Jorge Wanderley
Caros,
Médico, tradutor e poeta, o pernambucano Jorge Wanderley (1938-1999) nasceu no
Recife, onde se formou em medicina, profissão que exerceu durante largo período,
e também em letras. Em 1976, transferiu-se para o Rio de Janeiro e concluiu o
mestrado e o doutorado em letras e lecionou literatura na UERJ até sua morte.
Seu primeiro livro foi Gesta e Outros Poemas,
de 1960. Após treze anos sem publicar, deu a lume a coletânea
Adiamentos (1974). No Rio de Janeiro, lançou Coração à Parte
(1979), poemas escritos após um enfarte, quando o poeta contava 41 anos. Vieram
depois
A Foto Fatal (1986); Anjo Novo (1987); Homenagem: Dez Sonetos
(1992); Manias de Agora (1995); e O Agente Infiltrado (1999).
Jorge Wanderley também desenvolveu uma obra respeitável como tradutor de poesia.
Traduziu, entre outros poetas, Valéry, Dante, Shakespeare, Borges e Lawrence
Durrell. Ainda é encontrável a Antologia da Nova Poesia Norte-Americana,
volume bilíngüe publicado pela Civilização Brasileira em 1992, com tradução e
seleção de Jorge Wanderley.
Os textos ao lado, todos originais do poeta pernambucano, foram extraídos de sua
Antologia Poética, livro organizado pela socióloga e também poeta Márcia
Cavendish Wanderley, sua viúva, e publicado postumamente em 2001.
•o•
Talvez por causa do freqüente contato com os clássicos que
traduziu, Jorge Wanderley é também um poeta de discurso elevado, com uma lírica
marcada por digressões metafísicas. Quem compulsa sua antologia poética percebe
nitidamente que esse traço perpassa todos os seus livros.
O poeta pratica com igual desenvoltura o verso livre — ou, pelo menos, de
métrica irregular — e os poemas de forma fixa. Vale destacar a sonoridade e a
fluência de seus sonetos, dos quais dois são reproduzidos aqui: "Tema da Rosa/
I" e "Corpo Anterior". São deste último estes versos iniciais: "Que faço
aqui, neste meu corpo, amando / Outro corpo, doado — e estranho a mim?".
Decerto, a poética de Jorge Wanderley, não trata exclusivamente de temas
metafísicos. Prova disso está no poema "Algemas Leves", em que ele observa a
realidade prosaica e bem terra-a-terra dos zeladores de prédios: "Os edifícios
têm algemas leves / e de gravata, o zelador, tão calmo, não vê / nem
sente".
Para terminar, vamos ler, a meia voz, o poema "Coda". Devagar, saboreando o
ritmo e o gosto de cada palavra. "Vão resistir alguns subúrbios / das
lembranças, na escuridão". Avancemos: "certo abraço de amor / sem nenhum sexo".
Mais um pouco e chegamos ao final: "palavras soltas; / talvez dor; / e o que é
de barcos e portos, / partir, chegar".
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
ERRATA
No boletim anterior, sobre
Machado de Assis, transcrevi erroneamente uma palavra no soneto "O
Desfecho". No último verso do segundo quarteto, deve-se ler "fita-lhe a águia
em cima os olhos espantados". Em vez de águia
—
ave predadora que, conforme a mitologia, teria devorado as entranhas de Prometeu
—, escrevi água. A
correção já foi feita na página disponível no site.
Agradeço aos leitores que me chamaram a atenção para o equívoco: Cláudio
Fernando Cassas, de São Paulo; o tradutor Ivo Korytowski e o poeta Alexei Bueno,
do Rio de Janeiro. |
Palavras soltas; talvez dor
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Jorge Wanderley |
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À POESIA ESCRITA POR MULHERES
Tua delicadeza feita de garras
serve suaves lianas que envolvem
o corpo, o pensamento e seus sepulcros
num abraço de cisne e de serpente.
Consideras com cuidado a carne: é tenra,
pensas, é tenra, dizes delicada
e acrescentas que tem a soberbia dos deuses
e veste a inocência da lã;
é tenra, dizes, enquanto as mãos
passeias de enfermeira pela pele
e os dentes entremostras, aguçados,
naquilo que entenderei como um sorriso
— desses que são a última lembrança antes do sono,
o primeiro calor após se ajeitarem as cobertas,
a mão deslizada pela testa
antes de me cravares a
dor aguda e luminosa da morte.
De Adiamentos (1974)
ALGEMAS LEVES
Os zeladores têm maneiras médicas
e calvas comportadas como padres.
Seu reino de limpeza é de varsol,
vassoura, espanador e ordens sumárias.
Vão limpos, com suas mãos odontológicas,
atentos em cuidar do alheio
embora alheio já sublocado
a alguém que como sempre, não conhecem.
Por trás dos gestos neutros, voz sem timbre
conduzem edifícios ou navios
— são capitães civis de vida ordeira
e todos nordestinos, comandando as naves.
Nos últimos andares, zeladores.
Escuros subsolos, zeladores.
Os edifícios têm algemas leves
e de gravata, o zelador, tão calmo, não vê
nem sente.
De Coração à Parte (1979)
TEMA DA ROSA / I
Parecia uma rosa madrugando
Aquela rosa ali, naquele dia.
Era quando em redor amanhecia,
Porém sem Lugar-Onde ou Tempo-Quando,
Estava eterna e eterna parecia.
Não se sabia a luz que a estava olhando,
Ou se ela olhava a luz desabrochando,
Nem se era dela que esta luz surgia.
Nada movia em torno, mas da haste
Parecia vibrar, tensa e nervosa,
A onda de um acorde num segundo
Sonhando em rubro e alheio a seu engaste,
Que era a história das rosas numa rosa,
A rosa em si, dentro de si, no mundo.
De Manias de Agora (1995)
"E o que é dos barcos e portos, / partir, chegar" (Jorge Wanderley)
CODA
Vão resistir alguns subúrbios
das lembranças, na escuridão.
Um rosto de arquivo morto
que a nada se relaciona;
certo abraço de amor
sem nenhum sexo;
um gole d'água,
a sede que o iluminava
mais que o sol daquela outra
manhã também casual;
o acorde de uma música
não eleita;
o de outra, amada;
o pátio, na sombra
que o verso viu
e nunca povoou;
palavras soltas;
talvez dor;
e o que é de barcos e portos,
partir, chegar.
POR UM QUADRO DE REINALDO FONSECA,
NA CASA DE JORGE MARTINS FILHO. RECIFE
Existe uma menina que é a morte.
Com o pé no estribo, me olha do triciclo,
diretamente. É como um dardo, o amor
fatal que há no seu olho e na certeza
inadequada e substancial que manda.
Menina em laço, organza e pé no estribo,
olha de lá, mas sabe do meu mundo
e está fora mas dentro, como a pele.
Há uma roda, no quadro; a do triciclo?
Ou triciclo não há, que ando perdido?
Olhando olhado, olhando para mim,
os cabelos cortados bem severos.
Algo que é fosco e tem sabedorias
da luz na discrição. As esquadrias,
que se camuflam no veludo baço.
O traço, que afinado em silenciar.
Um sapato, de arreata e de verniz
a perfeição olhando, olhando em mim,
diz nada tudo e sei que ela é a morte.
Não fosse e não me sorriria assim.
Existe esta menina, que é a morte:
Sei pelo corte, havido em traço reto,
pelo que diz, em seu poder de argolas,
pelo que fui, com ela, ao lado dela.
É bom saber que a morte é uma menina.
CORPO ANTERIOR
Que faço aqui, neste meu corpo, amando
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?
Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.
Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,
São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.
DO TERRAÇO
Se não fosse
na tarde demarcada
da floresta lá longe
a mancha branca
voando bailarina a que afinal
reconheci como um plástico translúcido
desses de supermercado
bem seria
plenamente uma garça
uma gaivota.
De O Agente Infiltrado e Outros Poemas (1999)
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