Emily Dickinson
Caros,
Quase 130 anos depois de sua morte, a poeta americana Emily
Dickinson (1830-1886) continua a causar espanto e admiração. Sua mais nova
proeza — quer dizer, sua proeza só agora revelada — são os textos que os
críticos vêm chamando de poemas-envelope.
Descobriu-se recentemente que
Emily reaproveitava os envelopes postais que recebia, escrevendo neles poemas e
anotações. Esses envelopes, assim como todo o acervo da poeta, estão na
biblioteca do Amherst College, instituição da cidade-natal de Emily, onde ela
estudou, em Amherst, Massachusetts.
Nos Estados Unidos, saiu, agora no final de 2013, um
livro chamado The Gorgeous Nothings (algo como “Os magníficos nadas”)
que reúne o material de Emily escrito nesses envelopes.
•o•
Mostro aqui dois poemas-envelope. Um diz, singelamente:
One note from one bird is better than a million words.
Em tradução despretensiosa, seria: “Uma só nota / de um passarinho / é
melhor que / um milhão de palavras”. Simples, fácil. Mas como dizer isso em
português com a mesma concisão e rimas? Que outro, não
eu, a pedra corte.
O segundo poema também não é complicado, mas contém
referência à História americana.
Not to send errands by John
Alden is one of the instructions of History.
Outra
vez, em tradução literal: “Não confiar / tarefas a John / Alden é / um dos /
ensinamentos / da História”. Aqui, algum esclarecimento se impõe. Um episódio
fundamental da História dos Estados Unidos é a chegada em 1620 do navio inglês
Mayflower, com 102 passageiros vindos da Inglaterra.
Esses migrantes estabeleceram-se onde hoje é o estado de Massachusetts e foram os primeiros
ingleses a chegar à colônia. Na maioria, eram famílias puritanas — protestantes
radicais — que não queriam se dobrar à Igreja Anglicana.
O John Alden
citado no poema era carpinteiro náutico e foi contratado na Inglaterra para
fazer a manutenção do Mayflower durante toda a viagem. Portanto, ele
deveria vir ao Novo Mundo e retornar com o navio. Era tripulante, e não
passageiro. Só que Alden tinha outros planos: resolveu “fazer a América”,
casou-se depois com uma das passageiras, e nunca mais retornou ao seu país. Por
isso é que o poema, ironicamente, sugere que não se deve confiar em John Alden.
•o•
Poeta das mais lidas e admiradas nos Estados Unidos, Emily
Dickinson é traduzida no mundo inteiro. Também no Brasil, já existe um
considerável número de traduções de seus poemas, divulgadas tanto em livros como
na internet. Talvez o primeiro a notá-la tenha sido Manuel Bandeira, que verteu
cinco textos dela, incluídos no volume Poemas Traduzidos. Mas a
admiração pela chamada Bela de Amherst aparentemente só cresce, e há sempre
novos tradutores interessados em transpor seus versos para o português.
Somente neste boletim contamos com o trabalho de três tradutores: os paulistanos
Augusto de Campos e Isa Mara Lando e a fluminense Aíla de Oliveira Gomes
(1921-1992).
•o•
Muito do que se conhece da vida de Emily Dickinson foi
extraído de suas cartas. Embora ela tenha vivido reclusa na casa da família ―
especialmente em seus últimos anos ―, mantinha intensa correspondência com
amigos. A única foto reconhecida de Emily é um daguerreótipo produzido quando
ela tinha por volta de 16 anos. Trata-se da foto que abre este boletim e é
reproduzida ao lado em toda a sua extensão. Não vou me alongar nos dados
biográficos da autora, nem nas características de sua poesia. Isso já foi feito
no primeiro boletim sobre ela, o
poesia.net n. 67, de maio/2004.
Recentemente, localizaram-se
dois outros retratos que se acredita sejam dela, mas a autenticidade dessas
imagens não foi comprovada. O mais recente, descoberto em 2012, mostra uma amiga
de Emily, Kate Scott Turner Anthon e a suposta Emily, mais velha,
aproximadamente em 1859. Análises comparativas dessa foto com a de Emily
adolescente, feitas por oftalmologistas, levam a crer que seja de fato a poeta.
De todas as descobertas esta é a que talvez esteja mais próxima de uma possível
autenticação.
•o•
Os organizadores da obra de Emily Dickinson catalogaram
quase 1800 poemas, que estão reunidos em sua poesia completa. Para facilitar a
identificação — já que a autora nunca dava título aos textos —, cada poema
passou a ser identificado por um número. Neste boletim, sigo essa numeração,
mesmo quando o tradutor não a utilizou. Na verdade, dos três tradutores, somente
Aíla de Oliveira Gomes registra o número de identificação ao pé de cada poema.
•o•
“Aonde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá
antes de mim.” Com esta frase, Sigmund Freud, o criador da psicanálise, destaca
a capacidade dos grandes poetas de antecipar, com sua intuição, ideias e
conceitos que em muitos casos cientistas e pensadores só vão formular tempos
depois.
No
boletim n. 70 (maio, 2004), mostrei um exemplo do poder da intuição poética
de Emily Dickinson. Ali era uma nota solta. Repito-o aqui em local mais
adequado, um boletim inteiramente dedicado a ela.
POESIA QUÂNTICA
«Quanto mais precisamente a posição [de uma partícula subatômica] é
determinada, menos precisamente, no mesmo instante, seu momento [massa x
velocidade] é conhecido, e vice-versa.» Werner Heisenberg, 1927
A
frase acima é parte de um texto no qual o cientista alemão Werner Heisenberg
(1901-1976) enuncia o célebre Princípio da Incerteza — concepção de enormes
implicações para a ciência física. Um dos motivos para essa incerteza, ou
indeterminação, está no tamanho minúsculo dos objetos observados — um elétron,
por exemplo. Os próprios instrumentos utilizados para medir a posição ou a
velocidade do elétron interferem no comportamento da partícula.
Que os
físicos me perdoem a imprecisão do que escrevi acima. Mas meu ponto de chegada
não é a física, e sim a poesia. Observem este trecho de um poema de Emily
Dickinson:
A percepção de um Objeto custa justo a perda do
Objeto.
Emily, à sua maneira e antes de Heisenberg, já sabia
enunciar o Princípio da Incerteza! O enunciado de Emily está no poema 1071,
transcrito ao lado no original e em versão de Aíla de Oliveira Gomes.
•o•
Se no poema 1071 Emily invade a praia dos físicos, no
poema 642 ela entra sem pedir licença no gabinete do Dr. Freud, antes mesmo de
ele sonhar com a criação da psicanálise. Esse texto foi escrito possivelmente em
1862, quando o futuro neurologista vienense tinha apenas 6 anos de idade. Nele, o embate entre instâncias da personalidade – Eu e Mim, Me and Myself
– é algo para a atenção dos psicanalistas.
O recolhimento em que
viveu durante quase toda a vida deu a Emily Dickinson condições para refletir
sobre muitas questões complicadas. Assim, ela percebe poeticamente que o
sucesso soa mais doce, mais apetitoso, para quem nunca o alcançou (poema 67).
No poema 288, Emily discute sobre algo bem fronteiro ao sucesso: a fama.
O mesmo tema volta a aparecer no poema 1763. Neste, a poeta, que em geral
apresenta uma postura grave, aparece muito bem-humorada. Conforme sua visão, a fama é como a abelha: tem canção, tem ferrão e também tem asa: chega e
logo pode ir embora.
•o•
A originalidade de certas imagens criadas por Emily
Dickinson é impressionante. No poema 80, ela compara nossas vidas a Suíças
frias, separadas da Itália e do calor mediterrâneo pelas cortinas dos Alpes. Em
suma, o lugar real onde vivemos e o lugar com o qual sonhamos. Em dias mais
claros, abre-se uma nesga nas cortinas nevoentas e conseguimos enxergar mais longe. Mas os
Alpes são também montanhas maciças a barrar o caminho até o mar ensolarado.
•o•
Embora seus poemas passem longe de ser crônicas do
cotidiano, A Dama de Branco – outro epíteto usado para ela (porque, recolhida em
casa, só usava roupas brancas) — também sabia observar como poucos os movimentos
da vida comum, especialmente quando se referiam a um de seus temas prediletos: a
morte. O poema 389 é um exemplo disso.
•o•
Para os mais curiosos, a coleção completa dos poemas de
Emily (são exatos 1775 poemas, nos quais não estão incluídos os envelopes
recém-descobertos) encontra-se no site
American Poems, organizados segundo os números de identificação de que falei
mais acima.
Um abraço, e até mais ler,
Carlos Machado
•o•
SUTILÍSSIMA FERIDA
Após a circulação deste boletim, tive o
prazer de receber a seguinte mensagem de Isa Mara Lando, uma das tradutoras
citadas:
"Prezado Carlos Machado,
Gratíssima por incluir
minhas traduções no boletim. Estou na excelente companhia de Augusto de Campos e
Aíla de Oliveira Gomes. Se eu puder dar uma sugestão, gostaria que entrasse a
tradução livre incluída nos adendos de meu livro para o poema 108, o último do
boletim.
Isa Mara Lando"
Em seu livro Loucas Noites – Wild
Nights, a tradutora explica: ao verter o poema 108, não encontrou, em
quatro versos, uma solução que atendesse à rima original de Emily Dickinson:
knife/life. Por isso, fez também uma versão livre, na qual usou a licença de incluir
um verso extra para garantir a presença da rima.
Prometi a ela que incluiria no site a versão
"estendida" da tradução. Assim, o poema 108 aparece ao lado em duas
traduções.
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Os magníficos nadas
|
Emily Dickinson |
Traduções de Augusto de Campos,
Aíla de Oliveira Gomes
e Isa Mara Lando |
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• Augusto
de Campos ---------------------------
67
O Sucesso é mais doce
A quem nunca sucede. A compreensão do néctar Requer severa sede.
Ninguém da Hoste ignara Que hoje desfila em Glória pode entender a
clara Derrota da Vitória.
Como esse — moribundo — Em cujo
ouvido o escasso Eco oco do triunfo Passa como um fracasso!
67
Success is counted sweetest By those who ne'er succeed. To
comprehend a nectar Requires sorest need.
Not one of all the
purple Host Who took the Flag today Can tell the definition So
clear of Victory
As he defeated — dying — On whose forbidden ear
The distant strains of triumph Burst agonized and clear!
(c.
1859)
Reprodução fotográfica de um dos poemas-envelope de Emily Dickinson: não
confiar tarefas a John Alden, escrito por volta de 1880
288
Não sou Ninguém! Quem é você? Ninguém — Também? Então somos um
par? Não conte! Podem espalhar!
Que triste — ser — Alguém! Que
pública — a Fama — Dizer seu nome — como a Rã — Para as palmas da
Lama!
288
I'm Nobody! Who are you? Are you — Nobody — Too? Then there's a
pair of us! Don't tell! they'd advertise — you know!
How dreary —
to be — Somebody! How public — like a Frog — To tell one's name — the
livelong June — To an admiring Bog!
(c. 1861)
642
Banir a Mim —
de Mim — Fosse eu Capaz — Fortim inacessível Ao Eu Audaz —
Mas se meu Eu — Me assalta — Como ter paz Salvo se a Consciência
Submissa jaz?
E se ambos somos Rei Que outro Fim Salvo
abdicar- Me de Mim?
642
Me from Myself — to banish — Had I
Art — Impregnable my Fortress Unto All Heart —
But since Myself
— assault Me — How have I peace Except by subjugating
Consciousness?
And since We're mutual Monarch How this be
Except by Abdication — Me — of Me?
(c. 1862)
1222
O Enigma
decifrado Despreza-se com pressa — A Surpresa de Ontem Já não nos
interessa —
1222
The Riddle we can guess We speedily despise — Not anything is
stale so long As Yesterday's surprise —
(c. 1870)
Foto oficial —
e única — de Emily Dickinson:
daguerreótipo produzido quando a escritora tinha cerca de 16 anos
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• Aíla
de Oliveira Gomes -------------------------------
389
Houve morte na
casa ali defronte — Foi hoje, coisa recente; Eu sei por esse ar de
anestesia Que dessas casas recende.
Vizinhos em sussurros entram e
saem, De carro afasta-se o médico, Uma janela se abre como vagem,
De modo abrupto, automático,
E por ela atiram fora um colchão.
Crianças passam correndo — Intrigadas — "foi ali que morreu?" Eu
ficava assim, me lembro.
Formal e teso vai entrando o clérigo,
Qual se sua a casa fosse — Hoje são dele todos os que choram E das
crianças toma posse.
Vem o homem do armarinho — e aquele homem Da
horrorosa profissão — O que toma as medidas para a casa. Vai haver a
soturna procissão —
Vão vir os coches, as franjas douradas Sem nem
cartaz ou rumor, Corre fácil a intuição das notícias Nas vilas do
interior.
(c. 1862)
389
There's been a Death, in the
Opposite House, As lately as Today — I know it, by the numb look
Such Houses have — alway —
The Neighbors rustle in and out — The
Doctor — drives away — A Window opens like a Pod — Abrupt —
mechanically —
Somebody flings a Mattress out — The Children hurry
by — They wonder if it died — on that — I used to — when a Boy —
The Minister — goes stiffly in — As if the House were His — And He
owned all the Mourners — now — And little Boys — besides —
And
then the Milliner — and the Man Of the Appalling Trade — To take the
measure of the House — There'll be that Dark Parade —
Of Tassels —
and of Coaches — soon — It's easy as a Sign — The Intuition of the
News — In just a Country Town —
1071
A percepção de um
Objeto custa Justo a perda do Objeto. A percepção é, em si mesma, um
ganho Respondendo por seu preço.
O Objeto Absoluto — é nada — A
Percepção é que o revela — Depois censura a Perfeição Que tão longe se
encastela.
1071
Perception of an Object costs Precise the Object's loss —
Perception in itself a Gain Replying to its Price —
The Object
Absolute — is nought — Perception sets it fair And then upbraids a
Perfectness That situates so far —
Foto recém-descoberta que se acredita ser de Emily Dickinson (à esquerda). A
outra mulher, disso não há dúvida, é Kate Scott Turner Anthon, uma amiga. A
data: 1859, quando Emily tinha 29 anos
-----------------------
• Isa
Mara Lando -----------------------
80
Nossas vidas são Suíças
— Tão quietas — tão Frias — Até que uma tarde vem Soltam os Alpes
as suas Cortinas E divisamos mais além!
A Itália fica do outro lado!
Qual sentinelas, porém Os Alpes solenes Os Alpes sirenes Para sempre
intervêm!
80
Our lives are Swiss — So still — so Cool — Till some odd afternoon
The Alps neglect their Curtains And we look farther on!
Italy
stands the other side! While like a guard between — The solemn Alps —
The siren Alps Forever intervene!
1763
Fama, o que é?
Como abelha, vai e vem — Tem canção — Tem ferrão — Ah, tem asa
também.
1763
Fame is a bee. It has a song — It has a sting — And, too, it has a
wing.
182
Se eu não estiver mais viva Quando vierem os Passarinhos Dá ao de
Lencinho Carmesim Uma migalha, por mim.
E se eu não te agradecer
Imersa num sono infinito Saiba que o tento fazer Com meu lábio de
Granito!
182
If I shouldn't be alive When the Robins come, Give the one in Red
Cravat, A Memorial crumb.
If I couldn't thank you, Being fast
asleep, You will know I'm trying Why my Granite lip!
108
Tem
cuidado, cirurgião Ao tomar o bisturi! Sob a tua fina incisão Se
agita a Culpada — a Vida!
108
(versão livre)
Tem
cuidado, cirurgião Ao tomar o bisturi! Sob a tua fina incisão —
Sutilíssima ferida — Se
agita a Culpada — a Vida!
108
Surgeons must be very careful When
they take the knife! Underneath their fine incisions Stirs the Culprit
— Life!
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2014
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Emily Dickinson
• Traduções de Augusto de Campos
Emily Dickinson: Não Sou Ninguém - Poemas
Editora da Unicamp, Campinas-SP, 2008 • Traduções de Aíla de Oliveira
Gomes
Emily Dickinson: Uma Centena de Poemas
Editora da USP, São Paulo, 1984 • Traduções de Isa Mara Lando
Emily Dickinson: Loucas Noites – Wild Nights Disal
Editora, Barueri-SP, 2010
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* Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), portuguesa, no poema
"Pirata"
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