Jorge de Lima
Caros,
Parnasiano, modernista,
regionalista, surrealista, místico e épico, o poeta Jorge de Lima nasceu em
União dos Palmares (AL) em 1893 e faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Dois mil e treze
marca, portanto, os 120 anos de seu nascimento e 60 de sua morte.
Filho
de um comerciante abastado, mudou-se com a família para Maceió em 1902 e, sete
anos depois, foi estudar medicina em Salvador. Concluiu o curso em 1914, no Rio
de Janeiro. Voltou para Maceió em 1915, e lá dividia o tempo entre a medicina, a
literatura e a política. Em 1930, mudou-se definitivamente para o Rio.
Na então capital federal, montou um consultório onde reunia amigos como o poeta
mineiro
Murilo Mendes e os romancistas nordestinos Graciliano Ramos, alagoano, e
José Lins do Rego, paraibano. No final dos anos 30, o consultório passou a ser
usado também como ateliê de pintura, outra arte que passou a cultivar.
•o•
Jorge de Lima estreou na poesia com o livro
XIV Alexandrinos (1914), todo composto de sonetos parnasianos. Pertence a
esse volume o soneto “O Acendedor de Lampiões”, incluído exaustivamente em
antologias e compêndios escolares. O poema reflete sobre a vida do
personagem-título, que “ilumina a cidade”, mas “talvez não tenha luz na choupana
em que habita”.
Em seus livros seguintes, Jorge de Lima aparece como
autor modernista de timbre marcadamente regional. O grande destaque desse
momento é o conhecido poema “Essa negra Fulô”.
Posteriormente, suas inclinações místicas,
combinadas com surrealismo e religiosidade católica levaram Jorge de Lima para
novos rumos poéticos. Em parceria com Murilo Mendes, ele escreve Tempo e
Eternidade.
Na obra completa dos dois poetas figuram poemas desse
livro, lançado em 1935. Mas em cada uma aparece somente a parte de cada autor.
Em sebos ainda é possível encontrar o volume original, com as duas partes, cujo
preço hoje ultrapassa a casa dos 1000 reais. No mesmo diapasão místico de
Tempo e Eternidade, Jorge de Lima publica A Túnica Inconsútil, em
1938.
Nesse volume encontra-se o poema “O Grande Circo Místico”, que
relata a saga da família austríaca dona do Grande Circo Knieps, companhia que
percorria o mundo no início do século passado. O poema inspirou o espetáculo de
dança homônimo assinado por Chico Buarque, Edu Lobo e Naum Alves de Souza. Há
também um filme dirigido por Cacá Dieguez, ainda não lançado.
Outro
livro de profundo naipe religioso é Anunciação e Encontro de Mira-Celi
(1943), personagem mítica e épica embebida no catolicismo místico do poeta. Por
fim, em 1952 Jorge de Lima traz a público Invenção de Orfeu, que é de
longe sua obra mais ambiciosa. Nela estão apuradas e reunidas todas as grandes
mitologias do poeta.
Com base em Dante Alighieri, Camões e em textos
bíblicos, Invenção de Orfeu é um painel de explorações oníricas,
surrealismo e momentos épicos. Poema de fôlego camoniano, divide-se em dez
cantos, cada qual com numerosos poemas em diferentes métricas e formatos. No
total, a obra estende-se por cerca de 300 páginas. Trata-se de uma criação
complexa que ainda aguarda um trabalho de exegese mais profunda.
•o•
Neste boletim, deixei de lado o Jorge de Lima
parnasiano, modernista, regionalista e religioso e concentrei a atenção em
outros textos, que estão em Poemas Escolhidos (1932), Livro de
Sonetos (1949), e Invenção de Orfeu (1952). Para facilitar as
referências, renomeei os poemas ou excertos sem título (ou cujo título é apenas
um número romano) com o primeiro verso entre colchetes.
Vale lembrar que esta não é a primeira vez que o
poeta alagoano comparece ao poesia.net. Ele já passou por aqui no
boletim n. 15, de abril de 2003.
Multiartista, Jorge de Lima também
escreveu romances e, nas artes plásticas, pintou, esculpiu, desenhou e fez
colagens. A primeira imagem da coluna ao lado mostra o retrato da filha Maria
Thereza, pintado por ele.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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O poeta na TV
Um vídeo sobre Jorge de Lima:
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Vídeo
no YouTube sobre Lima como artista plástico
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Marginália II
Letrista da Tropicália, o poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972) adorava
trazer para a música popular frases colhidas em outros contextos. Em suas
paródias ele vai do Hino à Bandeira (“salve o lindo pendão dos seus olhos” – em
Geleia Geral, parceria com Gilberto Gil), passa pelo Hino Nacional
(“minha amada idolatrada / salve/ salve / o nosso amor” – em Nenhuma Dor,
com Caetano Veloso) e chega até a Coelho Neto (“Ser mãe é desdobrar fibra por
fibra / os corações dos filhos” – Mãe Coragem, com Caetano). Não sei se
é coincidência ou se foi realmente intencional, mas ele também visitou a poesia
de Jorge de Lima, na repetição do verso “Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do
mundo”, em Marginália II (com Gil). Veja ao lado um soneto de
Invenção de Orfeu que contém esse verso.
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Invenção de Orfeu
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Jorge de Lima
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POEMA DO NADADOR
A agua é falsa, a agua é boa. Nada, nadador! A água é mansa, a
água é doida, aqui é fria, ali é morna, a agua é fêmea. Nada,
nadador! A água sobe, a água desce, a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador! A água te lambe, a água te abraça, a água te leva, a
água te mata. Nada, nadador! Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
De Poemas Escolhidos (1925 a 1930)
Pintura de Jorge de Lima: retrato da filha Maria
Thereza
POEMA DA IRMÃ
Ó irmã agora que as noites vêm cedo e
paira por tudo uma tristeza enorme e o silêncio é tão longo que os
cães enlouquecem nas ruas, irmã, vem me relembrar que crescemos juntos
quando os dias eram compridos e diferentes. Irmã, se tu sabes signos
para mudar o tempo, vem. Vem que eu quero fugir para outras paragens
onde as gaivotas sejam menos inúteis e haja um coração em cada porto;
e os pássaros do mar tão lavados e tão alvos e tão lentos e tão
sabedores de viagens venham esvoaçar sobre o meu cachimbo em que os
cometas do céu se apagaram. Irmã, nos meus ritmos há colegas que
gritam: Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas, vagabundos, crianças,
operários, leprosos e prostitutas que se lembram ainda de suas orações
familiares.
Há não sei onde outros ares e outras serras, outros
limites, adeus irmã. Ó que noite longa, Ó que noite tão longa! Que
é que chora lá fora?
—
A humanidade ou qualquer fonte?
De Poemas Escolhidos (1932)
[VEREIS QUE O POEMA CRESCE
INDEPENDENTE]
Vereis que o poema
cresce independente e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas, algas e
peixes lívidos sem dentes, veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes! Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades entre as noites e os dias, entre
as vagas e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer
poema é talvez essas metades: essas indecisões das coisas vagas que
isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
De Livro de Sonetos (1949)
[REINO MINERAL]
Quem te fez assim soturno quieto reino mineral, escondido chão
noturno?
Que bico rói o teu mal? Quem antes dos sete dias te
argamassou em seu gral?
Quem te apontou pra onde irias? Quem te
confiou morte e guerra? Quem te deu ouro e agonias?
Quem em teu
seio de terra infundiu a destruição? Quem com lavas em ti berra?
Quem te fez do céu o chão Quieto reino mineral? Quem te pôs tão
taciturno?
Que gênio fez por seu turno antes do mundo nascer: a
criação do metal, a danação do poder?
Invenção de Orfeu, Canto Primeiro, XI
[UM
MONSTRO FLUI NESSE POEMA]
Um
monstro flui nesse poema feito de úmido sal-gema.
A abóbada
estreita mana a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece, a água nasce, a
pedra cresce.
Mas desde quando esse rio corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças, frontes sumidas, espessas.
E são
minhas as medusas, cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e
alegria cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema, não
entreis nesse poema.
Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poema I
[O CAVALO EM CHAMAS]
Era um cavalo todo feito em chamas alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei Nabucodonosor que eu ressonhei.
Bem
se sabia que ele não sabia a lembrança do sonho subsistido e
transformado em musas sublevadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado no cavalo de fogo que o seguia.
Era um cavalo todo feito em lavas recoberto de brasas
e de espinhos. Pelas tardes amenas ele vinha e lia o mesmo livro que
eu folheava.
Depois lambia a página, e apagava a memória dos
versos mais doridos; então a escuridão cobria o livro, e o cavalo de
fogo se encantava.
Bem se sabia que ele ainda ardia na salsugem do
livro subsistido e transformado em vagas sublevadas.
Bem se sabia:
o livro que ele lia era a loucura do homem agoniado em que o íncubo
cavalo se nutria.
Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poemas II e IV
[AQUI É O FIM DO MUNDO]
Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo em que até aves vêm
cantar para encerrá-lo. Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo, e
nos vastos areais — ossadas de cavalo.
Entre as aves do céu: igual
carnificina: se dormires cansado, à face do deserto, quando acordares
hás de te assustar. Por certo, corvos te espreitarão sobre cada colina.
E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto que é debaixo dos
céus, a mais triste canção), vem das aves a voz repetindo teu pranto.
E, entre teu angustiado e surpreendido espanto, tangê-las-ás de ti,
de ti mesmo, em que estão esses corvos fatais. E esses corvos não vão.
Invenção de Orfeu, Canto Sexto, poema I
[ESTÃO AQUI AS POBRES COISAS]
Estão aqui as pobres coisas: cestas esfiapadas, botas carcomidas,
bilhas arrebentadas, abas corroídas, com seus olhos virados para os
que
as deixaram sozinhas, desprezadas, esquecidas com outras
coisas, sejam: búzios, conchas, madeiras de naufrágio, penas de ave e
penas de caneta,
e as outras pobres coisas, pobres sons, coitos
findos, engulhos, dramas tristes, repetidos, monótonos, exaustos,
visitados tão só pelo abandono, tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.
Invenção de Orfeu,
Canto Quinto, trecho final do poema VII
[AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS]
Aqui foi um lugar de calmas horas, ali era a distância. Em cima o
pássaro. Na planta essa raiz, e agora a ausência, agora esse tecido
alinhavado por entre unhas de dedos invisíveis. Apagaram-se as coisas
tintas com o sopro das palavras: geografias, paciências, velhos
trigos, decisões. Aqui era um sinal, ali um número, em cima esse
fagote, e o anzol das plantas fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando amargores sumidos, sais de medos; agora
a linha preta, a fronte baixa, a luz escurecida, as mariposas.
Invenção de Orfeu, Canto Décimo, trecho do poema XVI
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2013
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• Jorge de
Lima in Poesia
Completa (volume único), Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997
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* Ronaldo Costa Fernandes, "Minha foz não é do Iguaçu",
in Memória dos Porcos (2012)
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- Imagem 4:
Bjorn Moerman
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