Número 291 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 2013

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«O que me põe elétrico são as turbinas do sonho.» (Ronaldo Costa Fernandes) *

Jorge de Lima
Jorge de Lima

 

Caros,


Parnasiano, modernista, regionalista, surrealista, místico e épico, o poeta Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares (AL) em 1893 e faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Dois mil e treze marca, portanto, os 120 anos de seu nascimento e 60 de sua morte.

Filho de um comerciante abastado, mudou-se com a família para Maceió em 1902 e, sete anos depois, foi estudar medicina em Salvador. Concluiu o curso em 1914, no Rio de Janeiro. Voltou para Maceió em 1915, e lá dividia o tempo entre a medicina, a literatura e a política. Em 1930, mudou-se definitivamente para o Rio.

Na então capital federal, montou um consultório onde reunia amigos como o poeta mineiro Murilo Mendes e os romancistas nordestinos Graciliano Ramos, alagoano, e José Lins do Rego, paraibano. No final dos anos 30, o consultório passou a ser usado também como ateliê de pintura, outra arte que passou a cultivar.


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Jorge de Lima estreou na poesia com o livro XIV Alexandrinos (1914), todo composto de sonetos parnasianos. Pertence a esse volume o soneto “O Acendedor de Lampiões”, incluído exaustivamente em antologias e compêndios escolares. O poema reflete sobre a vida do personagem-título, que “ilumina a cidade”, mas “talvez não tenha luz na choupana em que habita”.

Em seus livros seguintes, Jorge de Lima aparece como autor modernista de timbre marcadamente regional. O grande destaque desse momento é o conhecido poema “Essa negra Fulô”.

Posteriormente, suas inclinações místicas, combinadas com surrealismo e religiosidade católica levaram Jorge de Lima para novos rumos poéticos. Em parceria com Murilo Mendes, ele escreve Tempo e Eternidade.

Na obra completa dos dois poetas figuram poemas desse livro, lançado em 1935. Mas em cada uma aparece somente a parte de cada autor. Em sebos ainda é possível encontrar o volume original, com as duas partes, cujo preço hoje ultrapassa a casa dos 1000 reais. No mesmo diapasão místico de Tempo e Eternidade, Jorge de Lima publica A Túnica Inconsútil, em 1938.

Nesse volume encontra-se o poema “O Grande Circo Místico”, que relata a saga da família austríaca dona do Grande Circo Knieps, companhia que percorria o mundo no início do século passado. O poema inspirou o espetáculo de dança homônimo assinado por Chico Buarque, Edu Lobo e Naum Alves de Souza. Há também um filme dirigido por Cacá Dieguez, ainda não lançado.

Outro livro de profundo naipe religioso é Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1943), personagem mítica e épica embebida no catolicismo místico do poeta. Por fim, em 1952 Jorge de Lima traz a público Invenção de Orfeu, que é de longe sua obra mais ambiciosa. Nela estão apuradas e reunidas todas as grandes mitologias do poeta.

Com base em Dante Alighieri, Camões e em textos bíblicos, Invenção de Orfeu é um painel de explorações oníricas, surrealismo e momentos épicos. Poema de fôlego camoniano, divide-se em dez cantos, cada qual com numerosos poemas em diferentes métricas e formatos. No total, a obra estende-se por cerca de 300 páginas. Trata-se de uma criação complexa que ainda aguarda um trabalho de exegese mais profunda.

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Neste boletim, deixei de lado o Jorge de Lima parnasiano, modernista, regionalista e religioso e concentrei a atenção em outros textos, que estão em Poemas Escolhidos (1932), Livro de Sonetos (1949), e Invenção de Orfeu (1952). Para facilitar as referências, renomeei os poemas ou excertos sem título (ou cujo título é apenas um número romano) com o primeiro verso entre colchetes.

Vale lembrar que esta não é a primeira vez que o poeta alagoano comparece ao poesia.net. Ele já passou por aqui no boletim n. 15, de abril de 2003.

Multiartista, Jorge de Lima também escreveu romances e, nas artes plásticas, pintou, esculpiu, desenhou e fez colagens. A primeira imagem da coluna ao lado mostra o retrato da filha Maria Thereza, pintado por ele.

Um abraço, e até a próxima,


Carlos Machado


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O poeta na TV

Um vídeo sobre Jorge de Lima:


Vídeo no YouTube sobre Lima como artista plástico

   

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Marginália II

Letrista da Tropicália, o poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972) adorava trazer para a música popular frases colhidas em outros contextos. Em suas paródias ele vai do Hino à Bandeira (“salve o lindo pendão dos seus olhos” – em Geleia Geral, parceria com Gilberto Gil), passa pelo Hino Nacional (“minha amada idolatrada / salve/ salve / o nosso amor” – em Nenhuma Dor, com Caetano Veloso) e chega até a Coelho Neto (“Ser mãe é desdobrar fibra por fibra / os corações dos filhos” – Mãe Coragem, com Caetano). Não sei se é coincidência ou se foi realmente intencional, mas ele também visitou a poesia de Jorge de Lima, na repetição do verso “Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo”, em Marginália II (com Gil). Veja ao lado um soneto de Invenção de Orfeu que contém esse verso.


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Invenção de Orfeu

Jorge de Lima

 

 

 

POEMA DO NADADOR

A agua é falsa, a agua é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a agua é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.

          De Poemas Escolhidos (1925 a 1930)



Jorge de Lima - retrato da filha 
Pintura de Jorge de Lima: retrato da filha Maria Thereza



POEMA DA IRMÃ

Ó irmã
agora que as noites vêm cedo
e paira por tudo
uma tristeza enorme
e o silêncio é tão longo
que os cães enlouquecem nas ruas,
irmã, vem me relembrar
que crescemos juntos
quando os dias eram compridos e diferentes.
Irmã, se tu sabes signos
para mudar o tempo, vem.
Vem que eu quero fugir
para outras paragens
onde as gaivotas sejam menos inúteis
e haja um coração em cada porto;
e os pássaros do mar
tão lavados e tão alvos
e tão lentos e tão sabedores de viagens
venham esvoaçar
sobre o meu cachimbo
em que os cometas do céu se apagaram.
Irmã, nos meus ritmos
há colegas que gritam:
Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas,
vagabundos, crianças,
operários, leprosos e prostitutas que
se lembram ainda de suas orações familiares.

Há não sei onde outros ares e outras serras,
outros limites, adeus irmã.
Ó que noite longa,
Ó que noite tão longa!
Que é que chora lá fora?
— A humanidade ou qualquer fonte?


          De Poemas Escolhidos (1932)



[VEREIS QUE O POEMA CRESCE INDEPENDENTE]

Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,

coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.

Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.


          De Livro de Sonetos (1949)



rochas



[REINO MINERAL]

Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido chão noturno?

Que bico rói o teu mal?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral?

Quem te apontou pra onde irias?
Quem te confiou morte e guerra?
Quem te deu ouro e agonias?

Quem em teu seio de terra
infundiu a destruição?
Quem com lavas em ti berra?

Quem te fez do céu o chão
Quieto reino mineral?
Quem te pôs tão taciturno?

Que gênio fez por seu turno
antes do mundo nascer:
a criação do metal,
a danação do poder?


          Invenção de Orfeu, Canto Primeiro, XI


[UM MONSTRO FLUI NESSE POEMA]

Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.

A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.

Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.

O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.

Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?

Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.

E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.

Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.

Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.

          Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poema I

 


[O CAVALO EM CHAMAS]

Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.

Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.

Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.

Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.



cavalo em chamas


Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.


          Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poemas II e IV



[AQUI É O FIM DO MUNDO]

Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais — ossadas de cavalo.

Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar. Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.

E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.

E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais. E esses corvos não vão.


          Invenção de Orfeu, Canto Sexto, poema I



wreck-bjorn


[ESTÃO AQUI AS POBRES COISAS]


Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.


          Invenção de Orfeu, Canto Quinto, trecho final do poema VII




[AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS]

Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distância. Em cima o pássaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausência,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
paciências, velhos trigos, decisões.
Aqui era um sinal, ali um número,
em cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.


          Invenção de Orfeu, Canto Décimo, trecho do poema XVI

       

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Carlos Machado, 2013





•  Jorge de Lima

   in Poesia Completa (volume único),
    Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997
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* Ronaldo Costa Fernandes, "Minha foz não é do Iguaçu",
  in Memória dos Porcos (2012)

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- Imagem 4: Bjorn Moerman