Affonso Manta
Caros,
O que é um poeta? A rigor, não sei. A arte é sempre maior que
as definições. Mas a falta de uma definição — ou de um manual de
reconhecimento — não constitui nenhum
empecilho quando estamos diante do trabalho de um verdadeiro poeta. E este é o
caso do baiano Affonso Manta (1939-2003).
Travei o primeiro contato com
a poesia de Manta no mesmo ano de sua morte. Na época, publiquei o
boletim n. 48, dedicado a ele. Volto agora ao trabalho de Manta após a
publicação de sua Antologia Poética, organizada por Ruy Espinheira
Filho (poesia.net
n. 18 e
n. 284).
A distribuição dos textos feita por Espinheira Filho na
Antologia ajuda a realçar o quanto de sensibilidade e invenção lírica
existe no trabalho e na personalidade do poeta. “Lá vai, lá vai, lá vai Affonso
Manta / Pela rua lilás”, escreve Manta. No mesmo poema, ele se autodefine como
“o rei da extravagância, o sem maldade”.
Dono de todos os sonhos e
investido de todas as forças líricas, no poema “O Cavalheiro sem Anéis”, ele
também se retrata: “Eu sou a própria roupa do crepúsculo”. Neste decassílabo
forte e desconcertante, a aliteração em “p”, combinada com os erres de “roupa” e
dos encontros consonantais “cr” e “pr”, provoca uma sensação que só um poeta de
ouvido refinado sabe extrair das palavras.
O verso estimula a
imaginação. Que cor teria a roupa do crepúsculo? Talvez amarelo-sangue. Talvez
púrpura com semitons de carmim, ou tudo isso mesclado. No estrato dos sons e
(sugestão de) movimentos, a aliteração me leva a imaginar o poeta vestido com a
capa — ou manta? — do entardecer drapejada pelo vento. Mas o texto,
afinal, não autoriza a disjunção entre poeta e roupa: as duas entidades líricas
são uma coisa só.
Além disso, a proparoxítona “crepúsculo” estabelece um
fechamento brusco, mais agitado, como se uma lufada de vento mais forte
sacudisse a roupa. É por isso que faz todo o sentido a afirmação no início do
poema: “Quando me visto de pôr-do-sol / Os anjos ficam loucos”. Não é todo dia,
nem todo ano, nem todo quinquênio que aparecem versos assim (pelo menos para
este leitor, amador-profissional, do poesia.net).
“Eu sou a
própria roupa do crepúsculo”. Beleza e angústia. Beleza angustiada.
“Nasceram-me gaivotas nos sentidos”. “Pouca coisa sei da vida. / O bastante para
não correr”. “Crie canários verdes na varanda / Onde os meninos brincam de
ciranda”.
Creio que os versos de Affonso Manta falam por si mesmos. Mas
é impossível não destacar a musicalidade e a esperança triste contidas na canção
“Quando Esta Noite Passar”. Até nos rabiscos, simples anotações, o poeta
revela sua potência lírica e, mais que isso, sua profunda consciência sobre as
possibilidades e limites do fazer poético. “Há que deixar em paz o poema. / Ou o
poema nos afeta. / O poema há de ser perfeito. / Ou ele come o poeta”.
Brilhante.
É por momentos de tal iridescência, para usar um termo
mantiano, que o poeta Ruy Espinheira Filho diz no prefácio da Antologia
que Affonso Manta foi um “conhecedor como poucos da arte do verso”. E diz mais:
“Ele foi essencialmente poeta, como raros o são. João Guimarães Rosa dizia que
as pessoas não morrem: ficam encantadas. Affonso Manta não esperou morrer para
se encantar: foi um encantado a vida inteira”.
•o•
Affonso Manta nasceu em Salvador (BA), em 1939. Ainda bebê, mudou-se com
a família para Poções, onde o pai, médico, iria trabalhar. Aos doze anos, volta
para Salvador. Lá, terminou o curso clássico no Colégio Estadual da Bahia.
Depois, entrou em Ciências Sociais na UFBA, mas não concluiu o curso.
Professor, jornalista, funcionário público, Manta gostava mesmo era da boemia. Como diz o poeta Ruy Espinheira Filho, era um "boêmio impeninente". Viveu alguns
anos no Rio de Janeiro, como inspetor dos Correios e Telégrafos. Morreu em
Poções, em 2003.
•o•
Apenas um ponto a lamentar. Parte da coleção Mestres da
Literatura Baiana, a Antologia Poética de Affonso Manta foi publicada
pela Academia de Letras da Bahia com o patrocínio da Assembleia Legislativa do
Estado. Como publicação oficial, fora de comércio, não vai chegar às livrarias.
Chegará a bibliotecas e a uns poucos felizardos, entre os quais me incluo. Uma
pena.
Poetas como Affonso Manta, assim como vários outros poetas-poetas
destes Brasis, precisam ser retirados da virtual clandestinidade em que se
encontram e divulgados para todo o país. Afinal, eles representam uma parte do
que há de mais refinado no espírito brasileiro.
Um abraço, e até mais ler,
Carlos Machado
•o•
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Eu sou a roupa do crepúsculo
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Affonso Manta
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LÁ VAI AFFONSO MANTA
Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta, Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta Pela rua
lilás.
Coroa de alumínio sobre o crânio, Lapelas enfeitadas de
gerânios E flechas no carcás.
Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão, Desfila o marechal,
O rei da
extravagância, o sem maldade, O campeão da originalidade, O peregrino
astral.
(CM)
Arshile Gorky, americano-armênio, Jardim em
Sochi (1941)
O CAVALHEIRO SEM ANÉIS
Quando me
visto de pôr-do-sol, Os anjos ficam loucos. Sobem nos trapézios de
vidros E saem a girar...
Girar...
Sou o Cavalheiro sem
Anéis. Sou órfão dos colarinhos de antigamente. Minha voz se perdeu
nas listras do arco-íris. Meu sorriso nas cordas de um violino. Sou o
Cavalheiro sem Anéis. Eu sou a própria roupa do crepúsculo.
Nem o
vento sabe onde vou dormir.
(CMP)
O PRÍNCIPE LOUCO
para Ângelo Roberto
Acendeu uma rosa na cabeça E saiu a
dançar, iluminado, Aquelas valsas tristes do passado, Dizendo: "Que a
aflição desapareça!
Eu sou a profecia que não erra. Eu sou o rei
ungido e coroado Eu vou fazer o sol ficar parado. Eu vou inaugurar a
paz na terra.
Eu, o príncipe louco da Bahia, Vou restabelecer a
monarquia, Num transe de poesia verdadeiro".
E foi pela cidade a
declamar: "Algum dia o sertão vai virar mar!" Como se fosse Antonio
Conselheiro.
(CMP)
Arshile Gorky, Organização (1933-36)
RETORNO
O seio da mãe que simboliza o mar. Carlos Anísio Melhor:
"Elegia a Hart Crane"
Nasceram-me gaivotas nos sentidos E, todo
iridescente, fui ao mar Buscar a vida e o sonho milenar, Que jazem sob
as águas esquecidos.
A luz da madrugada singular Banhava os areais
adormecidos. E os ventos eram cães enlouquecidos Uivando nos rochedos
ao luar.
Eu me elevei ao mais alto rochedo E, sem medir efeitos e
sem medo, Gritei uma palavra ritual.
O mar abriu-se, então, de
lado a lado. E eu mergulhei no abismo sossegado. Como quem volta ao
seu país natal.
(CMP)
CAIS
para Gato
Eu
vou amanhecer no cais da aurora, Com as minhas longas roupas de fumaça,
Para encontrar meu coração que chora Por todos os caminhos onde passa.
Eu vou encher de vinho minha taça E bebê-la na mais propícia hora
Até que o meu espírito se faça Risonho e colorido como a flora.
Na
popa de um saveiro luminoso, Vou conhecer o cenário formoso Das ilhas
do Recôncavo singelo.
E, quando na tardinha eu regressar, Verei o
pôr-do-sol cair no mar De cima do fortim de São Marcelo.
(CMP)
O APRENDIZ
Sou pobre realmente. Tenho apenas algumas
folhas de papel na alma E uma vontade — digamos, mansa — De hipnotizar
borboletas. Oue coisa sei da vida? Pouca coisa sei da vida. O
bastante para não correr.
(RP)
Arshile Gorky, Agonia (1947)
QUANDO ESTA NOITE PASSAR...
Quando esta noite passar Com sua carga de treva, Com seu espesso
veludo Que te incomoda e te enerva,
A ti que estás todo preso
Numa sinistra gaiola, Comendo o alpiste do dono Do mundo que te viola;
Quando passar esta noite Com seus frios caracóis De angústia e
desesperança, Praga dos que vivem sós,
Quando esta noite passar,
Faz teu canto na manhã, Que todo dia traz luz, E não é vã, não é vã...
(RP)
O REI DOS LÍRIOS
O rei dos lírios quer me ver
feliz E que eu desfrute de um prazer sem fim. Ele me deu cem mil
maravedis E comprou um castelo para mim.
O rei dos lírios quer me
nomear Embaixador no reino do Sião Para que eu possa lá me consolar
Do tédio que corrói meu coração.
O rei dos lírios disse que vou ser
Um nobre em sua corte sideral, Com direito a fazer e acontecer. Livre
de tudo que me cause mal.
E vai me dar, em bom jacarandá, Uma cama
onde eu possa dormir bem E esquecer esta angústia que em mim há. E por
todos os séculos. Amém.
(RP)
ESSA MULHER
Essa
mulher que paira docemente Nos meus sonhos de amor tão erradios; Essa
deusa de lindos amavios, Que me seduz o coração e a mente;
Essa
ninfa dos prados e dos rios, De rosto angelical e olhar ardente; Essa
do brilho místico e inocente Estrela d'alva nos meus céus vazios;
Essa que me fez cartas delicadas, Com frases meigas, como as
namoradas, E com doce emoção, como as amantes;
Essa mulher é como
se uma aurora Me iluminasse pela vida afora E me sorrisse todos os
instantes.
(CMP)
SETE
Sete colinas, sete serranias,
Sete montes de olvido e de quimera, Sete neuroses e esquizofrenias,
Sete luzes no céu da primavera.
Sete cores do prisma, sete dias,
Sete anjos anunciando o fim da era, Sete dores mortais, sete agonias,
Sete palmos de chão à nossa espera.
Sete livros secretos da doutrina,
Sete passos na estrada peregrina, Sete cidades lá no Piauí.
E tu,
que foste em mim sete moradas, E és agora somente as punhaladas Das
sete angústias que sofro por ti.
(CMP)
DE UM RABISCO
Há que deixar em paz o poema. Ou o poema nos afeta. O poema há de
ser perfeito. Ou ele come o poeta.
(CC)
Arshile Gorky, Retrato de Ahko (1937)
CRIAÇÃO
Crie canários verdes na varanda Onde os meninos brincam de
ciranda.
Crie esses bois de chifres de açucenas Que pairam nos
céus das manhãs serenas.
Crie cavalos da Andaluzia Em sítios de
cristal e fantasia.
Crie raiz no amor de uma mulher E espere
calmamente o que vier.
(CMP)
O PAI
Era em seu
rosto curvo desenhada A figura do Pai. Morto faz muitos anos. Criava
pássaros na varanda E meninos no quarto de dormir.
O Pai deixou
muitas cartas na gaveta E silêncio No quarto de dormir.
O Pai
de mãos ingênuas, Feito de porcelana. Olhar tão simples atrás dos
óculos: Parecia usar cartola de mágico.
O Pai Acordava cedo
como todo pássaro.
Às vezes interrompia o silêncio Com risadas
inexplicáveis.
(OC)
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