«Um pouco mais de sol —
eu era brasa. / Um pouco mais de azul — eu era além.» (Mário
de Sá-Carneiro) *
Nicanor Parra
Caros,
No dia 5 deste mês o poeta chileno Nicanor Parra completou 100
anos. Sim, um século. Dez redondos decênios, marca admirável. Nascido na província de Ñuble, região
central do Chile, Nicanor Segundo Parra Sandoval é matemático, físico e
professor.
O pai era professor primário e músico e a mãe, tecedeira e
costureira camponesa. Nicanor, o primogênito, tinha mais cinco irmãos e dois
meios-irmãos, entre os quais a cantora, compositora e artista plástica Violeta
Parra (1917-1967), autora de clássicos da música popular chilena como “Volver a
los 17” e “Gracias a la Vida”, canções que fizeram grande sucesso nos anos 70 na
voz da cantora argentina Mercedes Sosa (1935-2009).
Entre os irmãos de
Nicanor, vários, além de Violeta, abraçaram as artes, especialmente
a música. De todos, somente ele seguiu carreira universitária. Estudou
matemática e física na Universidade do Chile, onde depois tornou-se professor.
No
exterior, estudou mecânica avançada na Universidade Brown, nos Estados Unidos, e
cosmologia em Oxford, Inglaterra. Tudo isso até 1951, quando o poeta
retornou ao Chile.
•o•
A ANTIPOESIA
Nicanor Parra já escrevia poesia desde
os anos 30 e, após ter vivido nos EUA e na Europa, firmou as concepções do que
viria a chamar de antipoesia. Consolidou também sua decidida oposição estética à
poesia de seu compatriota Pablo Neruda (1904-1973), considerado tradicional.
O que vem a ser a antipoesia? Uma poesia sem empostação,
baseada em linguagem coloquial, com elementos críticos que questionam tudo, por
meio de ironia, irreverência e nonsense. Em certo sentido, os postulados da
antipoesia lembram aspectos da plataforma defendida no Brasil pelos modernistas
de 1922. "Na antipoesia se busca a poesia, não a eloquência", diz Parra num de
seus poemas.
O marco inicial dos poemas de Parra com essas
características é dado em seu primeiro livro, Poemas e Antipoemas, de 1954. Daí
em diante, com uma obra que reúne dezenas de títulos, o poeta desenvolveu novas
experimentações, como poemas visuais, mas sempre mantendo a ideia central da
antipoesia.
Ao desenvolver seus antipoemas, Parra exibe uma postura
absolutamente iconoclástica, que não deixa de pé nenhum conceito estabelecido.
Cutuca com vara curta desde os deuses do Olimpo até os dogmas da igreja
católica. Distribui críticas e piadas tanto à esquerda como à direita.
No poema
chamado “Declaración de Principios”, o narrador, depois de se proclamar sucessivamente
católico, marxista, capitalista etc. e até fanático total, termina: “a palavra Deus
é uma interjeição / dá no mesmo que exista ou que não exista”. Esse poema (não
transcrito aqui) está no livro Hojas de Parra (Folhas de Parreira, ou
Folhas de Parra, o autor), de 1985. Outro exemplo, este do livro Poemas
Políticos: “Não sou direitista nem esquerdista / simplesmente rompo com
tudo”.
•o•
POEMAS CONTRA A CALVÍCIE
Para este boletim,
selecionei poemas de uma antologia chamada Parranda Larga, de 2010. O título dessa antologia, além de novamente remeter ao
sobrenome do poeta, significa algo como “grande farra”. O espírito irreverente
da antipoesia não se apresenta somente nestes títulos. É marca registrada de
quase todas as coletâneas de Parra. Entre seus livros há coisas como Obra Grossa
(1969); Chistes parra Desorientar a Polícia/Poesia (lembrando que em espanhol
policía e poesía são palavras mais próximas), de 1983; e Poemas para Combater a
Calvície (1993).
Entre os
chistes parra (para com dois erres) desorientar a polícia (ou a poesia), há coisas como:
Ontem de tombo em tombo Hoje de tumba em tumba
Ou
então:
Aparecer, apareceu mas numa lista de desaparecidos
Nem é preciso dizer que esses chistes devem referir-se ao tenebroso período
período da ditadura militar (1973-1990) comandada por Augusto Pinochet.
•o•
Aparentemente, não há traduções de poemas parrianos para o português ou, pelo
menos, não consegui encontrá-las. Por isso, traduzi eu mesmo um punhado de
textos para este boletim.
•o•
TREM INSTANTÂNEO
Ao ler a poesia de Parra, tem-se a impressão
de que ele na verdade é um grande gozador, que se delicia com suas invenções. Um
de seus poemas (também não transcrito aqui) chama-se “Projeto de Trem
Instantâneo — entre Santiago e Puerto Montt”. Para que se entenda bem a piada, é
importante saber que a distância entre as duas cidades que serão ligadas por
essa ferrovia ultrarrápida é de 1100 km. No início da viagem, a locomotiva está
em Puerto Montt e o último vagão em Santiago, o ponto de partida.
A vantagem desse tipo de trem, explica o poema, é que o
viajante chega instantaneamente a Puerto Montt, no mesmo momento em que embarca no
último vagão, em Santiago. A única coisa que ele precisa fazer é carregar as
próprias malas por dentro do trem até o primeiro vagão. Um detalhe: esse tipo de
comboio serve apenas para viagens de ida. Confesso que estou rindo sozinho ao
descrever essa “viagem”. Nicanor Parra também deve ter-se divertido ao conceber
esse projeto de altíssima tecnologia.
•o•
CORDEIRO DE DEUS
Passemos
à nossa miniantologia. Para começar, o poema “O Homem Imaginário”, que é talvez
o mais popular de Parra. Vem a seguir “A Montanha Russa”, texto que
funciona como uma espécie de manifesto da antipoesia. Depois, “A Sorte”, uma
ironia com as láureas concedidas aos artistas idosos.
Em “Pai Nosso” e “Agnus Dei” a
irreverência parriana resolve brincar com aspectos religiosos. "Cordeiro de deus
que lavas os pecados do mundo / Faz-me o favor de dizer-me que horas são". Por fim, em
“Epitáfio”, a vítima é a poeta chilena Gabriela Mistral (1889-1957), ganhadora
do Prêmio Nobel de Literatura de 1945. Portanto, ele não poupa nem mesmo os dois grandes
baluartes da poesia chilena, uma vez que Pablo
Neruda também foi agraciado com o Nobel em 1971.
•o•
Em certo sentido,
Nicanor Parra encontrou na antipoesia uma forma de zombar da vida. Seu
centenário foi celebrado em vários países, e no Chile o aniversariante recebeu honras presidenciais. Mas ele nunca perde a oportunidade de fazer
piada, nem mesmo em momentos assim. Durante uma homenagem que lhe foi prestada
em 1996, ele declarou: “Sem estátua me sinto miserável / Mas por favor que seja
de barro / Para que dure o menos possível”.
Apesar da aparente
falta de comprometimento social sugerida por sua poesia, em 2010, aos 96 anos, Parra aderiu a uma greve de fome
pela desmilitarização do território dos índios mapuches e pela não aplicação da lei
antiterror contra eles. Bravo Nicanor.
•o•
Para ler mais poemas de Nicanor Parra, visite o site da
Universidade do Chile dedicado a ele.
Nicanor Parra faleceu em 23 de janeiro de 2018, aos 103 anos.
•o•
O mestre da antipoesia
Nicanor Parra
Tradução: Carlos Machado
Leonid Afremov, pintor russo contemporâneo
O HOMEM IMAGINÁRIO
O homem imaginário vive numa mansão imaginária rodeada de
árvores imaginárias à margem de um rio imaginário
Dos muros que
são imaginários pendem antigos quadros imaginários irreparáveis
rachaduras
imaginárias que representam feitos imaginários ocorridos em mundos
imaginários em lugares e tempos imaginários
Todas as tardes tardes
imaginárias sobe as escadas imaginárias e se debruça na varanda
imaginária olhando a paisagem imaginária que consiste num vale
imaginário circundado de colinas imaginárias
Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário entoando canções imaginárias à morte do
sol imaginário
E nas noites de lua imaginária sonha com a mulher
imaginária que o brindou com amor imaginário volta a sentir essa mesma
dor esse mesmo prazer imaginário e volta a palpitar o coração do
homem imaginário
Parra lê seu poema "El Hombre Imaginario"
EL HOMBRE IMAGINARIO
El hombre imaginario vive en una
mansión imaginaria rodeada de árboles imaginarios a la orilla de un
río imaginario
De los muros que son imaginarios penden antiguos
cuadros imaginarios irreparables grietas imaginarias que representan
hechos imaginarios ocurridos en mundos imaginarios en lugares y
tiempos imaginarios
Todas las tardes tardes imaginarias sube las
escaleras imaginarias y se asoma al balcón imaginario a mirar el
paisaje imaginario que consiste en un valle imaginario circundado de
cerros imaginarios
Sombras imaginarias vienen por el camino
imaginario entonando canciones imaginarias a la muerte del sol
imaginario
Y en las noches de luna imaginaria sueña con la mujer
imaginaria que le brindó su amor imaginario vuelve a sentir ese
mismo dolor ese mismo placer imaginario y vuelve a palpitar el
corazón del hombre imaginario.
A MONTANHA-RUSSA
Durante meio século A poesia foi O paraíso do bobo solene. Até
que cheguei eu E me instalei com minha montanha-russa.
Subam, se
quiserem. Claro que não me responsabilizo se descerem Botando sangue
pela boca e pelo nariz.
LA MONTAÑA RUSA
Durante medio siglo La poesía fue El paraíso del tonto solemne.
Hasta que vine yo Y me instalé con mi montaña rusa.
Suban, si les
parece. Claro que yo no respondo si bajan Echando sangre por boca y
narices.
A
SORTE
A sorte não ama a quem a ama. Esta pequena folha
de louro Chegou com anos de atraso. Quando eu a queria Para me
tornar querido De uma dama de lábios violeta Me foi negada várias
vezes E agora me dão quando estou velho. Agora que não me serve para
nada.
Agora que não me serve para nada. Lançam-me a folha ao rosto
Quase como
uma
pazada
de
terra...
LA
FORTUNA
La fortuna no ama a quien la ama: Esta pequena
hoja de laurel Ha llegado con años de retraso. Cuando yo la quería
Para hacerme querer Por una dama de lábios morados Me fue negada una y
otra vez Y me la dan ahora que estoy viejo. Ahora que no me sirve de
nada.
Ahora que no me sirve de nada. Me la arrojan al rostro
Casi como
una
palada
de
tierra...
CRONOS
Em Santiago do Chile Os
dias são
interminavelmente
longos: Várias eternidades num só dia.
Nos deslocamos em lombo de
mula Como os vendedores de cochayuyo: * A gente boceja. E volta a
bocejar.
No entanto as semanas são curtas Os meses passam a todo
vapor Eosanosparecequevoaram.
* Cochayuyo, palavra de
origem quíchua, é uma alga marinha comestível.
CRONOS
En Santiago
de Chile Los días
son
interminablemente
largos: Varias eternidades en un día.
Nos desplazamos a lomo de
mula Como los vendedores de cochayuyo: Se bosteza. Se vuelve a
bostezar.
Sin embargo las semanas son cortas Los meses pasan a
toda carrera Ylosañosparecequevolaran.
ATENÇÃO
Aos jovens
apaixonados Que cortejam belas donzelas Nos jardins dos mosteiros
Faço saber com toda a franqueza Que no amor
por mais casto Ou inocente que pareça no começo costumam surgir
complicações.
Concorda-se plenamente Que o amor é mais doce que o
mel.
Mas é bom advertir Que no jardim há luzes e sombras Além
de sorrisos No jardim há desgostos e lágrimas No jardim não há só
verdade Mas também um pouco de mentira.
ATENCIÓN
A los
jóvenes aficionados A cortejar muchachas buenas-mozas En los jardines
de los monasterios Hago saber con toda franqueza Que en el amor
por casto Por inocente que parezca al comienzo Sueien presentarse sus
complicaciones.
Totalmente de acuerdo Que el amor es más dulce que
la miel.
Pero se les advierte Que en el jardín hay luces y sombras
Además de sonrisas En el jardín hay disgustos y lágrimas En el jardín
hay no sólo verdad Sino también su poco de mentira.
PAI NOSSO
Pai nosso
que estás no céu Cheio de todo tipo de problemas Com o cenho franzido
Como se fosses um homem vulgar e comum Não penses em nós.
Compreendemos que sofres Porque não podes consertar as coisas. Sabemos
que o Demônio não te deixa tranquilo Desconstruindo o que constróis.
Ele se ri de ti Mas nós choramos contigo: Não te preocupes com
suas risadas diabólicas.
Pai nosso que estás onde estás Rodeado de
anjos desleais Sinceramente: não sofras mais por nós Tens de perceber
Que os deuses não são infalíveis E que nós perdoamos tudo.
PADRE NUESTRO
Padre nuestro que estás en el cielo Lleno de toda clase de problemas
Con el ceño fruncido Como si fueras un hombre vulgar y corriente No
pienses más en nosotros.
Comprendemos que sufres Porque no puedes
arreglar las cosas. Sabemos que el Demónio no te deja tranquilo
Desconstruyendo lo que tú construyes.
Él se ríe de ti Pero
nosotros lloramos contigo: No te preocupes de sus risas diabólicas.
Padre nuestro que estás donde estás Rodeado de ángeles desleales
Sinceramente: no sufras más por nosotros Tienes que darte cuenta De
que los dioses no son infalibles Y que nosotros perdonamos todo.
AGNUS DEI
Horizonte de terra astros de terra Lágrimas e soluços reprimidos
Boca que cospe terra
dentes moles Corpo que não é mais que um saco de terra Terra com terra
— terra com minhocas. Alma imortal — espírito de terra.
Cordeiro
de deus que lavas os pecados do mundo Diz-me quantas maçãs existem no
paraíso terrestre.
Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Faz-me o favor de dizer-me que horas são.
Cordeiro de deus que lavas
os pecados do mundo Dá-me tua lã para eu fazer um suéter.
Cordeiro
de deus que lavas os pecados do mundo Deixa-nos fornicar tranquilamente:
Não te imiscuas nesse momento sagrado.
AGNUS DEI
Horizonte
de tierra astros de tierra Lágrimas y sollozos reprimidos Boca que
escupe tierra
dientes blandos Cuerpo que no es más que un saco de tierra Tierra con
tierra — tierra con lombrices. Alma inmortal — espíritu de tierra.
Cordero de dios que lavas los pecados del mundo Dime cuántas manzanas
hay en el paraíso terrenal.
Cordero de dios que lavas los pecados del
mundo Hazme el favor de decirme la hora.
Cordero de dios que lavas
los pecados del mundo Dame tu lana para hacerme un sweater.
Cordero de dios que lavas los pecados del mundo Déjanos fornicar
tranquilamente: No te inmiscuyas en ese momento sagrado.
EPITÁFIO
Eu
sou Lucila Alcayaga aliás Gabriela Mistral primeiro ganhei o Nobel
e depois o Nacional
Embora eu esteja morta ainda me sinto mal
porque não me deram nunca o Prêmio Municipal.
EPITAFIO
Yo soy
Lucila Alcayaga alias Gabriela Mistral primero me gané el Nobel y
después el Nacional
a pesar de que estoy muerta me sigo sintiendo
mal porque no me dieron nunca el Premio Municipal.