Número 153 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 1 de março de 2006

«Nada fica de nada.» (Ricardo Reis)  •  «De tudo fica um pouco.» (Carlos Drummond de Andrade)
 


Stéphane Mallarmé


Caros amigos,

Nascido em Paris em 1842, o poeta simbolista Stéphane Mallarmé (nome literário de Étienne Mallarmé), foi professor de inglês durante cerca de 30 anos. Seus primeiros poemas apareceram na década de 1860. O livro Hérodiade (Herodíades) é de 1869. Em seguida, vem L'Après-Midi d'un Faune (A Tarde de um Fauno), de 1876, obra que inspirou o prelúdio homônimo do compositor Claude Debussy (1894) e foi ilustrada pelo pintor Édouard Manet.

Mallarmé, como boa parte dos poetas de sua época, começou a escrever sob a inescapável influência de Charles Baudelaire. Consta que ele compôs seu poema "Brisa Marinha" ("A carne é triste, sim, e eu li todos os livros") depois de ler os versos devastadores de As Flores do Mal.

Durante os anos 1880, Mallarmé foi a figura central de um grupo de
escritores, entre os quais o poeta Paul Valéry e os romancistas André Gide e Marcel Proust, com quem discutia sobre poesia e arte. O poeta escreveu vários outros livros e morreu em 1898. Embora L'Après-Midi d'un Faune seja sua obra mais conhecida, o poema experimental Un Coup de Dés (Um Lance de Dados), escrito em 1897 mas só publicado postumamente, em 1914, é a obra de Mallarmé que causou mais barulho.

A permanência da obra mallarmeana é ponderável. Críticos apontam sua
influência no trabalho de vários poetas importantes do século XX. Ela está, por exemplo, na poesia de Wallace Stevens (1879-1955), nos Quatro Quartetos de T.S. Eliot (1888-1965) e na prosa do Finnegans Wake, de James Joyce (1882-1941). A experimentação tipográfica de Um Lance de Dados estruturada em torno do moto "Um lance de dados jamais abolirá o acaso" também exerceu forte influência sobre a poesia de vanguarda do século XX.

No Brasil, os mais destacados discípulos do experimentalismo mallarmeano são os poetas concretos, que utilizaram muito das concepções do autor francês na
elaboração de seus poemas e teorias literárias. Não por acaso, os textos ao lado foram extraídos do volume Mallarmé, que reúne ensaios e traduções de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, o trio fundador da poesia concreta.

Alquimista das palavras, Mallarmé defendia teorias poéticas que iam na contramão do que era consagrado em sua época. Não se faz um poema com idéias, mas com palavras, dizia ele. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser visto como um objeto em si mesmo. Ele também dizia que "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma idéia que ele fecha o seu poema experimental: "Todo Pensamento emite um Lance de Dados".

Um abraço,

Carlos Machado

 

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UN COUP DE DÉS,
ONE TOSS OF THE DICE

Se você não conhece o poema "Um Lance de Dados", clique aqui para vê-lo no original. Ou aqui, para ler uma versão do texto em inglês.

Um lance de dados

Stéphane Mallarmé

 


BRISA MARINHA

                             Tradução:  Augusto de Campos

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus
                                              [ imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração  de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas
                                              [ plagas!

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem
                                              [ mas-
Tros, sem mastros, nem ilhas férteis a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do
                                              [ mar!
 

BRISE MARINE

La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les
                                             [ livres.
Fuir! là-bas fuir ! Je sens que des oiseaux sont
                                             [ ivres
D´être parmi l´écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retriendra ce coeur qui dans la mer se
                                             [ trempe
O nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l´ancre pour une exotique nature!

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l´adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu´un vent penche sur les
                                            [ naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des
                                            [ matelots!





Retrato de Mallarmé, por Édouard Manet, 1876


BRINDE

                             Tradução:  Augusto de Campos

Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.

 

SALUT

Rien, cette écume, vierge vers
À ne désigner que la coupe;
Telle loin se noie une troupe
De sirènes mainte à l'envers.

Nous naviguons, ô mes divers
Amis, moi déjà sur la poupe
Vous l'avant fastueux qui coupe
Le flot de foudres et d'hivers;

Une ivresse belle m'engage
Sans craindre même son tangage
De porter debout ce salut

Solitude, récif, étoile
À n'importe ce qui valut
Le blanc souci de notre toile.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

In Augusto de Campos, Décio Pignatari e
Haroldo de Campos
Mallarmé
Editora Perspectiva, 2a. ed., São Paulo, 1974