Número 253 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 2008

«Todos estão / despidos, ninguém está a salvo.» (Marianne Moore) *
 


Edgar Allan Poe


Caros amigos,


Publicado pela primeira vez num jornal em 1845, o poema “O Corvo” (The Raven), do americano Edgar Allan Poe, transformou-se numa das páginas literárias mais conhecidas em todo o mundo. Nele o narrador conta que, certa noite, recebe a visita de um corvo falante, que entra em sua casa e só sabe dizer uma expressão: “Nunca mais”.

Abalado com a morte da amada, o anfitrião, atribui ao visitante origens sobrenaturais e fica terrivelmente impressionado com o refrão da ave agourenta. Assim resumido, o poema não parece ter nenhum interesse. Mas, quando lido com atenção, “O Corvo” mostra por que, desde o século XIX, vem encantando tantas gerações de leitores.

Poema narrativo longo, “O Corvo” compõe-se de dezoito estrofes de seis versos cuja estrutura foge aos padrões habituais. Os cinco primeiros versos são longos e correspondem ao que, em nossa métrica, seriam dois versos de sete sílabas. A última linha mantém o padrão, mas com apenas um setissílabo.

Também muito sofisticada é a organização do ritmo e das rimas, que criam um tecido de sons que se correspondem, seja com palavras diferentes, seja com a reiteração deliberada de uma ou mais palavras. É possível representar a seqüência das rimas e ecos com o seguinte esquema (o número corresponde ao verso):

1.    a a
2.    b
3.    c c
4.    c b
5.    (c) b
6.    b

O (c) entre parênteses indica que a rima ou repetição aparece em alguns casos.

As sutis variações em palavras que quase se repetem nos versos 4 e 5 representam momentos de altíssima elaboração poética. Às vezes, por causa das reiterações, o esquema acima se torna ainda mais intrincado. Isso sem contar as incríveis aliterações (From my books surcease of sorrow – sorrow for the lost Lenore). Observe a sucessão de esses e efes, e o efeito que eles produzem. Mesmo quem não entende o idioma de Poe pode perceber perfeitamente a música desses versos. (Mais adiante, dou o endereço de dois clipes, um de vídeo e o outro de áudio, nos quais é possível apreciar esses detalhes.)

Também não resisto a citar outro trecho em que Poe parece embutir nas frases o barulho feito pelo corvo batendo à porta: But the fact is I was napping, and so gently you came rapping, / And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door.
(Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, / Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais). Napping, rapping, tapping, tapping. E para confirmar o tom opressivo que domina a cena, todas as estrofes terminam com variações da mesma expressão fatídica: nunca mais.



                      • O •

Não tardou muito para que “O Corvo” granjeasse reconhecimento para seu autor, não só nos Estados Unidos mas em toda parte. Na França, o poema foi traduzido por dois dos mais altos nomes da poesia, Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé. Le corbeau dit: “Jamais plus!” Curioso: os dois poetas franceses verteram o corvo em prosa.

Em língua portuguesa, a tarefa de traduzir a ave de Poe coube também a dois dos nomes mais destacados. Primeiro, no Brasil, Machado de Assis. Depois, Fernando Pessoa. Ao lado, além do original em inglês, transcrevo as versões do carioca e do lisboeta. Pessoa esmerou-se em manter toda a estrutura estrófica e rímica do original. Um detalhe interessante: sua versão não faz nenhuma referência ao nome da amada, que é reiterado muitas vezes no original e inclusive faz parte das rimas desesperançadas de Poe: Lenore / nevermore.

Em sua tradução, Machado de Assis introduziu mudanças na estrutura dos versos e das rimas. Em lugar dos versos longos, ele preferiu apresentá-los diretamente como dois setissílabos. Além disso, as rimas perderam a costura intrincada do original e adquiriram um andamento mais paralelístico. Seu esquema, apresentado com a disposição dos versos de Poe, seria:

1.    a a
2.    b b
3.    c c
4.    d e
5.    d
6.    e
 

                      • O •

Nascido em Boston em 1809, Edgar Allan Poe foi um completo homem de letras: poeta, romancista, crítico e editor. Em prosa, ele é considerado um dos pioneiros da literatura fantástica e de ficção científica e também das narrativas policiais. Sua coleção de contos Tales of Grotesque e Arabesque, de 1839, foi traduzida para o francês por Charles Baudelaire, seu admirador, como Histoires Extraordinaires.

Poe morou em várias cidades americanas, onde também exerceu o jornalismo. Sua esposa, Virginia Clemm, com quem se casara em 1836, faleceu em 1846. Após a perda da mulher, o comportamento de Poe, que já era errático, tornou-se mais descontrolado. O escritor passou a abusar do álcool e morreu em 1849, de causas incertas.

Poe foi um poeta romântico. Mas, para alguns especialistas, “O Corvo” tem traços que antecipam a estética simbolista.
 

Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

 

                     • • •



CORVO MULTIMÍDIA

O Corvo de Poe, naturalmente, gerou as mais diferentes interpretações. Confira algumas:

Vídeo do YouTube com o ator americano Vincent Price (1911-1993) interpretando o texto original, "The Raven".


Leitura de "The Raven" do site Classic Poetry Aloud. Clique no alto-falante ou no link acima para visitar a página do site e ouvir o poema em inglês.


 



                     • • •
 



LANÇAMENTOS

Cinco lançamentos programados para os próximos dias. Três em São Paulo, um no Rio e outro em Salvador.

• Jerônimo Teixeira
Antes do Circo

O jornalista e ensaísta gaúcho Jerônimo Teixeira apresenta em sessão de autógrafos seu livro de contos Antes do Circo, publicado pela Editora Record.

Data: 4/8, segunda-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509
Tel. (11) 2167-9900
São Paulo – SP

• Jorge Wanderley
Do Jeito Delas – Vozes Femininas de Língua Inglesa

A Editora 7Letras lança Do Jeito Delas – Vozes Femininas de Língua Inglesa, volume organizado por Márcia Cavendish Wanderley, Carlos Eduardo Fialho e Sueli Cavendish. O livro reúne traduções feitas pelo poeta Jorge Wanderley (1938-1999) para poemas de autoras americanas e inglesas. Traz também ensaios assinados pelos organizadores.

Data: 4/8, segunda-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Livraria DaConde
R. Conde de Bernardote 26, lj 125 Parte – Leblon
Tel. (21) 2274-0359
Rio de Janeiro – RJ


• Antonio Lins
Amores Partidos – Poemas e Canções

O poeta baiano Antonio Lins autografa em Salvador seu livro Amores Partidos – Poemas e Canções. O livro sai pela Navegar Editora, de São Paulo.

Data: 7/8, quinta-feira
Hora: A partir das 18h00
Local: Academia de Letras da Bahia
Av. Joana Angélica, 198 – Nazaré
Salvador – BA



• Lauro Machado Coelho
Anna: A Voz da Rússia

O escritor, musicólogo e tradutor Lauro Machado Coelho dá a público Anna: A Voz da Rússia, uma biografia-antologia da poeta russa Anna Akhmátova. Na ocasião, será apresentado um recital com a atriz Beatriz Segall lendo poemas de Ahkmátova e a soprano Adélia Issa, acompanhado pelo pianista Ricardo Ballestero, interpretando canções de Prokófiev, Shostakóvitch e Gilberto Mendes. Apresentação de Sérgio Casoy.

Data: 12/8, terça-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Teatro São Pedro
Rua Barra Funda, 171 – Barra Funda
São Paulo – SP



• Roniwalter Jatobá
O jovem Fidel Castro

O jornalista e contista Roniwalter Jatobá, que já escreveu sobre Che Guevara e Juscelino Kubitschek, apresenta agora a biografia romanceada O Jovem Fidel Castro.
O livro é publicado pela Editora Nova Alexandria.

Data: 13/8, quarta-feira
Das 19h00 às 22h30
Local: Restaurante Soteropolitano
Rua Fidalga, 340 – Vila Madalena
São Paulo – SP

 

 

Disse o corvo: "Nunca mais"

Edgar Allan Poe

Tradução: Fernando Pessoa e Machado de Assis

 

               




O CORVO

                             Tradução: Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
                 É só isto, e nada mais".

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
                 Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
                 É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
                 Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
                 Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
                 "É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
                 Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
                 Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos já se foram. Amanhã também te vais".
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
                 Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
                 Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
                 Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
                 Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
                 Libertar-se-á... nunca mais!



Casa de Poe em Philadelphia, Pennsylvania.
Casa em Philadelphia, Pennsylvania, onde Poe morou com a família entre 1838-1844. Segundo os historiadores, foi aí que o poeta escreveu "O Corvo".


O CORVO

                             Tradução: Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas tais palavras:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
                 Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
                 E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
                 Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso
Já cochilava, e tão de manso e manso,
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
                 somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
                 Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
Devolvamos a paz ao coração medroso,
                 Obra do vento, e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
                 Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
                 E o corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
                 Que este é seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora."
                 E o corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
                 Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
                 Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
                 E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
                 E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
                 E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
                 E o corvo disse: "Nunca mais."
 
"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
Regressando ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo...
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
                 E o corvo disse: "Nunca mais."

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
                 Não sai mais, nunca, nunca mais!




 

O ator americano
Vincent Price (1911-1993) interpreta o texto original
 de "O Corvo", num vídeo veiculado no YouTube. Clique na seta para
 assistir ao vídeo.




THE RAVEN

                             Edgar Allan Poe, 1845

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore —
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
" 'T is some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door—
                 Only this and nothing more."

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow — vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow — sorrow for the lost Lenore—
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore—
                 Nameless here for evermore.

And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me — filled me with fantastic terrors never felt before:
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating.
" 'T is some visitor entreating entrance at my chamber door—
Some late visitor entreating entrance at my chamber door—
                 That it is and nothing more."

Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir, " said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore:
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you"— here I opened wide the door—
                 Darkness there and nothing more.

Deep into the darkness peering, long I stood there wondering fearing.
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before:
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?"
This I whispered, and an echo murmured back the word "Lenore"—
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore—
Let my heart be still a moment and this mystery explore—
'T is the wind an nothing more!"

Open here i flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door—
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door—
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore—
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."

Much I marveled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning — little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door—
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."

But the Raven sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpoor.
Nothing further then he uttered, not a feather then he fluttered—
Till I scarcely more then muttered, "Other friends have flown before —
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before."
Then the bird said, "Nevermore."

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is it only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore —
Till the dirges of his Hope the melancholy burden bore
Of 'Never — nevermore.'"

But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door,
Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore—
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking, "Nevermore."

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er
But whose velvet-violet lining with lamp-light gloating o'er
She shall press, ah, nevermore!

Then methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God has lent thee — by these angels he hath sent thee
Respite — respite the nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh, quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird of devil!
Whether Tempter sent, or whatever tempest tossed thee ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted —
On this home by Horror haunted — tell me truly, I implore —
Is there — is there balm in Gilead? — tell me — tell me, I implore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."

"Prophet!" said I, "thing of evil! — prophet still, if bird of devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore—
Tell his soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the Raven, "Nevermore."

"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting —
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! — quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!
Quoth the Raven, "Nevermore."

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor,
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted — nevermore!
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Edgar Allan Poe
"O Corvo" - "The Raven"
In O Corvo
Poe - Baudelaire - Mallarmé - Fernando Pessoa - Machado de Assis
Editora Expressão, São Paulo, 1986
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* Marianne Moore, "Que São os Anos" (What are years),
  tradução de Jorge Wanderley
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A imagem do corvo no alto da página é uma ilustração do
pintor francês Édouard Manet, de 1889.