Número 47

São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003 

«Morei na barriga de Deus.» (Antonio Brasileiro)
 


Murilo Mendes, por Guignard


Caros,

Um dos principais nomes da segunda geração modernista, Murilo Mendes (1901-1975) nasceu em Juiz de Fora, MG, e ainda jovem transferiu-se para o Rio de Janeiro. Seu primeiro livro, Poemas, é de 1930, o mesmo ano de estréia de outro mineiro da mesma geração, Carlos Drummond de Andrade, com Alguma Poesia.

No início, a poesia de Murilo Mendes enquadra-se perfeitamente no projeto modernista: o poema-piada, a busca de uma linguagem  coloquial, revisitações poéticas da História do Brasil. Em 1934, após a morte do pintor Ismael Nery, seu amigo, o poeta converteu-se ao catolicismo. Isso refletiu-se em sua poesia, que passou a assumir uma dimensão transcendente, combinada com influências surrealistas.

Nessa vertente, em parceria com o poeta Jorge de Lima, Murilo publica o livro Tempo e Eternidade, de 1935. Os traços religiosos desaparecem nas obras subseqüentes. A profunda destruição da Segunda Guerra Mundial e o período de tensão da guerra fria marcaram profundamente a poesia muriliana. Num poema a João Cabral de Melo Neto, assim como em várias outras ocasiões, o poeta se define como defensor da paz: "Comigo e contigo a antibomba/ A flor azulbranca da paz."

Experimentador da linguagem, Murilo tornou-se um mestre na criação de neologismos e da utilização do espaço em branco da página. Ficaram famosos seus poemas curtos que ele batizou de "murilogramas". Nesses versos, o juiz-forano homenageia autores de sua predileção, entre os quais Baudelaire, Camões, Pessoa, Bandeira e Drummond. Aliás, os dois versos citados no parágrafo anterior pertencem a um texto chamado "Murilograma a João Cabral de Melo Neto".

O poema ao lado, "Jandira", foi extraído do volume O Visionário, de 1941. Observem como o autor combina linguagem prosaica e coloquial com deliciosos achados de nonsense surrealista.

Murilo Mendes viveu seus últimos 18 anos na Itália. Aqui e lá, continuou escrevendo. Deixou 16 livros de poemas, sem contar antologias, reuniões da poesia completa, inéditos e obras em prosa.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

Por causa de Jandira

Murilo Mendes

 




Degas, Mulher Penteando o Cabelo (c. 1888-90)



JANDIRA


O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
                                               [ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
                                              [ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
                                              [ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
                                             [ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
                                            [ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
                                            [ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
                                           [ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
                                          [ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
                                          [ que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o
                                  [ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
                                        [ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,   
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
                                       [ transparente.
 

poesia.net
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Carlos Machado, 2003

•  Murilo Mendes
    O Menino Experimental: Antologia
   
Org. Affonso Romano de Sant'Anna   
   
Summus Editorial, São Paulo, 1979