Amélia Pais
Caros,
Em vários aspectos, este é um boletim diferente dos habituais. Mas, no
fundamental, ele homenageia uma poeta que nunca publicou um livro de
poemas. Trata-se também de uma escritora que na juventude cometeu alguns versos,
mas logo abandonou as musas, embora nunca tenha aberto mão de divulgar poesia.
Estou falando de Amélia Pinto Pais, nascida em 1943 em Fornos de
Algodres, no nordeste de Portugal, professora de francês e português no ensino
secundário durante 36 anos. Apaixonada por literatura, difundiu de várias formas
a apreciação da palavra poética. Escreveu ensaios sobre Camões e Fernando Pessoa
(seus poetas preferidos) e Gil Vicente, bem como uma história da literatura
portuguesa.
Além de ensinar e escrever livros de divulgação literária,
Amélia manteve durante anos um boletim chamado A Companhia do Poeta,
de circulação diária. Simples e direto, trazia um poema e alguma informação
sobre o autor, como nascimento, morte e nacionalidade. Aos sábados, o mesmo
boletim passava a chamar-se A Prosa da Semana, com trechos de autores
internacionais.
•o•
Em paralelo com o boletim, Amélia manteve o blog
Ao
longe os Barcos de Flores, de janeiro de 2005 a maio de 2012, quando faleceu em
Leiria, cidade onde morava, na região central de Portugal. Nesse blog pode-se
ter uma pequena amostra do universo literário de Amélia, que passeia com
desenvoltura, em prosa e verso, entre clássicos e contemporâneos. O blog ainda
está disponível a quem deseje visitá-lo.
Na pesquisa que fiz para
escrever este boletim, descobri que Amélia Pais, além de tudo isso, era coordenadora
de um clube de leitura em Leiria. Diz uma pessoa que se identifica como
Rosa dos
Ventos: “Graças a esse clube tenho conhecido autores e autoras que sozinha não
descobriria, tenho encontrado novos sentidos em obras já lidas, enfim tenho
passado, uma vez por mês, uma tarde de agradável e proveitosa cavaqueira!”
Alguns dos livros de Amélia Pinto Pais atravessaram o Atlântico e foram
editados também no Brasil. São dois sobre o autor de Ficções do Interlúdio (Para
Compreender Fernando Pessoa e Fernando Pessoa, o Menino da Sua Mãe) e
Padre
Antônio Vieira – O Imperador da Língua Portuguesa. Os três volumes saíram pela
Companhia das Letras.
•o•
Quanto à Amélia poeta, ela mesma tratava de
esquivar-se da classificação. “Só fui poeta há muitos anos (ou seja, poeta sazonal...)
— e desse
tempo guardo cerca de 20 poemas que intitulei 'Intervalos do Sentir'. Têm sido
publicados na net (...). Não me levo muito a sério como poeta. Então é
preferível dizer: estive poeta, em vez de fui (e muito menos sou) poeta”. (De um
depoimento a Maria José Limeira, publicado no
Portal Entretextos). Todos os
poemas reproduzidos ao lado foram extraídos do blog de Amélia. Eles certamente
pertencem a essas duas dezenas citadas pela autora.
Mas embora não se
assumisse poeta, ela abraçava com orgulho o epíteto que um aluno lhe dera,
“semeadora de poemas”. Aliás, isso está dito claramente na mensagem inaugural do
blog Ao Longe Os Barcos de Flores: “Um dia chamaram-me assim: e eu gostei. Claro
que gostaria mais de ser ‘indisciplinadora de almas’, como Pessoa... ou como
qualquer professor deveria ser...”
Mais adiante, na apresentação, ela
explica que o título do blog — ou blogue, como escrevia, de forma mais adequada
ao nosso idioma — foi “roubado” de um verso do poeta simbolista português Camilo
Pessanha. Mas ela não abria mão do Pessoa, seu preferido (depois de Camões). O
lema do blog, estampado logo abaixo do título, é “À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo — Álvaro de Campos”.
•o•
Ao navegar nos Barcos de Flores
também se vai descobrir que Amélia Pais
apreciava a música e a literatura brasileira. Nomes como Drummond, Bandeira,
Cassiano Ricardo e Vinicius de Moraes aparecem a bordo. Do mesmo modo, Maria
Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso e Antonio Carlos Jobim. No cinema,
ela preferia o neorrealismo italiano. Mas estava atenta aos grandes mestres. Em 31 de julho de 2007, registrou:
“Deixaram-nos ontem dois que nos ensinaram a ver e amar o cinema: Antonioni
(1912-2007) e Ingmar Bergman (1918-2007)”.
Quando diz que gostaria de ser
uma “indisciplinadora de almas”, Amélia revela um pouco de sua inclinação para o
civismo e a política. Tendo sido professora durante a ditadura de Salazar, ela
sempre comemorava o 25 de abril de 1974, a data da Revolução dos Cravos, que
restaurou a democracia em Portugal. Numa entrevista, chegou a declarar que
essa data representava sua maior “alegria cívica”. E volta e meia ela publicava
um poema, uma letra de canção ou um texto relembrando os malfadados anos de
opressão, sob a etiqueta de “crônicas contra o esquecimento”. Crônicas para que
os jovens não se esquecessem dos "tempos salazarentos". Brava Amélia.
•o•
Conheci Amélia Pinto Pais por
causa do poesia.net. Existe uma revista de poesia internacional, a
Isla Negra —
com textos em espanhol, português e italiano — e a
Amélia integrava a equipe de editores. Passei, depois, a receber o boletim A
Companhia dos Poetas. Ela, por sua vez, recebia o poesia.net. De vez em quando,
trocávamos alguns e-mails. Enviei-lhe um livro meu, ao que ela retribuiu com
dois dela, da série Para Compreender: Camões e Fernando Pessoa.
De
repente, os boletins de Amélia pararam de vir. A princípio, acreditei que ela
estivesse em viagem, uma atividade que ela confessadamente adorava. Depois,
achei que talvez estivesse recolhida, dedicando-se à produção de algum livro
mais absorvente. Desafortunadamente, só este ano descobri que a Amélia tinha
viajado para sempre em 2012.
Resolvi então fazer este boletim-homenagem à
semeadora de poesia. Entrei em contato com algumas pessoas que recebiam
o boletim dela e talvez a tivessem conhecido pessoalmente. Obtive então dois
pequenos depoimentos. Um da poeta portuguesa Soledade Santos, também professora,
que de fato a conheceu. O outro, da poeta e
prosadora paulista Sônia Barros, a quem eu havia apresentado o boletim A Companhia do
Poeta.
Quando este boletim já estava pronto, recebi nova edição da
revista eletrônica Isla Negra. Comentei sobre Amélia com o editor,
Gabriel Impaglione, poeta argentino residente na Sardenha. Ele também enviou-me
um depoimento.
Encontrei também na web dois elogios póstumos de pessoas que
conheceram Amélia. Um do poeta português Sérgio Lavos, que foi aluno dela no
curso secundário. E o outro de Orlando Cardoso, publicado no Jornal de
Leiria. Deles roubei trechos que, assim como os depoimentos de Soledade
Santos, Sônia Barros e Gabriel Impaglione, estão mais abaixo.
Assim que pensei em organizar
este boletim, acreditei que o título seria o mesmo de uma canção popular
brasileira. Depois, convenci-me de que “semeadora de poesia” seria mais
adequado. De todo modo, registro aqui a ideia inicial: “Ai que saudades da
Amélia”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
O QUE SE DIZ SOBRE AMÉLIA
“Vocação para a alegria”
A Amélia foi
minha amiga muito próxima durante mais de 12 anos. Bem antes disso, já o seu
nome e o seu trabalho me eram familiares, através dos cursos de formação de
professores, dos livros que publicara — e dos quais destaco Os Lusíadas em Prosa,
versão juvenil da epopeia que continua insuperável — e do seu infatigável e
pioneiro trabalho na didáctica de Camões e de Fernando Pessoa.
"Semeadora
de poesia", chamou-lhe um dos seus antigos alunos. E ela tinha orgulho no
título. É assim que a quero recordar — a mulher generosa, com uma rara vocação
para a alegria, a grande professora que partilhou com os seus alunos e com
quantos quiseram aprender aquilo que considerava uma das mais maravilhosas
realizações humanas: a poesia.
SOLEDADE SANTOS professora e poeta
portuguesa, é autora da coletânea Sob os teus pés a terra (Artefacto,
2010) e mantém o blog
Metade do Mundo
***
“Lúdica e cativante”
Meu primeiro
contato com Amélia Pais foi em março de 2007. Cheguei a ela através do amigo
Carlos Machado, a quem agradeço por esse precioso presente. Porque foi, sim, um
presente conhecer Amélia. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas trocávamos
e-mails, eu visitava com frequência seu site Ao Longe os Barcos de Flores e
também recebia o boletim A Companhia do Poeta.
Admirava-me sua paixão
pela poesia, seu empenho em semeá-la. E não apenas para adultos, como prova o
belíssimo livro Fernando Pessoa, o menino da sua mãe, em que Amélia apresenta
aos jovens, de maneira lúdica e cativante, o grande poeta português. Que
falta fará Amélia! À poesia e a nós, leitores e amigos.
SÔNIA BARROS paulista, poeta e autora de ficção infantil, publicou
títulos como Coisa boa (Moderna); Asas de dentro (Scipione); e
Onde o céu acontece (Atual)
***
“Doença benigna”
Apanhei-a como
professora no 12º ano, na Escola Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria.
"Apanhei-a" parece-me um termo adequado — ela foi como uma doença benigna que me
deixou imunizado a uma série de ideias feitas da adolescência. (...) Ela era a
professora que incentivou esforços literários a quem pouco ou nada tinha a
oferecer ao mundo.
SÉRGIO LAVOS poeta, ex-aluno de Amélia, no blog
Auto-retrato
***
“Órfãos de poesia”
Amava profundamente
as palavras e divulgou com uma enorme ternura milhares de versos que se
espalhavam na sua mesa, naquela ordem desordenada própria dos grandes vultos.
(...) A sua perseverança na busca poética trouxe-nos versos de todo o mundo,
provando que a poesia e as suas linguagens são universais. (...) A Amélia
deixou-nos. Estamos órfãos de poesia.
ORLANDO CARDOSO no
Jornal de Leiria
***
“Amelia-poesía”
Porque debía ser así, nuestros caminos confluyeron en el país de la poesía
hace tantos años que me es dificil precisar cuando. Tampoco sé cómo fue. El
recuerdo me sorprende enviándonos poesía intensamente, con una alegría tan pura,
que esa es la sensación que me gana ahora, cuando el hermano poeta Carlos
Machado me da la triste noticia de su fallecimiento. Amelia-poesía,
Amelia-multiplicadora de horizontes, Amelia-educadora, toda ella una personita
profunda como el cielo constelado.
Tuve el honor de compartir la tarea de
editar una versión de la revista Isla Negra en portugués, que ella
producía y dirigía libremente desde Portugal, Ilha Negra: salió un año,
y fue un tiempo riquísimo de descubrimientos gracias al trabajo inmenso, sin
límites de Amelia. Se preocupaba por los autores clásicos, pero ponía especial
interés en los buenos nuevos poetas que descubría
— ese don
— en su inquieta travesía por el mundo poético lusófono.
Cómo amó la poesía, la literatura, la cultura lusófona, la educación nuestra
Amelia! Exigente y generosa, fraterna, su sensibilidad florece en todos aquellos
que han sido sus alumnos y sus lectores. Entre nosotros, sus amigos poetas,
queda la apasionada ternura de su nombre estrellado.
Sardegna, 2013
GABRIEL IMPAGLIONE poeta argentino, editor da revista
Isla Negra
•o•
LANÇAMENTOS
Vera Lúcia de Oliveira
• Vida
de Boneca
Else R. P. Vieira
•
Poetas à Deriva / Poets Adrift
Dois lançamentos para quem está em São Paulo. Primeiro, o livro Vida de
Boneca, da poeta
Vera Lúcia de Oliveira, publicado pela SM Edições. Na mesma hora e local
também se lança o volume bilíngue coordenado por Else R. P. Vieira, Poetas à
Deriva/Poets Adrift - Primeira Antologia da Poesia da Diáspora Brasileira,
que sai pela Maza Edições. Essa coletânea reúne poemas de seis autores:
Alessandra P. Rebello, Antônio Massa, Natan Barreto, Ricardo Sternberg, Vera
Lúcia de Oliveira e Vilmara Bello.
Data: 29/08, quinta-feira
Hora: 10h00 Local: Sala 110 – Prédio de Letras - FFLCH–USP Av. Prof.
Luciano Gualberto 403, Cidade Universitária São Paulo, SP
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Semeadora de poesia
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Amélia Pais
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TRÍPTICO
(à maneira popular...)
I
desamada desarmada vem o vento vai-se o tempo nem o
tempo nem o vento dá o tempo de sarar de repente vem o dia
chega a hora borda fora a acostar
volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem tua amada tua armada com o tempo
desarmada traz também
II
o que se sente entre o que se
pensa e diz . o que se pensa entre o que se sente e cala o que se
cala entre o sentir e o ser o que se diz entre o que se ama e sonha
nós no mais fundo de nós nós perdidos nós vazios nós à
margem
III
Quem vai responder o que não tem resposta
Quem vai falar o que não tem palavra Quem vai achar o que em nós
esquece Quem vai roer o que em nós sufoca
Vem noite ou pranto
ou dia ou vento Quem quer que sejas que seja o novo Abrindo o canto na
carne clara
VERÃO
O que há de novo na tarde Verdadeiramente tarde Verdadeiramente
terna É este gosto novo de cantar É esta fome absurda de verão
(2005)
[BELO E DIFÍCIL ESTE PAÍS DE NÃO]
Belo e difícil este país de não Ternura e
sol de meu amor Reino de fantasmas de navios Dedos gigantes abarcando
o mar
Ah pudesse eu agarrar no meu país E dá-lo todo todinho a
esta esperança nova
(06/08/1969)
[ROSA]
Colhe a rosa
esquecida no caminho
beija-a depois
Suave a luz te é
reservada.
ESPELHO
és quem te vês nos olhos de quem amas
esse o momento do
esplendor e da verdade — só teu
(2005)
INEXORÁVEL A LUA
Leve (inexorável) a lua se eleva breve
Caminho do infinito
UNA FURTIVA
LACRIMA
Desliza suave furtiva uma lágrima
abre em ti
a flor oculta e breve
OUTONAL
Cai uma folha no poente destes dias
O que era nítido torna-se difuso Babel renasce em cinzas de um deserto
próprio E o vento busca em vão uma harmonia
A solidão é em mim um
oásis às avessas Lutando em vão contra a miragem certa
(2005)
ALGAS
Vi No fundo do mar Algas salgadas Grandes e tristes
Dói Saber Que há algas Grandes e tristes Dentro do mar
(Segundo Amélia Pais, este foi o primeiro poema que ela escreveu)
[SÓ NO SONHO OS MEUS DIAS
SE CONSENTEM]
Só no sonho os meus dias se consentem A um nome
se reduz esta ânsia de ser presença viva do meu gesto outrora
Eu não sei de outro nome para a ternura.
[TRANSPARÊNCIA
LÍMPIDA DE INFÂNCIA NÃO VIVIDA]
Transparência
límpida de infância não vivida a fonte as casas o mar a alga o sol a
flor o búzio a rocha a busca a ânsia
Ergue-te coração Na
tarde limpa
[E DE NOVO A SENSAÇÃO DO MOLE E INDEFINIDO]
E de novo a sensação do mole e indefinido
Vago rumor que envolve as coisas e a solidão nocturna Ecos longínquos
trazem-me a distância Algo agita o vento e levanta a areia O deserto é
mais vasto e o mar É proa erguida do navio austero Em que navega há
séculos a sombra — e a miragem PAPOILAS GRITO ABERTO NA MANHÃ DO ESPANTO
VERSOS DISPERSOS OU QUASE POEMAS
..............................
Poeta, eu? Nasceu-me no meu verso A
beleza da vida pressentida Nasceu-me o sonho — e com ele Minha verdade
ficou — assim vivida
......................................
(variante ou outro)
Poeta, eu? saciasse-me de novo a pureza do que
não aconteceu e este sol seria mar imenso de ternura criada entre meus
dedos
[COMO A AREIA]
Como a areia a inconsistência
desliza nos meus dedos
Assim o sonho se esvai — alado — no
meu peito
[MEU SOL ORIENTAL COMIGO À BEIRA-MÁGOA]
Meu sol oriental comigo à beira-mágoa
sonho alado canção ave nocturna cotovia sem voz erguida no espaço
(quase grito de espanto) gaivota em mim mesmo já cansada
[SÓ A TRISTEZA TEM HISTÓRIA]
Só a tristeza tem história por isso nós vivemos a cantar
enrolados em nós esperamos dos outros a alegria de não estarmos sós
com a história triste do nosso fracasso.
OUTONAL
Cai uma folha no poente destes dias O que era nítido torna-se difuso
Babel renasce em cinzas de um deserto próprio E o vento busca em vão uma
harmonia
A solidão é em mim um oásis às avessas Lutando em vão
contra a miragem certa
[PLÁCIDA A SOMBRA ATRAVESSA O]
plácida a sombra atravessa
o
limiar do dia nos interstícios do olhar
a luz espreita
limpa e serena
e nos convida
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2013
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• Amélia
Pais Poemas extraídos do blog
Ao Longe os
Barcos de Flores, da autora
______________ * Ricardo Reis (Fernando Pessoa), em Odes de Ricardo Reis
______________ Todas as imagens são pinturas de
Irina
Rosenfeldt, argentina: - Imagem 1: Swim at night - Imagem 2:
Croquis de desplante - Imagem 3:
Nap at a shade of a trauma
- Imagem 4: Nevesta (Bridemaid)
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