Maria Esther Maciel
Caros amigos,
Alguns escritores conseguem a proeza anfíbia de criar um trabalho fecundo como
teóricos da literatura e também como poetas e ficcionistas. Esse é
exatamente o caso da mineira Maria Esther Maciel. Poeta, ficcionista, ensaísta e
professora da UFMG, Maria Esther envolveu-se com as
letras desde a adolescência em Patos de Minas, sua cidade natal.
Seu primeiro livro de poesia, Dos Haveres do Corpo, saiu em 1984. O
segundo, Triz, foi publicado em 1998. Além deles, Maria Esther publicou
ensaios, resultantes de pesquisas aqui e no exterior. Entre seus trabalhos estão
As Vertigens da Lucidez: Poesia e Crítica em Octavio Paz (1995); A
Dupla Chama: Amor e Erotismo em Octavio Paz (1998); e Vôo Transverso:
Poesia, Modernidade e Fim do Século XX (1999).
Ultimamente, Maria Esther
tem-se dedicado a pesquisar as relações entre literatura e cinema. Este ano,
2004, ela estreou na ficção com
O Livro de Zenóbia, um romance marcado pela prosa
poética. Afora os trabalhos reunidos em livro, a autora tem ensaios e poemas
publicados em revistas e jornais daqui e do exterior.
Sobre seus livros de poesia, Maria Esther diz que Dos Haveres do Corpo "tem
feição mais lírica, tendendo, em vários momentos, para o elegíaco". Considera-o
também mais espontâneo e intuitivo que o volume seguinte, Triz. Este,
segundo ela, foi escrito depois de um contato com o concretismo, a poesia
construtivista de João Cabral e as teorias poéticas modernas. No entanto, ela
não considera Triz um livro cerebral, e revela que sua poesia caminha
agora para algo cada vez mais "livre de coerções teóricas e racionais"
(informações extraídas de entrevista da autora a Luiz Alberto Machado para o
site
Guia de Poesia).
Para este boletim, fiz uma seleção de poemas dos dois livros de Maria Esther
Maciel. "Manuseio" é uma pequena obra-prima. Recupera a força e a delicadeza do
contato epidérmico, a exploração sensual da geografia do corpo.
Um aspecto notável na poesia de Maria Esther é que, mesmo sendo uma escritora
com sólida formação acadêmica, seus versos não têm o vezo dos "textos de
teórico". Ao contrário: são construções precisas, apuradas, sem nada de um certo
hermetismo hoje muito usado para fingir profundidade.
É óbvio que um poema como "Ofício" tem raízes em reflexões teóricas sobre as
relações entre significante e significado. Mas o que passa para o leitor é o
encantamento da palavra, a eterna briga do poeta inventando e polindo os ossos
de seu ofício.
Em "Elegia", a poeta esculpe, com rigor e delicadeza, o sentimento da ausência
do ser amado. O tom melancólico deságua em música: "sintonia de cristais/
sílabas de sim no/ silêncio do som e do aqui".
Ao discutir (por e-mail) com meu amigo Valdomiro Santana sobre a poesia de Maria
Esther, ele fez as seguintes observações, que faço questão de
transcrever:
"Duas coisas me chamaram a atenção: a técnica do metro curto e o modo como se dá
(ou esplende) a emoção lírica: no corpo do poema vão se velando e desvelando
vocábulos. Uma espécie de prospecção, jogo rico porque tateante, discreto. Os
sentimentos parecem estar, aí, na penumbra — mas, quando menos se espera, eles
resplandecem e nos prendem como se fossem um anzol envenenado. Isso me parece
uma poética mineira, uma característica do modo de fazer poesia dos mineiros:
sutileza, jogo psicológico do claro-escuro, negaceio, revelação e ocultamento...
"
Dizer mais o quê, depois desse anzol envenenado de emoção? Para ler mais sobre o trabalho de
Maria Esther Maciel, visite o site dela:
www.letras.ufmg.br/esthermaciel
Um abraço,
Carlos Machado
•
•
• |
Sintonia de cristais
|
Maria Esther Maciel |
|
Andrew Atroshenko, russo, Ardor
AULA DE DESENHO
Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.
MANUSEIO
Tépidas
essas mãos
que divagam
devagar
por meus relevos
óbvios
e demoram
fundo
no obscuro
ponto
onde o corpo
se abisma
e silencia,
absurdo.
Andrew Atroshenko, Chenoa
ONDE O POEMA
Entre o nervo e o osso
Entre o eco e o oco
Entre o mais e o pouco
Entre a sombra e o corpo
Entre a voz e o sopro
Entre o mesmo e o outro
ELEGIA
Há um vestígio mineral
na sua ausência: algo
que sem estar ainda
fica: fatia de cristal
que não se vê e brilha:
solidez em transparência
elegância de pedra, luz
do que é perda e não.
Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:
sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui.
Andrew Atroshenko, Cisne Negro
PACTO
Daquele que amo
quero o nome, a fome
e a memória. Quero
o agora. O dentro e o fora,
o passado e o futuro.
Quero tudo: o que falta
e o que sobra
o óbvio e o absurdo.
OFÍCIO
Escrever
a água
da palavra mar
o vôo
da palavra ave
o rio
da palavra margem
o olho
da palavra imagem
o oco
da palavra nada.
PAISAGEM COM FRUTAS
Duas pêras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.
Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra
Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul
ocultas
teu absurdo.
Andrew Atroshenko, Lydia
AMOR
Na véspera de ti
eu era pouca
e sem
sintaxe
eu era um quase
uma parte
sem outra
um hiato
de mim.
No agora de ti
aconteço
tecida em ponto
cheio
um texto
com entrelinhas
e recheio:
um preciso corpo
um bastante sim.
De
Triz (1998)
CONCEITO
Teu corpo:
um porto
que eterniza
meus navios
um parto
que traduz
o meu avesso
a parte
que arremata
meu desejo.
De Dos
Haveres do Corpo (1984)
|