Número 97

São Paulo, quarta-feira, 1 de dezembro de 2004 

«A eloqüência? Torce-lhe o pescoço.» (Paul Verlaine)
 


Maria Esther Maciel


Caros amigos,

Alguns escritores conseguem a proeza anfíbia de criar um trabalho fecundo como teóricos da literatura e também como poetas e ficcionistas. Esse é exatamente o caso da mineira Maria Esther Maciel. Poeta, ficcionista, ensaísta e professora da UFMG, Maria Esther envolveu-se com as letras desde a adolescência em Patos de Minas, sua cidade natal.

Seu primeiro livro de poesia, Dos Haveres do Corpo, saiu em 1984. O segundo, Triz, foi publicado em 1998. Além deles, Maria Esther publicou ensaios, resultantes de pesquisas aqui e no exterior. Entre seus trabalhos estão As Vertigens da Lucidez: Poesia e Crítica em Octavio Paz (1995); A Dupla Chama: Amor e Erotismo em Octavio Paz (1998); e Vôo Transverso: Poesia, Modernidade e Fim do Século XX (1999).

Ultimamente, Maria Esther tem-se dedicado a pesquisar as relações entre literatura e cinema. Este ano, 2004, ela estreou na ficção com
O Livro de Zenóbia, um romance marcado pela prosa poética. Afora os trabalhos reunidos em livro, a autora tem ensaios e poemas publicados em revistas e jornais daqui e do exterior.

Sobre seus livros de poesia, Maria Esther diz que Dos Haveres do Corpo "tem feição mais lírica, tendendo, em vários momentos, para o elegíaco". Considera-o também mais espontâneo e intuitivo que o volume seguinte, Triz. Este, segundo ela, foi escrito depois de um contato com o concretismo, a poesia construtivista de João Cabral e as teorias poéticas modernas. No entanto, ela não considera Triz um livro cerebral, e revela que sua poesia caminha agora para algo cada vez mais "livre de coerções teóricas e racionais" (informações extraídas de entrevista da autora a Luiz Alberto Machado para o site Guia de Poesia).

Para este boletim, fiz uma seleção de poemas dos dois livros de Maria Esther Maciel. "Manuseio" é uma pequena obra-prima. Recupera a força e a delicadeza do contato epidérmico, a exploração sensual da geografia do corpo.

Um aspecto notável na poesia de Maria Esther é que, mesmo sendo uma escritora com sólida formação acadêmica, seus versos não têm o vezo dos "textos de teórico". Ao contrário: são construções precisas, apuradas, sem nada de um certo hermetismo hoje muito usado para fingir profundidade.

É óbvio que um poema como "Ofício" tem raízes em reflexões teóricas sobre as relações entre significante e significado. Mas o que passa para o leitor é o encantamento da palavra, a eterna briga do poeta inventando e polindo os ossos de seu ofício.

Em "Elegia", a poeta esculpe, com rigor e delicadeza, o sentimento da ausência do ser amado. O tom melancólico deságua em música: "sintonia de cristais/ sílabas de sim no/ silêncio do som e do aqui". 

Ao discutir (por e-mail) com meu amigo Valdomiro Santana sobre a poesia de Maria Esther, ele fez as seguintes observações, que faço questão de transcrever:

"Duas coisas me chamaram a atenção: a técnica do metro curto e o modo como se dá (ou esplende) a emoção lírica: no corpo do poema vão se velando e desvelando vocábulos. Uma espécie de prospecção, jogo rico porque tateante, discreto. Os sentimentos parecem estar, aí, na penumbra — mas, quando menos se espera, eles resplandecem e nos prendem como se fossem um anzol envenenado. Isso me parece uma poética mineira, uma característica do modo de fazer poesia dos mineiros: sutileza, jogo psicológico do claro-escuro, negaceio, revelação e ocultamento... "

Dizer mais o quê, depois desse anzol envenenado de emoção? Para ler mais sobre o trabalho de Maria Esther Maciel, visite o site dela: 
www.letras.ufmg.br/esthermaciel



Um abraço,

Carlos Machado

 

                     • • •

Sintonia de cristais

Maria Esther Maciel

 




Andrew Atroshenko - Ardir
Andrew Atroshenko, russo, Ardor



AULA DE DESENHO

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

 

MANUSEIO

Tépidas
essas mãos
que divagam
devagar
por meus relevos
óbvios
e demoram
fundo
no obscuro
ponto
onde o corpo
se abisma
e silencia,
absurdo.


Andrew Atroshenko - Chenoa
Andrew Atroshenko, Chenoa




ONDE O POEMA

Entre o nervo e o osso
Entre o eco e o oco
Entre o mais e o pouco
Entre a sombra e o corpo
Entre a voz e o sopro
Entre o mesmo e o outro

 

ELEGIA   

Há um vestígio mineral
na sua ausência: algo
que sem estar ainda
fica: fatia de cristal

que não se vê e brilha:
solidez em transparência
elegância de pedra, luz
do que é perda e não.

Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:

sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui.


Andrew Atroshenko - Black Swan
Andrew Atroshenko, Cisne Negro




PACTO

Daquele que amo
quero o nome, a fome
e a memória. Quero
o agora. O dentro e o fora,
o passado e o futuro.
Quero tudo: o que falta
e o que sobra
o óbvio e o absurdo.



OFÍCIO

Escrever
a água
da palavra mar
o vôo
da palavra ave
o rio
da palavra margem
o olho
da palavra imagem
o oco
da palavra nada.

 

PAISAGEM COM FRUTAS

Duas pêras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.

Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra

Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul
ocultas
teu absurdo.


Andrew Atroshenko - Lydia
Andrew Atroshenko, Lydia




AMOR   

Na véspera de ti
eu era pouca
              e sem
sintaxe
eu era um quase
          uma parte
sem outra
             um hiato
de mim.

No agora de ti
             aconteço
tecida em ponto
                cheio
um texto
com entrelinhas
            e recheio:

um preciso corpo
um bastante sim.
 

               De Triz (1998)

 

CONCEITO  

Teu corpo:

um porto
que eterniza
meus navios

um parto
que traduz
o meu avesso

a parte
que arremata
meu desejo.

               De Dos Haveres do Corpo (1984)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Maria Esther Maciel
• "Aula de Desenho"; "Manuseio";
   "Onde o  Poema"; "Elegia"; "Pacto";
   "Ofício"; "Paisagem com Frutas"; "Amor"

   In Triz
  
Orobó Edições, Belo Horizonte, 1998
• "Conceito"
   In Dos Haveres do Corpo
  
Editora Terra, Belo Horizonte, 1984
__________
* Imagens: quadros de Andrew Atroshenko (1965-), pintor russo contemporâneo