Número 368 - Ano 15 |
São Paulo, quarta-feira, 14 de
dezembro de 2016 |
Adélia Prado
Amigas e amigos,
Neste 12 de dezembro, o poesia.net completa 14 anos. Nascido no final de 2002 como publicação semanal,
o boletim manteve essa periodicidade até 2007. No ano seguinte, passou a ser quinzenal, circulando quarta-feira
sim, quarta-feira não, de fevereiro a dezembro.
A partir de 2014, o poesia.net ampliou-se para atuar em três frentes: segue para os assinantes por e-mail;
fica à disposição pública no site Alguma Poesia; e também está representado numa página do Facebook, onde são feitas
publicações diárias, além da divulgação do boletim.
Num balanço rápido, são até hoje 368 edições, com discussões sobre a obra de 295 poetas, brasileiros ou estrangeiros, sem contar as
notícias sobre lançamentos de livros, seminários e outras informações de interesse poético.
É tempo de aniversário. Contudo, neste malfadado 2016, após um golpe de estado, a instalação de um governo ilegítimo
e usurpador e a rápida destruição da economia e do patrimônio nacional, além dos planos para suprimir direitos civis,
sociais, trabalhistas, previdenciários etc., não há clima para comemorações.
Como diz a historiadora Laura de Mello e Sousa, da USP, "nas últimas semanas, a gente está vivendo um filme-catástrofe.
A única diferença é que não se pode sair do cinema".
Neste momento difícil, ergamos um brinde ao poesia.net, mas concentremos nossas energias na restauração da
vida democrática do país.
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A poeta em foco neste número é a mineira Adélia Prado, que este ano completou
quatro décadas de poesia. Seu livro de estreia, com a bênção de Carlos Drummond de Andrade, saiu em 1976. Adélia não é uma estreante no boletim. Ela já esteve aqui na edição n. 63, em abril de 2004. Ao apresentá-la pela primeira vez, destaquei em sua poesia a aventura de mover-se no “difícil território do cotidiano”.
Por que difícil? Primeiro, porque, tradicionalmente, entende-se poesia como algo destinado a tratar apenas do que parece transcendente,
elevado. Depois, os assuntos comezinhos, nugas do dia a dia (nonadas, como diria
João Guimarães Rosa), são considerados sem estofo para merecer o favor das musas. Sem transcendência, portanto.
Adélia, com sua poesia, prova que estão enganados os que pensam assim. Ela consegue extrair substância poética das vidas pequenas do interior mineiro, do ambiente doméstico, dos loucos da aldeia, dos sistemáticos e tristes, dos namoros indecisos marcados pela timidez. Enfim, vidas pequenas — vidas enormes como as de todos os seres humanos.
Obviamente, a poesia de Adélia Prado não se resume às trivialidades do cotidiano. Há nela pelo menos mais uma faceta importante, caracterizada por um forte espiritualismo católico, às vezes misturado com certa sensualidade. Para este boletim, selecionei poemas mais marcados pelo dia a dia.
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Em “Cabeça”, o primeiro texto da miniantologia ao lado, a narradora é uma mulher que, segundo ela própria, em algum momento “sofria dos nervos” e “tinha medo de chuva, de relâmpio”. Declara-se curada e
diz que adotou uma capa de plástico: “Dia e noite eu não tiro, até durmo com ela”. Enfim, uma personagem do interior, bem-falante, que ousa até discutir questões religiosas com o padre local.
Em “Verossímil”, o cotidiano se cruza com a religiosidade católica, na voz de uma menina que se veste de anjo nas procissões. No poema “Ensinamento”, o ambiente é o doméstico, onde se destaca o aprendizado obtido na convivência familiar.
No poema “Um silêncio”, uma mulher (“ela”, sem mais detalhes) se põe sob as rodas de um trem e deflagra uma tragédia interiorana. A canção incidental, “Súplica”, na voz de Orlando Silva (1915-1978) — “o cantor das multidões” —, sugere que a suicida teria sofrido uma decepção amorosa.
“Corridinho” também lida com as peripécias do amor, mas em tom irônico. “O amor usa o correio, / o correio trapaceia, / a carta não chega, / o amor fica sem saber se é ou não é”. O andamento deste poema traz à lembrança o
célebre “O amor bate na aorta”, de Carlos Drummond de Andrade, de quem Adélia Prado sempre se mostrou aluna contrita e confessa.
De todos os poemas aqui apresentados, “Os Tiranos” é o que pessoalmente mais me toca. Mostra a convivência de antigas irmãs solteiras que dividem o mesmo teto pela vida afora. Uma parceria cheia de ciúmes e pequenas rivalidades, construída à base de “amargura recíproca”.
Em “Neurolinguística” uma mulher, viúva e sexagenária, experimenta novos ímpetos juvenis diante de um galanteio. E, por fim, “A paciência tem seus limites”. É o desabafo da namorada do tímido,
o apaixonado que dá mil voltas e não encontra um jeito de se declarar à amada — para a qual, obviamente, não será nenhuma novidade tudo aquilo que ele se embatuca e não diz.
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Adélia Prado (1935-) nasceu e sempre viveu em Divinópolis-MG, onde trabalhou como professora.
Os poemas ao lado foram extraídos de sua Poesia Reunida (Siciliano, 1991) e Miserere
(Record, 2013).
Uma coincidência, que só notei agora, depois de ter concluído o boletim: Adélia Prado faz aniversário
no dia 13/12. Parabéns, poeta. Longa vida e muita poesia.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
Três lançamentos em São Paulo nos próximos dias: dois poetas mineiros e uma
paulista.
Estação das Clínicas
• Iacyr Anderson Freitas
O
poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas sua nova coletânea de poemas, Estação das Clínicas (coedição Escrituras/ Funalfa),
em
evento marcado para esta semana.
Quando: Quarta-feira,14/12/2016,
das 19h00 às 21h00
Onde:
Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 Vila Madalena
São Paulo, SP
Vênus em Escorpião
• Luíza Mendes Furia
Luíza Mendes
Furia, poeta paulista, lança a coletânea de poemas Vênus em Escorpião, uma
publicação da Editora Patuá.
Esse livro, que já circulou em tiragem limitada, ganha agora a merecida primeira
edição comercial.
Quando: Quinta-feira,15/12/2016,
das 19h00 às 23h45
Onde:
Patuscada Livraria, Bar e Café
Rua Luís Murat, 40 Vila Madalena
São Paulo, SP
O Quintal e o Mundo
• Júlio Machado
O
mineiro Júlio Machado, poeta e professor da UFF, lança em São Paulo seu volume de poemas O Quintal e o Mundo, publicado
pela Editora Kazuá.
Quando: Sáado, 17/12/2016,
a partir das 18h
Onde:
Patuscada Livraria, Bar e Café
Rua Luís Murat, 40 Vila Madalena
São Paulo, SP
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Vidas pequenas do interior
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Adélia Prado
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Armando Barrios, venezuelano, Afinidade Cromática (1990)
CABEÇA
Quando eu sofria dos nervos,
não passava debaixo de fio elétrico,
tinha medo de chuva, de relâmpio,
nojo de certos bichos que eu não falo
pra não ter de lavar minha boca com cinza.
Qualquer casca de fruta eu apanhava.
Hoje, que sarei, tenho uma vida e tanto:
já seguro nos fios com a chave desligada
e lembrei de arrumar pra mim esta capa de plástico,
dia e noite eu não tiro, até durmo com ela.
Caso chova, tenho trabalho nenhum.
Casca, mesmo sendo de banana ou de manga,
eu não intervo, quem quiser que se cuide.
Abastam as placas de ATENÇÃO! que eu escrevo
e ponho perto. Um bispo, quando tem zelo
apostólico, é uma coisa charmosa.
Não canso de explicar isso pro pastor
da minha diocese, mas ele não entende
e fica falando: minha filha, minha filha,
ele pensa que é Woman's Lib, pensa
que a fé tá lá em cima e cá em baixo
é mau gosto só. É ruim, é ruim,
ninguém entende. Gritava até parar,
quando eu sofria dos nervos.
Armando Barrios, Tributo ao violoncelo
VEROSSÍMIL
Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
'Canta alto, espevita as palavras bem'.
Eu levantava voo rua acima.
Armando Barrios, Cantata (1985)
ENSINAMENTO
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
'Coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
De Bagagem (1976)
Armando Barrios, Mulheres
UM SILÊNCIO
Ela descalçou os chinelos
e os arrumou juntinhos
antes de pôr a cabeça nos trilhos
em cima do pontilhão,
debaixo do qual passava um veio d'água
que as lavadeiras amavam.
O barulho do baque com o barulho do trem.
Foi só quando a água principiou a tingir
a roupa branca que dona Dica enxaguava
que ela deu o alarme
da coisa horrível caída perto de si.
Eu cheguei mais tarde e assim vi para sempre:
a cabeleira preta,
um rosto delicado,
do pescoço a água nascendo ainda alaranjada,
os olhos belamente fechados.
O cantor das multidões cantava no rádio:
"Aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim".
Armando Barrios, Ressonância do Azul (1979)
CORRIDINHO
O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.
De O Coração Disparado (1978)
Armando Barrios, Maternal (1979)
OS TIRANOS
Joaquim meu tio foi imperturbável ditador.
Só uma de minhas primas se atreveu a casar-se.
As outras ficaram pra lhe honrar a memória
com azedumes e pequenos delírios.
Produzem croché e hilaridade contando-se anedotas,
virtude e paciência que desperdiçam
por equivocado orgulho, irado catolicismo.
Em bordados e haveres gastam a amargura recíproca:
o galinheiro é de Alvina,
o canteiro é de Rosa,
o guaraná é de Marta
na geladeira de Aurora.
Não pisaram na Igreja no casamento da irmã.
Tia Zilá dá sinais de cansaço,
breve estará na Glória.
Não tendo a quem mais servir,
as primas vão brigar empunhando
rosários, agulhas, maçanetas.
Mas se baterem à porta, servirão biscoitos
e a anedota do rato equilibrista, que solicito sempre:
'Um dia papai estava dormindo no quartinho da sala,
acordou com um barulhinho tin-tin, tin-tin-tão...'
Me comovem as primas, os tios emoldurados na parede,
os ratos na batalha campal daquela casa
caçando pra roer os restos
do que, apesar de tudo, foi amor.
De Terra de Santa Cruz (1981)
Armando Barrios, Retrato de Reyna Rivas de Barrios (1964)
NEUROLINGUÍSTICA
Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.
De Oráculos de Maio (1999)
Armando Barrios, Tambores (1946)
A PACIÊNCIA E SEUS LIMITES
Dá a entender que me ama,
mas não se declara.
Fica mastigando grama,
rodando no dedo sua penca de chaves,
como qualquer bobo.
Não me engana a desculpa amarela:
'Quero discutir minha lírica com você.'
Que enfado! Desembucha, homem,
tenho outro pretendente
e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio
que esse seu verso doente.
De Miserere (2013)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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Adélia Prado • "Todos os poemas, exceto "A Paciência e Seus
Limites" In
Poesia Reunida Siciliano, São Paulo, 2001
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"A Paciência e Seus Limites" In Miserere
Record, Rio de Janeiro, 2013 _____________
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Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), in O Guardador de Rebanhos (XLIII) _____________ * Imagens: quadros de
Armando Barrios (1920-1999), pintor venezuelano
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