Amigas e amigos,
“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, proclama Caetano Veloso em sua canção “Gente”, gravada originalmente no disco Bicho, de 1977.
Caetano diz e, naturalmente, todos nós concordamos. Porque a fome, afinal, é algo injusto e eticamente inaceitável. Contudo, a realidade no Brasil,
hoje, nega de forma flagrante a declaração do compositor baiano. Basta dar alguns passos na rua para constatar a quantidade
de gente faminta, sem teto, desempregada, desesperada, pedindo um pedaço de pão.
De acordo com o IBGE, 84,9 milhões de brasileiros (41% da população) são hoje vítimas de fome ou de algum grau de insegurança alimentar. Parte disso se
deve à pandemia, mas na verdade já era alto e crescente o número de pessoas lançadas à rua desde pelo menos 2016, portanto bem antes dos estragos do coronavírus.
Aliás, a soma de fome com uma pandemia negada e mal enfrentada produz um espetáculo macabro, dantesco.
Diante desse quadro, resolvi organizar uma edição cujo tema é a fome. Reuni então três poemas de três poetas que escreveram
sobre esse desagradável assunto — coincidentemente, três autores pernambucanos: Manuel Bandeira (1886-1968), Solano Trindade (1908-1974) e
João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
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Manuel Bandeira
“O Bicho”
Datado de 27 de dezembro de 1947, o poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira, saiu originalmente no livro Belo Belo, publicado no ano seguinte.
Nele o poeta expressa seu espanto ao ver na rua um homem esfomeado comendo lixo.
Ao descrever esse espetáculo indecoroso e deprimente, Bandeira mostra a redução do indivíduo humano à condição da animalidade. Na verdade, o bicho
anunciado no início do poema (“Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos”) era um homem degradado à sua mais
rasa condição de ser vivo. “O bicho, meu Deus, era um homem” — espanta-se o poeta.
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Solano Trindade
“Tem Gente com Fome”
“Gente é pra brilhar”, retorno à letra de Caetano Veloso. Infelizmente, há uma frase bem mais afinada à nossa realidade atual. É o verso que serve
como título e refrão ao poema “Tem Gente com Fome”, do escritor e ativista negro Solano Trindade. Publicado pela primeira vez em 1944 no volume
Poemas de uma Vida Simples, o texto dá voz ao trem da Estrada de Ferro Leopoldina, que vai pelo caminho denunciando as precárias condições
de vida dos subúrbios cariocas.
Solano Trindade foi feliz ao associar a marcha do trem de ferro ao refrão “Tem gente com fome”. Nascido em Recife, Solano foi poeta, pintor,
ator, autor teatral e militante do movimento negro e do Partido Comunista. Nos anos 1940, mudou-se para o Rio de Janeiro e logo depois para São Paulo,
onde passou a maior parte da vida. Publicou dois livros de poesia: o citado Poemas de uma Vida Simples (1944) e Cantares ao Meu Povo (1963).
O poema “Tem Gente com Fome” foi musicado por João Ricardo, compositor do grupo Secos & Molhados, e gravado pelo cantor Ney Matogrosso em 1979.
Trinta e cinco anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. Pior é constatar que, deploravelmente,
faz ainda muito mais sentido agora, quando o poema já se aproxima dos 80 anos.
Um detalhe: ao musicar o texto de Solano Trindade, João Ricardo não incluiu uma estrofe. Trata-se daquela que, no texto ao lado, corresponde
à sequência de estações suburbanas: “Vigário Geral/ Lucas/ Cordovil” etc. Acredito que isso não determinou nenhuma perda para a canção.
De todo modo, registro essa sutil diferença entre o poema e a parte dele que se transformou em letra de música.
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João Cabral de Melo Neto
“Morte e Vida Severina”
O último texto desta pequena antologia lírica da fome é um trecho da parte inicial do livro Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.
Selecionei exatamente os versos nos quais o retirante e narrador Severino fala no plural: “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida”.
Mais adiante, esse homem, que abandona sua terra fugindo da seca e da miséria, discorre (com profundo conhecimento) sobre a fome e a “morte severina” —
“que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, /
de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia”.
Morte e Vida Severina é o poema mais conhecido de João Cabral. Publicado em 1955, foi musicado em 1965 pelo jovem compositor Chico Buarque
e encenado em 1966 pelo Teatro da Universidade Católica (TUCA), da PUC de São Paulo, em Nancy, na França. No mesmo ano, o TUCA registrou em disco
o áudio da peça. Depois disso, a obra já foi adaptada para o cinema, para a TV e até para desenho animado (veja ao lado).
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Ao longo do texto acima, fiz referências às canções “Gente”, de Caetano Veloso, e “Tem Gente com Fome”, de João Ricardo e Solano Trindade.
Achei justo, portanto, adicionar ao lado, após os poemas, videoclipes dessas músicas. Como chave de ouro, incluí também o poema “Morte e Vida Severina”,
de João Cabral, apresentado com animações do cartunista pernambucano Miguel Falcão.
Os três poetas
aqui citados são todos personagens do século XX. Bandeira nasceu antes de 1900, mas toda a sua vida adulta desenrolou-se no mesmo
século em que os outros dois nasceram e morreram. Solano Trindade e João Cabral vieram ao mundo nas primeiras décadas dos 1900, e Cabral, o que permaneceu
mais longamente, morreu poucos meses antes do ano 2000. Triste é constatar que a fome, denunciada por eles, ainda assombra o país,
avançando sinistramente pelo século XXI.
Uma vergonha.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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DALILA TELES VERAS,
DOUTORA HONORIS CAUSA
Este boletim já publicou, mais de uma vez, trabalhos da poeta luso-brasileira
Dalila Teles Veras.
Agora, o poesia.net manifesta sua alegria ao receber a notícia de que a escritora será laureada
este mês com o título de Doutora Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do ABC (UFABC). A honraria
lhe é concedida pela sua obra literária e também pelo trabalho cultural desenvolvido no ABC
Paulista, onde mora e labora. Parabéns a Dalila Teles Veras, à UFABC e ao povo
dessa região paulista. A solenidade será no dia 21/09, às 16h00, transmitida
ao vivo nas redes sociais da universidade.
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