Número 371 - Ano 15 |
São Paulo, quarta-feira, 22 de
fevereiro de 2017
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«Em nome da Abelha — / E da Borboleta — / E da Brisa — Amém!» (Emily
Dickinson) *
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Iara Maria Carvalho
Amigas e amigos,
Cerca de um ano atrás, em março de 2016, destaquei no
boletim n. 349 a jovem poeta potiguar Iara Maria Carvalho. No texto, escrevi algo que (para mim) funcionou como uma espécie de desafio à autora. Ela, sem saber, participou desse desafio — e venceu. E é por isso que ela retorna neste novo boletim.
Desafio? Explico. O poesia.net 349 pôs em foco a coletânea Saraivada (2015), a segunda da autora. Na apresentação, escrevi:
“Não conheço o livro de estreia de Iara Maria Carvalho. Portanto, não sei dizer que tipo de evolução Saraivada, que tenho em mãos, representa em relação ao anterior. Não importa. O certo é que Saraivada contém um bom punhado de poemas luminosos que podem ensejar à autora uma auspiciosa trajetória no mundo da poesia”.
Após a circulação do boletim, a poeta me enviou um exemplar de seu livro de estreia, Milagreira. Li os poemas e, mais uma vez, fiquei muito bem impressionado. Então, pensei comigo: lancei o desafio e ela respondeu à altura.
Na verdade, não houve nenhum desafio. Como demonstrei curiosidade, a poeta gentilmente me mandou o livro. Eu é que, desde aquele momento, decidi que faria novo boletim com base no volume de debute da autora. Daria apenas um tempo de quarentena. Agora, depois de um ano, vamos à Milagreira, de Iara Maria Carvalho.
•o•
Antes de tudo, vale a pena tentar responder à questão que eu mesmo levantei sobre a “evolução” de um livro para o outro. Acredito, na verdade, que não se operou nenhuma transformação da água para o vinho. A autora desloca-se com igual desenvoltura nos dois volumes.
Em ambos os trabalhos, ela imprime em sua escrita um timbre marcadamente pessoal. A realidade não surge como algo à parte. É sempre dada como coisa que se desloca na visão da autora. A primeira pessoa é sempre muito forte.
Creio que um traço diferenciador entre Milagreira e Saraivada esteja no fato de que, no primeiro livro, Iara Maria Carvalho se volte mais para sua relação com a terra natal e suas origens. Saraivada, de certo modo, apresenta-se mais como uma incursão na própria subjetividade da escritora. Por sua vez, Milagreira, sem nunca deixar de lado essa mesma subjetividade, traz de permeio referências à própria terra, gente, descendência.
•o•
Veja-se, por exemplo, “Herança”. Neste poemeto, a autora confessa seu parentesco indígena. O poema “Medieval e santa” continua afinado no mesmo diapasão. A raiz, agora, atravessa o Atlântico e vai bater em “azulejos / pintados pelas mãos / de minha bisavó”. Provavelmente alguma bisavó portuguesa. E a poeta conclui: “o ímã da terra me chama / ao encanto das origens”.
Em “Na casa do bisavô morto”, continua o périplo em direção às raízes, com o encontro de “fantasmas libertos” e “cristaleiras emitindo madeirices”. E sobre o bisavô: “Tanto tempo vivido / e os açudes sangram / pra dentro do seu chapéu vazio”.
[Faço aqui uma digressão. É preciso ser um poeta do lugar, desses sertões, para inventar as
“madeirices” das cristaleiras e ver a água represada dos açudes sangrando no chapéu do bisavô. Não obstante, o negócio e as modas insistem apenas no dizer das metrópoles: São Paulo, Rio etc. A poesia é mais ampla.
A questão é inclusiva. Não se trata de OU isso OU aquilo, mas de isso E aquilo.]
O poema “Ambiciona” é outro registro do sertão. Início: “Adoro ruminantes / com sua pose sem rodeios / explicando alimentos ao estômago”. Basta ler estas três linhas e já se sabe: atrás delas reside um(a) poeta.
“Insônia” traz um momento de livre criação. É bonita a relação da pessoa (poeta) que contempla o firmamento e dissolve um poema noturno, perturbador, com a luz da lua e das estrelas. “Seduz”, por sua vez, parece descrever um encantamento amoroso — mas sempre no contexto do agreste, dos cajus e das saúvas.
Em “Pianíssimo”, o lirismo desloca-se do ambiente para a pura fantasia. Vale destacar a imagem “pássaro vermelho / de recentes ternuras”. Por fim, “Narcisa” apresenta uma “mulher aprendida / no amor”. Desse modo, torna-se “uma sereia desativada / pra peixes e homens”.
•o•
Iara Maria Carvalho, sem saber, venceu o desafio do primeiro livro. Venceu também o do segundo. Torço para
que vença o repto poético de muitos e muitos outros.
•o•
Alguma notícia sobre a autora. Nascida em 1980 na cidade de Currais Novos-RN, Iara Maria Carvalho é graduada em letras e mestra em estudos da linguagem pela UFRN. Ativista cultural, foi uma das fundadoras do grupo Casarão de Poesia em sua cidade e hoje faz parte do coletivo Novos Potiguares.
Como poeta, Iara participou de várias antologias coletivas. Sua estreia em livro solo deu-se em 2011 com a coletânea
Milagreira, enfocada neste boletim. Seu segundo livro,
Saraivada (2015), foi apresentado no
poesia.net 349.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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A poesia e o ímã da terra
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Iara Maria Carvalho
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C.M. Cooper, pintora americana, Momento em vermelho (detalhe)
HERANÇA
há um sentimento indígena
no torto passo que dou
no pouco tato que tenho:
vou sentindo oca
a raiz em que me lenho.
C.M. Cooper, Mocinha
MEDIEVAL E SANTA
Nos minérios de sua parede,
há mistérios de fogo, sal e lenda.
(sinistras sendas
segredadas em sonhos)
Para o encontro da botija,
quebro os azulejos
pintados pelas mãos
de minha bisavó.
Ouro e prata
azuleiam meu coração
com dor vidrada e secreta.
Penso em sair correndo,
mas meu corpo está fincado
no chão da cozinha:
o ímã da terra me chama
ao encanto das origens.
C.M. Cooper, Sonhadora
NA CASA DO BISAVÔ MORTO
Potes de barro,
forno a lenha,
vapores senis dos
fantasmas libertos,
um alguidar esquecido na despensa.
Ao som de portas moventes,
cristaleiras emitindo
madeirices e flores antigas.
Uma máquina de costura
que cerziu tantas saias de tantas
tias tontas ao léu:
umas mortas, outras virgens.
No seu quarto,
a cama com felpuda colcha de
linha de trem partido há
décadas de ausência lendária
ensinando rezas e poesias
com os olhos verdes verdes.
Tanto tempo vivido
e os açudes sangram
pra dentro do seu chapéu vazio.
C.M. Cooper, Primeiro recital
AMBICIONA
Adoro ruminantes
com sua pose sem rodeios
explicando alimentos ao estômago.
Acalma-me a textura de
esperas
de seu couro nu.
Escapam assustados
do cabresto:
berros secretos sem direção.
Na lonjura digestiva de seu pasto,
uma cabra de nome
Amaranta
recusa-se a procriar.
Nasce um tempo de
cólicas e alegrias...
mastigar morder
morder mastigar
C.M. Cooper, Moça índia
INSÔNIA
Tem um poema de tez escura
que não me deixa dormir.
Não,
não tenho medo.
Só as estrelas me espocam dos sonhos.
E se são palavras de negrume
abro a janela e deixo a lua entrar.
C.M. Cooper, A romântica
SEDUZ
feitiça de longe
amaciando palavras de barro:
flores atacadas por saúvas
cajus travados na garganta
silêncio insinuando sonhos.
se me dá uma água de beber
bem no meio do deserto,
o vestido desce ao chão
arrastando nu tecido
(pernas, poemas, estrelas)
escapa das mãos
um primitivo toque cigano
adivinhando o cheiro de vinagres e desejos.
irrigada de águas agridoces,
minha boca amanhece com seu nome dentro.
C.M. Cooper, Argolas de ouro
PIANÍSSIMO
pianíssimo me fala,
pássaro vermelho
de recentes ternuras.
a voz
de especiaria madura
me condimenta os abismos.
se tocamos o cravo com a boca,
os sons ardem toda vez:
perigos não silenciam
nosso jeito de voar.
C.M. Cooper, Solidão tranquila
NARCISA
agora que sou uma
mulher aprendida
no amor
recolho os frêmitos elaborados
frente às águas
e ao meu sono fluvial retorno
como uma sereia desativada
pra peixes e homens.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2017
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Iara Maria Carvalho • Todos os
poemas
in Milagreira
Casarão
de Poesia,
Currais Novos-RN, 2011
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Emily Dickinson (1830-1886), "The Gentian weaves her fringes", in Complete Poems (1924).
Trad. Carlos Machado
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* Imagens: quadros de
C.M. Cooper, pintora
americana que se autoidentifica como tradicionalista contemporânea
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