Número 318 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2014

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«Um pouco mais de sol — eu era brasa. / Um pouco mais de azul — eu era além.» (Mário de Sá-Carneiro) *

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Nicanor Parra
Nicanor Parra

 

Caros,

No dia 5 deste mês o poeta chileno Nicanor Parra completou 100 anos. Sim, um século. Dez redondos decênios, marca admirável. Nascido na província de Ñuble, região central do Chile, Nicanor Segundo Parra Sandoval é matemático, físico e professor.

O pai era professor primário e músico e a mãe, tecedeira e costureira camponesa. Nicanor, o primogênito, tinha mais cinco irmãos e dois meios-irmãos, entre os quais a cantora, compositora e artista plástica Violeta Parra (1917-1967), autora de clássicos da música popular chilena como “Volver a los 17” e “Gracias a la Vida”, canções que fizeram grande sucesso nos anos 70 na voz da cantora argentina Mercedes Sosa (1935-2009).

Entre os irmãos de Nicanor, vários, além de Violeta, abraçaram as artes, especialmente a música. De todos, somente ele seguiu carreira universitária. Estudou matemática e física na Universidade do Chile, onde depois tornou-se professor. No exterior, estudou mecânica avançada na Universidade Brown, nos Estados Unidos, e cosmologia em Oxford, Inglaterra. Tudo isso até 1951, quando o poeta retornou ao Chile.

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A ANTIPOESIA

Nicanor Parra já escrevia poesia desde os anos 30 e, após ter vivido nos EUA e na Europa, firmou as concepções do que viria a chamar de antipoesia. Consolidou também sua decidida oposição estética à poesia de seu compatriota Pablo Neruda (1904-1973), considerado tradicional.

O que vem a ser a antipoesia? Uma poesia sem empostação, baseada em linguagem coloquial, com elementos críticos que questionam tudo, por meio de ironia, irreverência e nonsense. Em certo sentido, os postulados da antipoesia lembram aspectos da plataforma defendida no Brasil pelos modernistas de 1922. "Na antipoesia se busca a poesia, não a eloquência", diz Parra num de seus poemas.

O marco inicial dos poemas de Parra com essas características é dado em seu primeiro livro, Poemas e Antipoemas, de 1954. Daí em diante, com uma obra que reúne dezenas de títulos, o poeta desenvolveu novas experimentações, como poemas visuais, mas sempre mantendo a ideia central da antipoesia.

Ao desenvolver seus antipoemas, Parra exibe uma postura absolutamente iconoclástica, que não deixa de pé nenhum conceito estabelecido. Cutuca com vara curta desde os deuses do Olimpo até os dogmas da igreja católica. Distribui críticas e piadas tanto à esquerda como à direita.

No poema chamado “Declaración de Principios”, o narrador, depois de se proclamar sucessivamente católico, marxista, capitalista etc. e até fanático total, termina: “a palavra Deus é uma interjeição / dá no mesmo que exista ou que não exista”. Esse poema (não transcrito aqui) está no livro Hojas de Parra (Folhas de Parreira, ou Folhas de Parra, o autor), de 1985. Outro exemplo, este do livro Poemas Políticos: “Não sou direitista nem esquerdista / simplesmente rompo com tudo”.

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POEMAS CONTRA A CALVÍCIE

Para este boletim, selecionei poemas de uma antologia chamada Parranda Larga, de 2010. O título dessa antologia, além de novamente remeter ao sobrenome do poeta, significa algo como “grande farra”. O espírito irreverente da antipoesia não se apresenta somente nestes títulos. É marca registrada de quase todas as coletâneas de Parra. Entre seus livros há coisas como Obra Grossa (1969); Chistes parra Desorientar a Polícia/Poesia (lembrando que em espanhol policía e poesía são palavras mais próximas), de 1983; e Poemas para Combater a Calvície (1993).

Entre os chistes parra (para com dois erres) desorientar a polícia (ou a poesia), há coisas como:

Ontem
de tombo em tombo
Hoje
de tumba em tumba


Ou então:

Aparecer, apareceu
mas numa lista de desaparecidos


Nem é preciso dizer que esses chistes devem referir-se ao tenebroso período período da ditadura militar (1973-1990) comandada por Augusto Pinochet.

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Aparentemente, não há traduções de poemas parrianos para o português ou, pelo menos, não consegui encontrá-las. Por isso, traduzi eu mesmo um punhado de textos para este boletim. 

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TREM INSTANTÂNEO
 
Ao ler a poesia de Parra, tem-se a impressão de que ele na verdade é um grande gozador, que se delicia com suas invenções. Um de seus poemas (também não transcrito aqui) chama-se “Projeto de Trem Instantâneo — entre Santiago e Puerto Montt”. Para que se entenda bem a piada, é importante saber que a distância entre as duas cidades que serão ligadas por essa ferrovia ultrarrápida é de 1100 km. No início da viagem, a locomotiva está em Puerto Montt e o último vagão em Santiago, o ponto de partida.

A vantagem desse tipo de trem, explica o poema, é que o viajante chega instantaneamente a Puerto Montt, no mesmo momento em que embarca no último vagão, em Santiago. A única coisa que ele precisa fazer é carregar as próprias malas por dentro do trem até o primeiro vagão. Um detalhe: esse tipo de comboio serve apenas para viagens de ida. Confesso que estou rindo sozinho ao descrever essa “viagem”. Nicanor Parra também deve ter-se divertido ao conceber esse projeto de altíssima tecnologia.

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CORDEIRO DE DEUS

Passemos à nossa miniantologia. Para começar, o poema “O Homem Imaginário”, que é talvez o mais popular de Parra. Vem a seguir “A Montanha Russa”, texto que funciona como uma espécie de manifesto da antipoesia. Depois, “A Sorte”, uma ironia com as láureas concedidas aos artistas idosos.

Em “Pai Nosso” e “Agnus Dei” a irreverência parriana resolve brincar com aspectos religiosos. "Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo / Faz-me o favor de dizer-me que horas são". Por fim, em “Epitáfio”, a vítima é a poeta chilena Gabriela Mistral (1889-1957), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1945. Portanto, ele não poupa nem mesmo os dois grandes baluartes da poesia chilena, uma vez que Pablo Neruda também foi agraciado com o Nobel em 1971.

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Em certo sentido, Nicanor Parra encontrou na antipoesia uma forma de zombar da vida. Seu centenário foi celebrado em vários países, e no Chile o aniversariante recebeu honras presidenciais. Mas ele nunca perde a oportunidade de fazer piada, nem mesmo em momentos assim. Durante uma homenagem que lhe foi prestada em 1996, ele declarou: “Sem estátua me sinto miserável / Mas por favor que seja de barro / Para que dure o menos possível”.

Apesar da aparente falta de comprometimento social sugerida por sua poesia, em 2010, aos 96 anos, Parra aderiu a uma greve de fome pela desmilitarização do território dos índios mapuches e pela não aplicação da lei antiterror contra eles. Bravo Nicanor.

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Para ler mais poemas de Nicanor Parra, visite o site da Universidade do Chile dedicado a ele.



Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    


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Nicanor Parra faleceu em 23 de janeiro de 2018, aos 103 anos.


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O mestre da antipoesia

Nicanor Parra


Tradução: Carlos Machado               



Leonid Afremov
Leonid Afremov, pintor russo contemporâneo



O HOMEM IMAGINÁRIO

O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
à margem de um rio imaginário

Dos muros que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis rachaduras imaginárias
que representam feitos imaginários
ocorridos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários

Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se debruça na varanda imaginária
olhando a paisagem imaginária
que consiste num vale imaginário
circundado de colinas imaginárias

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou com amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário





Parra lê seu poema "El Hombre Imaginario"




EL HOMBRE IMAGINARIO

El hombre imaginario
vive en una mansión imaginaria
rodeada de árboles imaginarios
a la orilla de un río imaginario

De los muros que son imaginarios
penden antiguos cuadros imaginarios
irreparables grietas imaginarias
que representan hechos imaginarios
ocurridos en mundos imaginarios
en lugares y tiempos imaginarios

Todas las tardes tardes imaginarias
sube las escaleras imaginarias
y se asoma al balcón imaginario
a mirar el paisaje imaginario
que consiste en un valle imaginario
circundado de cerros imaginarios

Sombras imaginarias
vienen por el camino imaginario
entonando canciones imaginarias
a la muerte del sol imaginario

Y en las noches de luna imaginaria
sueña con la mujer imaginaria
que le brindó su amor imaginario
vuelve a sentir ese mismo dolor
ese mismo placer imaginario
y vuelve a palpitar
el corazón del hombre imaginario.




Leonid Afremov



A MONTANHA-RUSSA

Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que cheguei eu
E me instalei com minha montanha-russa.

Subam, se quiserem.
Claro que não me responsabilizo se descerem
Botando sangue pela boca e pelo nariz.



LA MONTAÑA RUSA

Durante medio siglo
La poesía fue
El paraíso del tonto solemne.
Hasta que vine yo
Y me instalé con mi montaña rusa.

Suban, si les parece.
Claro que yo no respondo si bajan
Echando sangre por boca y narices.





A SORTE

A sorte não ama a quem a ama.
Esta pequena folha de louro
Chegou com anos de atraso.
Quando eu a queria
Para me tornar querido
De uma dama de lábios violeta
Me foi negada várias vezes
E agora me dão quando estou velho.
Agora que não me serve para nada.

Agora que não me serve para nada.
Lançam-me a folha ao rosto
Quase
         como
                 uma
                       pazada
                                 de
                                     terra...




LA FORTUNA

La fortuna no ama a quien la ama:
Esta pequena hoja de laurel
Ha llegado con años de retraso.
Cuando yo la quería
Para hacerme querer
Por una dama de lábios morados
Me fue negada una y otra vez
Y me la dan ahora que estoy viejo.
Ahora que no me sirve de nada.

Ahora que no me sirve de nada.
Me la arrojan al rostro
Casi
      como
             una
                  palada
                           de
                              tierra...




Leonid Afremov




CRONOS

Em Santiago do Chile
Os
    dias
          são
               interminavelmente
                                           longos:
Várias eternidades num só dia.

Nos deslocamos em lombo de mula
Como os vendedores de cochayuyo: *
A gente boceja. E volta a bocejar.

No entanto as semanas são curtas
Os meses passam a todo vapor
Eosanosparecequevoaram.


* Cochayuyo, palavra de origem quíchua, é uma alga marinha comestível.



CRONOS

En Santiago de Chile
Los
     días
           son
               interminablemente
                                          largos:
Varias eternidades en un día.

Nos desplazamos a lomo de mula
Como los vendedores de cochayuyo:
Se bosteza. Se vuelve a bostezar.

Sin embargo las semanas son cortas
Los meses pasan a toda carrera
Ylosañosparecequevolaran.



Leonid Afremov



ATENÇÃO

Aos jovens apaixonados
Que cortejam belas donzelas
Nos jardins dos mosteiros
Faço saber com toda a franqueza
Que no amor
                   por mais casto
Ou inocente que pareça no começo
costumam surgir complicações.

Concorda-se plenamente
Que o amor é mais doce que o mel.

Mas é bom advertir
Que no jardim há luzes e sombras
Além de sorrisos
No jardim há desgostos e lágrimas
No jardim não há só verdade
Mas também um pouco de mentira.




ATENCIÓN

A los jóvenes aficionados
A cortejar muchachas buenas-mozas
En los jardines de los monasterios
Hago saber con toda franqueza
Que en el amor
                      por casto
Por inocente que parezca al comienzo
Sueien presentarse sus complicaciones.

Totalmente de acuerdo
Que el amor es más dulce que la miel.

Pero se les advierte
Que en el jardín hay luces y sombras
Además de sonrisas
En el jardín hay disgustos y lágrimas
En el jardín hay no sólo verdad
Sino también su poco de mentira.




Leonid Afremov



PAI NOSSO

Pai nosso que estás no céu
Cheio de todo tipo de problemas
Com o cenho franzido
Como se fosses um homem vulgar e comum
Não penses em nós.

Compreendemos que sofres
Porque não podes consertar as coisas.
Sabemos que o Demônio não te deixa tranquilo
Desconstruindo o que constróis.

Ele se ri de ti
Mas nós choramos contigo:
Não te preocupes com suas risadas diabólicas.

Pai nosso que estás onde estás
Rodeado de anjos desleais
Sinceramente: não sofras mais por nós
Tens de perceber
Que os deuses não são infalíveis
E que nós perdoamos tudo.



PADRE NUESTRO

Padre nuestro que estás en el cielo
Lleno de toda clase de problemas
Con el ceño fruncido
Como si fueras un hombre vulgar y corriente
No pienses más en nosotros.

Comprendemos que sufres
Porque no puedes arreglar las cosas.
Sabemos que el Demónio no te deja tranquilo
Desconstruyendo lo que tú construyes.

Él se ríe de ti
Pero nosotros lloramos contigo:
No te preocupes de sus risas diabólicas.

Padre nuestro que estás donde estás
Rodeado de ángeles desleales
Sinceramente: no sufras más por nosotros
Tienes que darte cuenta
De que los dioses no son infalibles
Y que nosotros perdonamos todo.




Leonid Afremov



AGNUS DEI

Horizonte de terra
astros de terra
Lágrimas e soluços reprimidos
Boca que cospe terra
                              dentes moles
Corpo que não é mais que um saco de terra
Terra com terra — terra com minhocas.
Alma imortal — espírito de terra.

Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Diz-me quantas maçãs existem no paraíso terrestre.

Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Faz-me o favor de dizer-me que horas são.

Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Dá-me tua lã para eu fazer um suéter.

Cordeiro de deus que lavas os pecados do mundo
Deixa-nos fornicar tranquilamente:
Não te imiscuas nesse momento sagrado.



AGNUS DEI


Horizonte de tierra
astros de tierra
Lágrimas y sollozos reprimidos
Boca que escupe tierra
                                 dientes blandos
Cuerpo que no es más que un saco de tierra
Tierra con tierra — tierra con lombrices.
Alma inmortal — espíritu de tierra.

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Dime cuántas manzanas hay en el paraíso terrenal.

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Hazme el favor de decirme la hora.

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Dame tu lana para hacerme un sweater.

Cordero de dios que lavas los pecados del mundo
Déjanos fornicar tranquilamente:
No te inmiscuyas en ese momento sagrado.




Leonid Afremov



EPITÁFIO

Eu sou Lucila Alcayaga
aliás Gabriela Mistral
primeiro ganhei o Nobel
e depois o Nacional

Embora eu esteja morta
ainda me sinto mal
porque não me deram nunca
o Prêmio Municipal.



EPITAFIO

Yo soy Lucila Alcayaga
alias Gabriela Mistral
primero me gané el Nobel
y después el Nacional

a pesar de que estoy muerta
me sigo sintiendo mal
porque no me dieron nunca
el Premio Municipal.



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Nicanor Parra
•  Parranda Larga - Antología Poética
   
Alfaguara, Santiago de Chile, 2010
    Todos os poemas: trad. Carlos Machado

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* Mário de Sá Carneiro, "Quase", in Dispersão (1914)

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- Todas as imagens: quadros do pintor russo contemporâneo Leonid Afremov