Número 140 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 2005 

«Quem faz um poema abre uma janela.» (Mario Quintana)
 


Vladímir Maiakóvski


Caros,


Filho de um guarda-florestal, o poeta Vladímir Maiakóvski nasceu na Geórgia em 1893. Depois da morte do pai, em 1906, a família ele, a mãe e duas irmãs mais velhas mudou-se para Moscou. Lá, estudante, desenvolveu interesse pela literatura marxista e passou a tomar parte em atividades do Partido Social-Democrático Operário Russo, ao qual depois se filiou.

Maiakóvski foi preso três vezes sob a acusação de atividades subversivas. Mas, por ser menor de idade, livrou-se da pena de deportação. Em 1911, entrou na Escola de Belas Artes, onde, com outros artistas, deu início ao chamado movimento cubo-futurista russo. Em 1914, por causa de suas atividades políticas, Maiakovski foi expulso da Escola de Belas Artes.

Após a Revolução Socialista, em 1917, o grupo futurista aderiu ao novo regime. Maiakóvski dedicou-se à propaganda pela consolidação do novo Estado. Escrevia e desenhava cartazes de campanhas sanitárias, publicidade de produtos etc. Em 1923, ele fundou a revista LEF, que pretendia reunir "a esquerda das artes". Ou seja, artistas de esquerda que desejavam ser revolucionários também no plano artístico. Mas, ao longo dos anos 1920, a inquietação do poeta começou a incomodar a crescente burocracia do novo regime.

Em seu poema "Conversa sobre Poesia com o Fiscal de Rendas", de 1926, ele desfere uma afiada crítica aos burocratas que pretendiam reduzir a poesia a fórmulas simplistas. "Tudo / o que quero / é um palmo de terra / ao lado / dos mais pobres / camponeses e obreiros. / Porém / se vocês pensam / que se trata apenas / de copiar / palavras a esmo, / eis aqui, / camaradas / minha pena, / podem / escrever / vocês mesmos!" (tradução de Augusto de Campos). O mesmo tipo de crítica é desenvolvido em outro poema seu, muito conhecido, "Incompreensível para as Massas". Envolvido em desilusões políticas e desapontamentos pessoais, Vladímir Maiakovski matou-se com um tiro em abril de 1930.

Poeta original, criador de imagens desconcertantes e grandiosas, ele tornou-se um dos grandes nomes da poesia no século XX. Um escritor que dominava tanto os temas sociais como a difícil poesia amorosa. Na pequena amostra de poemas apresentada ao lado, há um pouco dessas duas facetas.

Em "A Plenos Pulmões", escrito em seus últimos meses de vida, Maiakóvski faz um balanço de sua atividade política e poética e, mais uma vez, investe contra os burocratas e "os vates velhacos e falsários". Os poemas "Lílitchka!" e "A Flauta-Vértebra" foram escritos para Lília Brik, a grande amada do poeta. Casada, Lília viveu um triângulo amoroso com o marido e Maiakóvski. Observem que, em "Lílitchka!", de 1916, o poeta já falava em "apertar na têmpora o gatilho".

Todos os poemas transcritos ao lado, assim como o trecho citado acima, foram extraídos do livro Maiakóvski: Poemas (1982), que contém traduções e ensaios assinados por Boris Schnaiderman e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. O único poema não constante desse livro é o primeiro, "Blusa Fátua".

No artigo "Maiakóvski: 50 Anos Depois", incluído no volume citado, Augusto de Campos  tenta fazer um balanço da poesia do autor de "A Plenos Pulmões". Diz ele: "Parece-me evidente, hoje, que a parte que mais envelheceu são os versos políticos de tom apologético."  E continua, mais adiante: "O que salvou a poesia de Maiakóvski do aniquilamento pelo discurso político foi a rebeldia selvagem de seu talento. Para o amor e para o humor."

Aparentemente, não há o que discutir nessa avaliação de Augusto de Campos. O que mantém viva a poesia de Maiakóvski é justamente o seu lado não-oficial, inconformista. E ele devia perceber isso. Tanto que escreveu: "Sou poeta. É justamente por isto que sou interessante".

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado





 

Talento rebelde

Vladímir Maiakóvski

 

 


Nikolai Kasatkin, russo, Pobres Coletando Carvão em Mina Abandonada (1890)



BLUSA FÁTUA

Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.

Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"

Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!

Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!

                    (Tradução: Augusto de Campos)





Nikolai Kasatkin, Esposa de Mineiro (1894)


 

LÍLITCHKA!
Em lugar de uma carta

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto —
um capítulo do inferno de Krutchônikh.
(1)
Recorda —
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração — aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua .
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor, meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
— duro fardo por certo —
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos — rodopiante carnaval —
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

1916

                    (Tradução: Augusto de Campos)

(1) Alusão ao poema "Um jogo no inferno",
de A. Krutchônikh e V. Khliébnikov.




Nikolai Kasatkin, Moça com Cesto



A FLAUTA-VÉRTEBRA

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e
                                         [ celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

1915

                (Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)





Nikolai Kasatkin, Trabalhador Acidentado




A PLENOS PULMÕES

                               (Trecho final)

Camarada vida,
                        vamos,
                                   para diante,
galopemos
                pelo quinqüênio afora.
Os versos
              para mim
                             não deram rublos,
nem mobílias
                    de madeiras caras.
Uma camisa
                  lavada e clara,
e basta, —
                 para mim é tudo.
Ao
    Comitê Central
                           do futuro
                                          ofuscante,
sobre a malta
                     dos vates
                                    velhacos e falsários
apresento
               em lugar
                             do registro partidário
todos         
         os cem tomos
                              dos meus livros militantes.

Dezembro, 1929 / janeiro, 1930

                    (Tradução: Haroldo de Campos)


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

•  Maiakóvski
    Poemas
    Tradução e ensaios de Boris Schnaiderman,
    Augusto e Haroldo de Campos
    Ed. Perspectiva, São Paulo, 1982
__________

•  Todas as imagens são pinturas de Nikolai Kasatkin (1859-1930), um dos poucos pintores da era czarista que aderiram às propostas da geração revolucionária e mais nova, à qual pertenceu Maiakóvski. Os quadros mostrados aqui são todos anteriores à Revolução de 1917.