Camilo Pessanha
Caros,
Dono de uma trajetória de vida considerada exótica, o português
Camilo Pessanha (1867-1926) é reverenciado como o mais autêntico representante do
simbolismo em seu país. Nascido em Coimbra — filho de um estudante de
direito com uma doméstica —, ele formou-se em direito em 1891.
Em
1894, devido a uma desilusão amorosa, mudou-se para a colônia portuguesa de
Macau, na China, onde exerceu diversas atividades, tais como advogado, professor
de filosofia, defensor público e conservador do registro predial.
Após
mudar-se para Macau e até 1915, o poeta voltou algumas vezes a Portugal, para
tratamento de saúde. Certa vez, foi apresentado a Fernando Pessoa, que, assim como Mário de Sá-Carneiro,
admirava sua poesia.
Literariamente, Camilo
Pessanha representou fundamental influência para a geração da revista Orpheu,
à qual pertenceram poetas de primeiríssima importância como os citados Pessoa e
Sá-Carneiro. O único livro deixado por ele foi Clepsidra, publicado
(sem sua participação) pela escritora Ana de Castro Osório. Para montar o
volume, ela colecionou textos autógrafos do autor e material publicado em
jornais. Antes de partir para Macau, Pessanha chegara a pedir Ana Osório em
casamento, mas ela recusou por já estar comprometida.
Em Macau, Pessanha
casou-se com uma mulher local com quem teve vários filhos. Aprendeu chinês e
mergulhou na cultura macauense, tornando-se respeitado na colônia. Escreveu um
alentado conjunto de estudos e ensaios sobre a literatura e a cultura chinesas.
O poeta assimilou tanto a cultura da terra que se tornou usuário habitual de
ópio, prática que deixou sua saúde mais frágil. Morreu de tuberculose.
•o•
Embora frequentemente referido como soneto, o poema “Ao longe
os barcos de flores” tem apenas treze versos. Mas nele o que realmente se
destaca são os efeitos musicais. A insistente aliteração do primeiro verso —
sons sibilantes e fricativos — estabelece uma atmosfera de aparente
serenidade e devaneio.
O mesmo timbre musical perpassa todo o poema,
marcado por outras aliterações, como em “Festões de som dissimulando a hora” ou
em “Na orgia, ao longe, que em clarões cintila”. É o tipo de poema que, para ser
bem apreciado, sugere que se faça uma leitura em voz alta. Assim pode-se ouvir o
sopro da flauta e seus efeitos mais estrídulos (“tranquila”, “exila”, “cintila”,
“trila”), tudo formando, como diz o poeta, “festões de som” – ou seja, arranjos
de flores sonoras.
Para reforçar o aspecto melódico, observe que os dois
primeiros versos se repetem, fechando o segundo quarteto. E o texto se fecha
como um círculo, pois o primeiro verso volta a aparecer como o último do poema.
É como uma partitura que trouxesse a instrução da capo, orientando o músico para
reexecutar a composição desde o começo.
•o•
Os barcos de flores são menos ingênuos do que a que expressão
pode sugerir. Segundo os estudiosos, trata-se na verdade de um eufemismo para
bordéis flutuantes que existiram no sul da China até meados do século XX. Também
as pessoas e objetos que surgem no texto são alvo de muitas interpretações.
Para alguns, estão disseminados no poema muitos símbolos convencionais da
cultura chinesa. Em chinês, o termo “flor”, por exemplo, poderia estar ligado
semanticamente à ideia de mulher jovem e também de fumo, vapor, ópio. Desse
modo, o som da flauta que “só, incessante, chora” seria uma metáfora para a voz
do poeta exilado num país e numa cultura distantes.
Para os mesmos
estudiosos, a flauta tocada pela jovem-flor também teria insinuações de natureza
erótica. Além disso, em chinês o branco é a cor do luto. Daí a ideia da “viúva
grácil”, que tanto pode ser a rapariga que faz planger a flauta, como a
própria voz do instrumento... Mas ficam no ar as perguntas: “A flauta flébil...
Quem há-de remi-la? / Quem sabe a dor que sem razão deplora?”
Enfim, como
afirmou certa vez Gilles Deleuze (1925-1995), “a obra de arte não contém,
estritamente, nenhuma informação”. Então, o que importa, fundamentalmente, num
poema como “Ao Longe os Barcos de Flores” é a combinação de música e
encantamento que oferece. A música acima de tudo, como propunha o mestre
simbolista Paul Verlaine.
•o•
Devido à proximidade musical, saltemos para o último poema. Aqui, o instrumento é outro: em lugar da flauta, o violoncelo.
Mantém-se o clima de solidão e desconsolo, sucessão desencontrada de coisas que
se chocam como num trecho nervoso de uma sinfonia: “Trêmulos astros, / Soidões
lacustres... / — Lemes e mastros... / E os alabastros / Dos balaústres!”. Mais
uma vez, leia em voz alta. Você pode não colar exatamente uma ideia sua a estes
versos. Mas sabe, sem dúvida, que neles existe algo de envolvente. Música?
Poesia?
•o•
Em “[Singra o navio. Sob a água clara]”, a música também está
presente. Os versos são fluidos e luminosos. Em meio a uma pura descrição de
paisagem marinha, três versos (exatamente os dois trechos iniciados por um
travessão) apresentam a visão direta de um observador. É como se o poema todo
constituísse um retrato objetivo, interrompido apenas por aquelas duas
considerações que dão o ponto de vista de alguém, que pode ser o mesmo autor da
descrição. Nelas, há uma afirmação de saudade (“a distância sem fim que nos
separa”) e desilusão (“ó fúlgida visão, linda mentira”) de certo modo já
anunciados no texto pretensamente objetivo: “tantos naufrágios, perdições,
destroços!”.
•o•
Outra vez, em “[Na cadeia os bandidos presos!]”,
uma situação de traços objetivos é usada pelo poeta para expressar um sentimento
íntimo. Neste caso, é o coração que se sente prisioneiro, saudoso, revoltado.
Diante da pesada disciplina carcerária, no entanto, o dono desse coração que
ameaça arrebentar em tumulto recomenda-lhe calma para não sofrer ainda mais:
“Pschiu! Não batas... Devagarinho... / Olha os soldados, as algemas!”
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
VOCÊ CONSTRUI? Uma curiosidade linguística. Alguns
leitores, após a circulação deste boletim, me mandaram mensagem apontando "erro
de digitação" neste verso de Camilo Pessanha, do poema [Singra o navio. Sob a
água clara]:
E a vista sonda, reconstrui, compara
Não, não existe nenhum erro no
verso. Pessanha escreveu-o assim.
O verbo construir (e
derivados) é conjugado somente como irregular no Brasil. Em Portugal, no
entanto, também se usa esse verbo como regular: eu construo,
tu construis, ele construi, nós construímos, vós construís, eles
construem.
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Ao longe os barcos de flores
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Camilo Pessanha
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AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão
tranqüila, — Perdida voz que de entre as mais se exila, — Festões de
som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora... Só, incessante, um som de
flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
E a
orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora, Cauta, detém. Só modulada
trila A flauta flébil... Quem há de remi-la? Quem sabe a dor que sem
razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Joan Miró, catalão, O Campo Lavrado (1923-24)
[SINGRA O NAVIO. SOB A ÁGUA
CLARA]
Singra o navio. Sob a água clara Vê-se o fundo do mar, de areia
fina...
— Impecável figura peregrina, A distância sem
fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana, Conchinhas tenuemente
cor de rosa, Na fria transparência luminosa Repousam, fundos, sob a
água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara, Tantos
naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas
unhinhas que a maré partira... Dentinhos que o vaivém
desengastara... Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos....
Joan Miró, O Jardim (1925)
[NA CADEIA OS BANDIDOS PRESOS!]
Na cadeia os bandidos presos! O seu ar de
contemplativos! Que é das flores de olhos acesos?! Pobres dos seus olhos
cativos. Passeiam mudos entre as grades, Parecem peixes num aquário. —
Campo florido das Saudades, Por que rebentas tumultuário? Serenos...
Serenos... Serenos... Trouxe-os algemados a escolta. — Estranha taça
de venenos Meu coração sempre em revolta. Coração, quietinho...
quietinho... Por que te insurges e blasfemas? Pschiu... Não batas...
Devagarinho... Olha os soldados, as algemas!
Joan Miró, Composição (1933)
[IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA]
Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, por que não vos fixais? Que
passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!...
Ou
para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago
medo angustioso domina, Por que ides sem mim, não me levais?
Sem vós o
que são os meus olhos abertos? O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez
de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão
casual de meus dedos incertos, Estranha sombra em movimentos vãos.
Joan Miró, O Carnaval de Arlequim (1924-25)
VIOLONCELO
Chorai arcadas Do violoncelo! Convulsionadas, Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam, Brancos, os arcos... Por baixo
passam, Se despedaçam, No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro... Que ruínas, (ouçam)! Se se debruçam, Que
sorvedouro!...
Trêmulos astros, Soidões lacustres... — Lemes e
mastros... E os alabastros Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo... — Chorai arcadas, Despedaçadas, Do violoncelo.
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