Eugénio de Andrade
Caros,
Já faz algum tempo que
um autor português não aparece nas páginas deste boletim. É hora, portanto, de
reparar esse lapso. Este número é dedicado ao poeta Eugénio de Andrade
(1923-2005), um dos grandes nomes da poesia em seu país. Nascido em Póvoa de
Atalaia, na região central de Portugal, Andrade fixou-se em Lisboa desde os 10
anos de idade. Em 1950, mudou-se para a cidade do Porto, em cuja região
permaneceu até o fim da vida.
Eugénio de Andrade, nome
literário de José Fontinhas, estreou em 1939 com a plaquete
Narciso e, três anos depois, publicou
o livro Adolescente. (Esses dois
primeiros títulos foram posteriormente renegados pelo autor.) A consagração só
lhe veio mais tarde, com a obra As Mãos e
os Frutos, de 1948. Poeta essencialmente lírico, publicou quase trinta
coletâneas de poemas originais, além de antologias, traduções, obras em prosa e
escritos para crianças.
Os poemas transcritos ao
lado foram extraídos da antologia Poemas de Eugénio de Andrade, publicada no
Brasil em 1999 pela Nova Fronteira, com seleção, estudo e notas do também poeta
e crítico literário português Arnaldo Saraiva. Na seleção deste boletim, os
poemas originalmente sem título são transcritos com o primeiro verso entre
colchetes usado como título.
A lírica de Eugénio
Andrade lastreia-se em coisas essenciais. Se você, antes mesmo de ler os poemas
ao lado, passear os olhos por todos eles, vai notar uma sequência de
substantivos marcados pelo dia a dia e pela experiência do mundo: fogo, trigo,
pássaro, caminho; rosto, água, ouro, silêncio, espaço; verão, praça, muro, mar;
navios, rios, hospitais, cidades; pedra, casa, barco, bosque; pele, boca,
areias, palavras.
Supõe-se, portanto, que
estamos com os pés firmes num universo conhecido. Não é bem assim. A poesia de
Eugénio de Andrade sabe extrair desse mundo pedestre e prosaico a centelha
mágica. Uma coisa é o mundo cru. Outra, bem transcendente, é o ambiente que se
delineia com os versos: "Nem o branco fogo do trigo / nem as agulhas cravadas na
pupila dos pássaros / te dirão a palavra."
Essas três linhas
singelas não contêm a resposta a nenhuma pergunta. Não curam, não ferem, nem
oscilam conforme as flutuações da Bolsa de Nova York. Apenas incomodam
esteticamente o leitor atento, aquele que entra de peito aberto na aventura da
poesia. E esse incômodo é tudo.
Carlos Machado
•o•
Eugénio de Andrade também apareceu
no boletim poesia.net
n. 191. |
O branco
fogo do trigo
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Eugénio de Andrade |
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SOBRE O CAMINHO
Nada.
Nem o branco fogo do trigo nem as agulhas cravadas na pupila dos
pássaros te dirão a palavra.
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve não há diferença.
Não
colecciones dejectos o teu destino és tu.
Despe-te não há outro
caminho.
De Véspera da Água (1973)
"Um pássaro nascia de seus dedos"
OS AMANTES SEM DINHEIRO
Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos
e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas
com a água e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro
onde ardiam os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como
os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que
faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos
espaços.
De Os Amantes sem Dinheiro (1950)
SUL
Era verão,
havia o muro. Na praça, a única evidência eram os pombos, o ardor
da cal. De repente o silêncio sacudiu as crinas, correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim. Assim: explodir no ar.
De O Outro Nome da Terra (1988)
"Na areia branca, onde o tempo começa"
AS PALAVRAS INTERDITAS
Os
navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos
rios.
Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de
costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso
partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de
sombra quebram nas esquinas. Amo-te... E entram pela janela as
primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já
reconhecia o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água,
este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas
mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.
E a
noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada
homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
De As Palavras Interditas (1951)
METAMORFOSES DA CASA
Ergue-se aérea pedra a pedra a casa que só tenho no poema.
A casa
dorme, sonha no vento a delícia súbita de ser mastro.
Como
estremece um torso delicado, assim a casa, assim um barco.
Uma
gaivota passa e outra e outra, a casa não resiste: também voa.
Ah,
um dia a casa será bosque, à sua sombra encontrarei a fonte onde um
rumor de água é só silêncio.
EPITÁFIO
Barcos ou não
ardem na tarde.
No ardor do verão todo o rumor é ave.
Voa
coração. Ou então arde.
DESPEDIDA
Colhe todo o oiro do dia na haste
mais alta da melancolia.
De Ostinato Rigore (1964)
DESDE O CHÃO
A pele
porosa do silêncio agora que a noite sangra nos pulsos traz-me o teu
rumor de chuva branca.
O verão anda por aí, o cheiro violento da
beladona cega a terra. Cega também, a boca procura trabalhos de amor.
Encontra apenas o nó de sombra das palavras.
Palavras... Onde um
só grito bastaria, há a gordura das palavras. Palavras — quando
apetecem claridades súbitas, o sumo estreme, a ponta extrema do teu
corpo, arco, flecha, corola de água aberta ao fogo a prumo do meu
corpo.
Do chão ao cume das colinas, eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos. A terra toda em cima. Agora arde.
Agora.
De Obscuro Domínio (1971)
A CASAIS MONTEIRO, PODENDO SERVIR DE EPITÁFIO
O que dói não é um álamo. Não é a neve nem a raiz
da alegria apodrecendo nas colinas. O que dói
não é sequer o
brilho de um pulso ter cessado, e a música, que trazia às vezes um
suspiro, outras um barco.
O que dói é saber. O que dói é a
pátria, que nos divide e mata antes de se morrer.
Setembro, 72
De Homenagens e Outros Epitáfios (1974)
"Até que uma pedra irrompa / e floresça"
ESPERA
Horas, horas sem
fim, pesadas, fundas, esperarei por ti até que todas as coisas sejam
mudas.
Até que uma pedra irrompa e floresça. Até que um pássaro me
saia da garganta e no silêncio desapareça.
De As Mãos e os Frutos (1935)
[FAZ UMA CHAVE, MESMO PEQUENA]
Faz uma chave, mesmo pequena, entra na casa.
Consente na doçura, tem dó da matéria dos sonhos e das aves.
Invoca o fogo, a claridade, a música dos flancos. Não digas pedra,
diz janela. Não sejas como a sombra.
Diz homem,
diz criança, diz estrela. Repete as sílabas onde a
luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher,
criança. Onde a beleza é mais nova.
[ESTOU CONTENTE, NÃO DEVO NADA À VIDA]
Estou contente, não devo nada à vida, e a vida deve-me
apenas dez réis de mel coado. Estamos quites, assim
o corpo já
pode descansar: dia após dia lavrou, semeou, também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,
pobríssimo animal, agora de
testículos aposentados. Um dia destes vou-me estender debaixo da
figueira, aquela
que vi exasperada e só, há muitos anos: pertenço
à mesma raça.
De Branco no Branco (1984)
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