Gilberto Nable
Caros amigos,
Médico, poeta e contista, Gilberto Tadeu Nable nasceu em Aiuruoca, cidade do sul
de Minas, em 1954. Estreou em livro com o volume Elegias Urbanas e Outros
Poemas, de 1988. É também autor de um livro de contos, Menino Abstrato,
publicado em 1995. Os textos mostrados neste boletim vêm do livro Percurso da
Ausência, trazido a público este ano.
Como escreve o poeta Donizete Galvão, a poesia de Gilberto Nable é "intensamente
lírica, pessoal e enraizada em Aiuruoca e na memória da infância retratada como
um paraíso perdido." De fato, é isso que se observa na coletânea Percurso da
Ausência. Após a leitura, nota-se que há uma ausência da mãe do poeta, mas
várias outras se admitem, inclusive a da infância.
Gilberto Nable escreve uma poesia que sabe sussurrar e, no mesmo instrumento,
passa do tom elegíaco para modulações quase épicas. Leia-se, por exemplo, o
seguinte trecho do poema V de "Percurso da Ausência", série homônima do livro:
"Chove lá fora sobre as serranias de Aiuruoca. (...)
Chove uma chuva miúda e triste. /
Chove, afinal, sobre os telhados do mundo. / Chove nos escombros do World Trade
Center, / no Marco Zero da Grande América divinizada. / Chove sobre as mulheres
iraquianas orando e balindo".
Aí o poeta combina recordações de infância com as dolorosas notícias do mundo
atual. Mistura-se o canto triste, no diapasão pessoal, com os descaminhos do
mundo observados pelo noticiário. É ainda em tom melancólico que o poeta observa
as pessoas, tanto nas várias elegias urbanas (ao lado, a "Quinta") como em
poemas como "Ornitorrinco". Nesses textos, as pessoas se movem, espremidas, na
exígua "paisagem do elevador" ou junto às mesas do devaneio de um bar qualquer.
Em "Ornitorrinco" ouvem-se distantes ecos drummondianos em versos como
"Consideras teu coração,
nada formidável.
Um grão de areia
grudado no milênio.
Um pingo de cálcio
na concha de um molusco."
Nesse caso, o eu lírico dialoga consigo mesmo e avalia o peso específico de seus
sentimentos diante da realidade avassaladora. Um grão de areia no corpo imenso
do milênio.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
1ª MOSTRA DE LITERATURA
DIADEMA, SP – DE 17/11 a 30/11
Prossegue a 1ª Mostra Internacional de Literatura –
Poesia & Prosa. Esse superevento literário, estende-se até 30 de novembro em
Diadema, com leituras e outras atividades artísticas. A mostra é iniciativa da
Secretaria Municipal de Cultura de Diadema, em parceria com o Grupo Palavreiros.
|
Elegias da memória
|
Gilberto Nable |
|
PERCURSO DA AUSÊNCIA
III
Para Abgar Renault
Vejo-o ali,
frente ao muro escuro,
onde nascem escorpiões
e andorinhas.
Está ali,
descalço na rua luminosa,
sob o céu claro da infância.
Mas não sou eu.
Esse menino é um outro:
conhece trilhas, passarinhos,
e viu montanhas e lírios vermelhos.
(Nos ninhos de pedra,
as andorinhas sonham
com meninos distantes,
e doces libélulas.)
Arquivo cruel é a memória,
e nela estamos presos
como numa armadilha;
a ver por detrás das vidraças,
embaçadas pelo hálito,
as mesmas, eternas andorinhas,
mortas há trinta anos.
V
Para José Roberto Ayres
Chove lá fora sobre as serranias de Aiuruoca.
Chove lá fora sobre o gado em aboio.
Chove lá fora sobre os bambuais e o rio.
Chove lá fora sobre antigos caminhos da minha
[ infância,
com arapucas armadas e rolinhas,
e folhas úmidas nos pés descalços,
e lírios já orvalhados.
Chove sobre os pirilampos no escuro
em verde fosforescência.
Chove sobre o corpo de minha mãe doente,
exposto ao tempo e à febre.
Chove dentro do meu peito.
Chove uma chuva miúda e triste.
Chove, afinal, sobre os telhados do mundo.
Chove nos escombros do World Trade Center,
no Marco Zero da Grande América divinizada.
Chove sobre as mulheres iraquianas orando e
[ balindo.
Chove sobre os campos de refugiados no
[ Afeganistão,
em suas barracas esfarrapadas ventando;
assim como antes chovera nos campos de Sabra
[ e Shatila,
e no Gueto de Varsóvia.
Chove na piazza de São Pedro, deserta,
e sobre os ombros encarquilhados do Papa.
Ouço a chuva caindo sobre minaretes e
[ sinagogas
com seu ruído monótono.
Vejo a chuva molhando o corpo dilacerado de um
menino palestino,
com as mãos agarradas a uma pedra.
Chove nos capacetes metálicos dos soldados de
[ Israel,
nas suas viseiras de aço e miras telescópicas.
Chove ainda hoje sobre mim,
bêbado, sozinho e urinando na chuva,
com um miserável soluço na garganta.
Eu sei que chove hoje e choverá para sempre,
em lento e definitivo dilúvio,
sem intervalo, nem instante,
até que tudo esteja submerso sob as águas,
e na superfície nada,
nada respire sobre as ondas.
VI
Ferrugem nas folhas.
Dedos que não desatam,
passos tíbios na tarde.
Nada mais me transcende.
Sou eu, menos um.
Volto ao mito.
Orfeu entre samambaias.
A pobre lira de mil anos.
Ateu entre samambaias.
Caminho lento na tarde,
que nada me devolve,
senão um velho piano.
Colcheias ao vento.
Dedos dedilham o acaso.
Orfeu entre samambaias.
Em cima do piano — retratos.
Ali passaram crianças brincando,
mas os ratos roeram as teclas.
Entanto, através das janelas,
abertas para os jardins,
a vida abre suas pétalas.
Vendam a casa e os beirais.
O canto onde dormia lírico.
O vento comeu a paisagem.
Subsista apenas o piano,
animal de artrose e pó,
a desmembrar soluços.
QUINTA ELEGIA URBANA
O ascensorista
Singular prisioneiro,
do móvel cubículo,
dos mágicos botões,
do térreo ao terraço,
em números e tédio,
mais esmorece
entre a comprimida,
neurótica fauna
dos edifícios.
O elevador
A paisagem do elevador é pobre:
mudos ângulos,
duras superfícies.
No poço escuro,
com alguns rangidos,
a pesada aranha
tece fios de aço.
A fauna
Cabisbaixas,
as pessoas procuram
os sapatos,
olham para os pés
suspensos no abismo.
Suspensos no vazio
onde alma e medo
se equilibram.
ORNITORRINCO
Para Marco Fabiani
Sobre a mesa — a garrafa.
Em torno da mesa — o bar atônito.
Depois do bar, a rua, o bairro.
Após, as cidades, os desertos,
cordilheiras e desfiladeiros,
oceanos e precipícios,
galáxias e nebulosas,
a vastidão do mundo,
o sem-fim do universo,
com seus pilares enormes,
contrafortes onde o tempo
esbate as imensas ondas.
Depois de depois — Deus?
As Parcas tecendo o fio
de minha vida?
Consideras teu coração,
nada formidável.
Um grão de areia
grudado no milênio.
Um pingo de cálcio
na concha de um molusco.
Consideras tudo isso
e mais alguma coisa.
(Só não consideras o garçom
ao teu lado:
— Mais uma cerveja, doutor?)
De onde surgiu esse ser medievo
e que há séculos não dorme?
E por que me olha espantado
como se visse um ornitorrinco?
Na natureza nada se perde,
nada se cria,
tudo se transforma.
|