um monge rondando em ócio —
o hábito a chama e a mariposa alucinada
folhas caducas
espectros (os ecos, os ecos) a roda tocada à memória.
Vi a
turbulência das moscas a lava e a concha sonhando a asa.
Quando
cheguei ao limbo de mim e o vento seguiu senti um abandono uma
distância sem-fim.
Pesei o silêncio e o mundo certo que perdi —
vi a pedra chamando a água.
|