Sophia de Mello Breyner Andresen
Caros amigos,
De origem dinamarquesa e aristocrática, a portuguesa Sophia de Mello Breyner
Andresen nasceu na cidade do Porto em 1919 e faleceu este ano em Lisboa. Poeta e
contista, destacou-se como uma das vozes mais representativas da literatura
portuguesa no século XX.
Admiradora do Brasil, a poeta foi amiga de Manuel Bandeira e também de João
Cabral. Este chega a citá-la no poema "Auto do Frade". Sophia estreou em 1944,
com o livro Poesia. Desde o início, combinou simplicidade e rigor
para falar sobre a vida, a terra e o mar. Principalmente o mar, o que a inscreve
na velha e boa tradição da lírica portuguesa.
Para este boletim, pincei três poemas de Sophia sobre o
Brasil. Um, "Manuel Bandeira", relata sua admiração pelo autor de "Vou-me Embora
pra Pasárgada". O outro fala do descobrimento do Brasil. O terceiro, "Poema de
Helena Lanari", é um texto sobre o modo brasileiro de falar. Esses três poemas
fazem parte de uma série chamada "Brasil ou do Outro Lado do Mar", incluída no
livro Geografia, publicado originalmente em 1967.
Recolhi, ainda, mais dois poemas que dão uma pequena amostra do trabalho de
Sophia de Mello Breyner Andresen. Toda a obra poética da autora — que, ao que eu
saiba, não foi lançada no Brasil — foi reunida em reedições do
Editorial Caminho.
Como informação biográfica, vale registrar ainda que Sophia engajou-se desde
cedo na luta antifascista. Depois da Revolução dos Cravos, em 1974, chegou a ser
deputada à Assembléia Constituinte, pelo Partido Socialista.
Um abraço,
Carlos Machado
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JANDIRA
Está saindo do forno o primeiro número da revista de literatura Jandira,
dirigida pelo poeta Ricardo Rizzo, de Juiz de Fora-MG. O lançamento em São Paulo será nesta
quinta-feira, 30 de setembro, às 20 horas. Local: bar Esquina Grill - Rua Martim
Francisco, 244, próximo à Estação Santa Cecília do Metrô.
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Do outro lado do mar
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Sophia de Mello Breyner Andresen |
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MANUEL BANDEIRA
Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
Relembrando
O antigo jovem tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
«As três mulheres do sabonete Araxá»
E minha avó se espantava
Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do «Trem de ferro»
e o «Poema do beco»
Tempo antigo, lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos
[ da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava.
Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos de minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu
[ ombro
E foram parte do tempo respirado.
De Geografia (1967)
DESCOBRIMENTO
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios
O mar tornou-se de repente muito novo e muito
[ antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados
De Geografia (1967)
POEMA DE HELENA LANARI
Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia o "coqueiro"
O coqueiro ficava muito mais vegetal
De Geografia (1967)
LIBERDADE
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
De Mar Novo (1958)
O POEMA
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
De Livro Sexto (1962)
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