Afonso Felix de Sousa
Amigas e amigos,
Nascido em Jaraguá-GO, Afonso Felix de Sousa (1925-2002) foi poeta,
cronista, jornalista e tradutor. Publicou seus primeiros poemas em jornais
goianos no início dos anos 40. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1947 e em
seguida para Brasília, em 1962. Profissionalmente, foi economista, funcionário
do Banco do Brasil, jornalista do Diário Carioca e adido comercial da embaixada
brasileira em Beirute, Líbano.
Sua estreia em livro se dá em 1948,
com o livro O Túnel, publicado no Rio de Janeiro. Daí seguiu-se mais de
uma dezena de títulos, dos quais o último foi Chamados e Escolhidos,
reunião de poemas publicada em 2001.
Afora a poesia autoral, Afonso Felix de Sousa traduziu autores como o
espanhol Federico García Lorca (Romanceiro Gitano, 1957; Sonetos do
Amor Obscuro e Divã do Tamarit, 1988); o inglês quinhentista John
Donne (Sonetos de Meditação, 1985); e o francês quatrocentista François
Villon (Testamento, 1987). Nota-se, portanto, que o poeta dominava vários
idiomas.
No plano pessoal, Afonso Felix de Sousa foi casado com a também
poeta e contista amazonense Astrid Cabral.
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Os poemas de Afonso Felix mostrados aqui foram todos retirados do volume
Chamados e Escolhidos. Abre a seleção o soneto “[Nos recantos tranquilos
encontrava]”, publicado originalmente na seção “Sonetos Elementares” do primeiro
livro do poeta, O Túnel. Lírico e saudoso, esse texto constrói-se com
base nas recordações de infância do poeta. “Com o menino brincar vinham as
tardes / e vinha o céu”.
Vem a seguir o quarteto “Escrito na Areia”,
integrante do livro À Beira de Teu Corpo (1988). Aqui o poeta reflete
sobre a condição humana e a essencial solitude de cada indivíduo. “Trocadero,
1955” aparece na seção Poemas Dispersos, em Chamados e Escolhidos. O
texto parece registrar uma impressão despertada por uma lembrança da famosa
Praça do Trocadero, em Paris.
É a indagação existencial, mais uma
vez, que perpassa os versos de “Máscaras”. O ser humano diante do espelho e um
feixe de perguntas inevitáveis. Quem sou? Quem é esse estranho que vejo no
reflexo? “A vida nos põe no rosto / máscaras de gosto e desgosto”, diz o poeta.
Em “Tardia Elegia para Sylvia Plath”, do livro Quinquagésima Hora (1987),
a pessoa que fala dirige-se à poeta suicida e tenta penetrar na mente dela e
aproximar-se de suas angústias e delírios. Vem, por fim, o poema “50 anos”, que
dá um tratamento sumaríssimo, de haikai, ao tema do natural declínio do corpo
após a quinquagésima rotação em torno do sol. A partir daí, o jogo da vida se
assemelha a uma trapaça, porque já se sabe claramente quem sairá vencedor.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Máscaras de gosto e desgosto
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Afonso Felix de Sousa
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Giorgio de Chirico,
italiano, Orfeu Trovador Cansado (1970)
[NOS RECANTOS TRANQUILOS ENCONTRAVA]
Nos recantos tranquilos encontrava a poesia. Sobre mim e o rio
debruçavam-se as árvores. Os pássaros eram ecos nos seus primeiros
cantos.
Ruas de chuvas leves, nunca o inverno. Com o menino
brincar vinham as tardes e vinha o céu. Adeus, nuvens cinzentas onde
vagam os monstros meus da infância.
Já não vibram as músicas ingênuas
na planície escutadas. A poesia difícil se tornou e vive em sombras.
Em mim — que tanto amei — hoje as palavras movem-se para ásperas
mensagens e vão morrer na incompreensão dos gestos.
De Chirico, São Jorge Matando o Dragão (1940)
ESCRITO NA AREIA
De água somos. E pó. E choro. E riso. E há um sol que arde em nós.
O sol aviva o chão, o chão que piso E nós pisamos. Sós.
De Chirico, Retrato de Clarice Lispector (1945)
TROCADERO, 1955
Enquanto eu te esperava, enquanto se desfazia
a espuma no copo de cerveja, eu ia escrevendo
palavras sem sentido e nenhum nexo numa folha
de papel que, como a recortar um lagarto
cujos pedaços continuassem teimosamente vivos,
rasguei em pedacinhos, cada um deles
com uma letra e cada sequência de letras,
como se num sonho ou num poema dadaísta,
dando um sentido ao que dentro e fora
de mim se passava e se resumia num grito mudo
de quem se despede e sabe que está se despedindo
para sempre, e sabe também que numa despedida
pedaços de nós como que amputados se destacam
e vão ficando teimosamente vivos pelo caminho.
De Chirico, Pranto de Amor - Heitor e Andrômaca (1974)
MÁSCARAS
A vida nos põe no rosto máscaras de
gosto e desgosto que o tempo afoga em espelho sem nexo e sem
tamanho onde fica o reflexo do rosto de um estranho que se
interroga
De Chirico, Piazza d'Italia (1913)
TARDIA ELEGIA PARA SYLVIA PLATH
Sem bater à porta chego à soleira
do teu delírio
Sem lira ou lírio feito um verme faminto me
adentro por teus olhos e roubo e roo visões que se desfazem e se
refazem e te apavoram e te alimentam enquanto vão te lambendo as
línguas geladas da morte
Línguas do inferno oh the tongues
of hell
Traduzo-te as palavras e o que há por trás das tuas
palavras (What does it mean?) e sinto-te bela como se estivesse
entrevendo
numa rua de Londres no outono de mil novecentos e
cinqüenta e nove e próxima como se nos amássemos há três dias há
três noites há milênios
Enquanto te traduzo línguas do inferno
chegam às soleiras do coração da mente
Querem lamber-me e
queima-me a tua febre e molha-me o suor de tua pele e tudo o que
vês e deixas de ver e eu vejo de dentro de teus olhos vai-se
cobrindo das cinzas de Hiroshima.
De Chirico, O Canto de Amor (1914)
50 ANOS
Prossegue o jogo mas já de cartas
marcadas a ferro e fogo.
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