Carlos Nejar
Caros amigos,
Com uma obra poética que já se conta em dezenas de títulos — sem contar as
obras de ficção e ensaio — o gaúcho Carlos Nejar (1939-) é certamente um dos
autores mais prolíficos de nossa literatura contemporânea.
Professor e procurador de Justiça, hoje aposentado, ele estreou em 1960 com o
volume Sélesis. De lá para cá, vem mantendo produção regular.
Seus poemas já foram reunidos mais de uma vez. Na oportunidade mais recente, em
2002, saíram em dois volumes que somam quase 1000 páginas: A Idade da
Noite (Poesia I) e A Idade da Aurora (Poesia II). Juntos, somam quase
1000 páginas contendo 22 livros.
Detentor de numerosos prêmios e membro da Academia Brasileira de Letras, Nejar
constrói uma poesia substantiva, forte, na qual o ser humano está sempre se
defrontando com suas devastações. O tom é, muitas vezes, épico: "Há uma
devastação/ nas plantas e nos seres; / o homem recurvado / com a pálpebra nos
joelhos./ As lavas soprarão, / enquanto nos vivermos."
Diante dessa condenação ao fogo e ao litígio, o poeta insiste em que "é preciso
esperar contra a esperança", reforçando o jogo permanente entre a euforia do
sonho e o desânimo. Contra a esperança. Com esperança.
Um traço que marca os livros de Carlos Nejar é sua estrutura elaborada em torno
de temas. Quase todos eles são na verdades grandes poemas divididos em partes
que se encaixam num eixo comum.
Os poemas apresentados aqui estão todos nos dois volumes da obra reunida. Para
mais detalhes sobre o trabalho de Carlos Nejar, visite seu site oficial:
www.nejar.cjb.net.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Devastações e esperanças
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Carlos Nejar |
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POEMA DA DEVASTAÇÃO
Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.
Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.
Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.
De Canga (1971)
CONTRA A ESPERANÇA
É preciso esperar contra a
esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.
É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.
O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.
É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.
E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.
Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.
O CAMPEADOR E O VENTO
(abertura)
Vem o vento,
vai silvando.
O vento é quando?
É depois de ter amado.
Vento cervo,
puro vento,
se mistura
com os cedros,
ultrapassa o mirante,
se mistura
a outro tempo.
Vento quando?
É depois de ter lutado.
De O Campeador e o Vento (1966)
O GANHO
Dos deuses não espero soldo, nem reses.
De ganho, só meus proventos:
de ganho, o que esbanjo ao vento.
De ganho o que cava a pá.
De ganho o que faz a paz.
De ganho o que a morte dá,
dia dia, ano e ano.
Neles não ponho linhas ou malhas,
como a peixes.
Ponho luz e ponho tento;
nenhum lucro lanço em dados.
Qual a réstia que os distingue?
Qual a torre? Qual o sino?
Vestem blusas, vestem nuvens?
São humanos ou divinos?
De que tempo o seu declive? De que sarro?
Dos deuses não espero soldo, nem reses.
Só lhes ganho o não rendido,
o obscuro, o solo virgem,
onde parte deles vive
e outra parte se redime.
De Danações (1969)
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