«De repente a mentira / põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.» (Francisco
Carvalho) *
Carlos Drummond de Andrade
Amigas e amigos,
Hoje, 31 de outubro, é a data que o Brasil literário passou a chamar Dia D — o Dia Drummond, em referência ao aniversário de
nascimento de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), nosso poeta mais respeitado.
Observem que, de propósito, evitei escrever nosso “maior poeta”, porque ele próprio recusava essa ideia.
Para homenagear
Drummond, recorro a uma crônica que escrevi no Dia D, dois anos atrás. Nela discuto, de um ponto de vista muito pessoal,
um verso (apenas um) do poema “José” — uma das páginas mais populares do poeta.
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Drummond, José e a síndrome do migrante
“Minas não há mais”, sentenciou Carlos Drummond de Andrade em diálogo (ou solilóquio?)
com seu brasileiríssimo e universal José, num poema publicado em 1942.
Naturalmente, o tímido e arredio Drummond — que hoje, 31/10/2018, estaria completando 116
anos — tratou depois de desfazer esse suposto cancelamento das Minas Gerais dos mapas
geográficos e existenciais.
Em carta de 1982 ao amigo belo-horizontino Francisco Iglésias (1923-1999), Drummond esclarece:
“Minas há e — acrescento — haverá sempre, se soubermos preservar certas marcas imunes à
industrialização e ao cosmopolitismo, e conviventes com eles. A gente carrega Minas no
sangue, por onde quer que vá…”
O poeta diz mais: o poema “José”, que decreta a peremptória extinção do solo mineiro,
fora escrito em momento de crise existencial. E finaliza: “Mas o próprio ‘José’, no final,
procura libertar-se do desespero, marchando não sabe para onde — para Minas reencontrada
no íntimo — é a explicação que me dou. Não sei se é boa. É a que eu encontro, tantos anos
depois desses versos amargos.”
Claro que a explicação de Carlos-José é boa. Como ensina o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz,
“não há poema em si, mas em mim ou em ti”. Ou, em outras palavras, a explicação do poema está
não exatamente no texto mas no leitor. Então, com base em Paz, peço reverente vênia ao
aniversariante e apresento aqui minha leitura pessoal da sentença joseana.
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Para mim, de fato, Minas não há mais. E Minas, aqui, não quer dizer as Minas Gerais de Drummond,
Guimarães Rosa, Henriqueta Lisboa, Donizete Galvão. Minas é o chão natal, qualquer um. Baseio-me
na psicologia do migrante. Baiano do Recôncavo — onde a Bahia é mais baiana, diria Caetano —, saí
de lá há mais de quatro décadas. Obviamente, como avisa Caymmi, “a Bahia tá viva, ainda lá”, e lá
tenho parentes, amigos e memórias.
Contudo, o chão onde se brota, uma vez abandonado, não permite retorno. É a sina do migrante.
Quem um dia saiu de casa sabe do que estou falando. Claro que pode haver o retorno físico. Mas
não existe readmissão natural para os exilados. Não há como, depois de cortado o cordão umbilical,
reaconchegar-se no útero materno.
A síndrome do migrante foi bem retratada num filme italiano que me marcou muito,
Três irmãos (1980), de Francesco Rosi, o mesmo diretor de Crônica de uma morte anunciada
(1987). O filme mostra que toda a nostalgia e toda a mitologia do torrão natal residem em coordenadas
ideais de espaço-tempo-memória. Nenhuma equação de Einstein consegue trazer para o chão esse lugar
multidimensional e fazê-lo coincidir com o áspero asfalto de nosso dia a dia, mesmo que o asfalto
esteja plantado no endereço natal.
Para quem nunca se afastou, esse endereço funciona como uma espécie de conforto, o pacato exercício
de pisar em terreno conhecido. É como residir na mesma casa durante muitos anos. De olhos fechados,
o corpo já sabe quantos passos são necessários para ir da sala ao corredor e daí derivar para o
quarto ou a porta da rua.
Mas tudo é diferente para quem migra. Não é à toa que o sábio nordestino da canção “Último
pau de arara” decide resistir estoicamente à seca e só deixar seu Cariri quando não houver mais jeito.
Ele certamente adivinha como será a vida depois.
É por isso que, para mim, sem nenhum descolamento afetivo, Bahia não há mais. Mas pior do que isso
é perceber que aquele ponto do espaço-tempo-memória não está mais onde um dia esteve, nem se encontra
em nenhum outro lugar. Quem migra para a China não passa a ser chinês: continua sendo o que era antes,
mas não só.
Nesse desencontro, de volta a Drummond e à explicação dele, a única saída disponível é
aquela encontrada por José: seguir em frente, marchar, mesmo sem saber para onde.
Eu já havia concluído este boletim quando descobri o último vídeo ao lado: uma leitura do poema “A Flor e a Náusea”
(Drummond, A Rosa do Povo, 1945) seguida do “Samba da Utopia”, canção de Jonathan Silva, que eu não conhecia.
Achei uma combinação perfeita para os dias atuais: “Se a gente desanimar / eu vou colher no pomar / a palavra teimosia”.
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José e a síndrome do migrante
• Carlos Drummond de Andrade
Pablo Picasso, pintor espanhol, Retrato de mulher com chapéu (1938)
• “José”, o poema
Drummond lê seu poema “José”, publicado em 1942
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
• “José”, a canção
“José”, sucesso em 1972 na voz de Paulo Diniz, que musicou o poema
Pablo Picasso, Retrato de Dora Maar (1937)
• “A Flor e a Náusea” + “Samba da Utopia”
“A Flor e a Náusea”, poema de Drummond (de A Rosa do Povo, 1945),
seguido do “Samba da Utopia”, de Jonathan Silva, cantado por Eva Figueiredo e coro
• Carlos Drummond de Andrade
“José”
in Poesia Completa
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
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* Francisco Carvalho, "Estudo", in Os Mortos Azuis (1971)
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* Imagens:
obras do pintor e escultor espanhol
Pablo Picasso (1881-1973)