Número 372 - Ano 15 |
São Paulo, quarta-feira, 8 de
março de 2017
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«Não sei de pássaros, / não conheço a
história do fogo. / Mas creio que minha solidão deveria ter asas.» (Alejandra
Pizarnik) *
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Wislawa Szymborska
Amigas e amigos,
Ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, a poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) apareceu aqui no poesia.net em abril de 2009 (edição n. 265), oito anos atrás. Na época, a autora ainda era praticamente desconhecida no Brasil.
Quem primeiro me despertou a atenção para ela foi a poeta e crítica Mariana Ianelli. Bem impressionado, decidi reunir alguns poemas avulsos encontrados na internet em português e montei aquele primeiro boletim. De lá para cá, Wislawa Szymborska tornou-se, merecidamente, muito mais conhecida.
Nesse ínterim, a tradutora curitibana Regina Przybycien, professora convidada da Universidade de Cracóvia (Polônia), traduziu e
organizou duas antologias com poemas de Wislawa: Poemas (2011) e Um Amor Feliz (2016), ambas publicadas pela Companhia das Letras. Também nesse intervalo de 2009 para cá, lamentavelmente, Wislawa Szymborska faleceu, em 2012.
Neste boletim, voltamos à poesia de Wislawa. Desta vez os poemas ao lado foram extraídos das antologias citadas acima.
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A seleção começa com o poema “Medo do Palco”. Nele, a poeta polonesa ironiza a expressão “poetas e escritores”, usada em toda parte. Bem no início, ela conclui: “Logo, poetas não são escritores”. É curioso como jornalistas, acadêmicos e mesmo escritores repetem, sem a menor reflexão, essa tautologia: “poeta e escritor”.
Antes de conhecer este poema, já publiquei aqui no poesia.net uma nota falando exatamente desse pequeno atentado à lógica. Foi em 2013, no boletim n. 290. Confiram.
Além de fazer troça com o despropósito da expressão “poetas e escritores”, Wislawa aproveita o poema “Medo do Palco” para discutir sobre sua própria poesia. Diz ela: “Sem me preocupar antes do tempo / se isto é poesia / e que poesia — ”. E continua: “Se aquela na qual a prosa é malvista — / Ou aquela que é bem-vista na prosa —”.
A poeta tem consciência de que faz uma poesia diferente. Sim, uma poesia que de fato está essencialmente estruturada sobre pilares da prosa. Suas frases são diretas,
sem metáforas, e isentas de referências que o leitor não alcance, sejam elas pessoais ou
culturais. Quase sempre, tudo o que aparece nos versos de Wislawa faz sentido
imediato para o leitor. Em geral, o próprio poema trata de esclarecer o assunto
em pauta. Assim sendo, será o caso de perguntar: então, onde está a poesia?
A resposta, a meu ver, é uma só: na mestria da autora. Ela consegue tramar a sequência do texto de modo que, no final, você se convence de que ali está a poesia. Para tanto, ela usa a lógica, muita ironia e observações desconcertantes sobre coisas muito comuns a respeito da vida e da morte. Aliás, seus poemas sempre tratam disso: coisas comuns.
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Em “Fotografia de 11 de Setembro”, Wislawa enfoca o desespero das pessoas que saltaram das torres do World Trade Center, em Nova York, nessa data, em 2001, após o ataque terrorista. Como sempre, a poeta enfeixa uma série de considerações lógicas e, respeitando o estado de fotografia, deixa em suspenso a tragédia daquelas pessoas. Em certo sentido, a técnica aqui é similar à do excelente poema “O Terrorista, Ele Observa” (veja-o no primeiro boletim dedicado a Wislawa).
No poema “A Cortesia dos Cegos” destaca-se, mais uma vez, a capacidade da poeta de observar detalhes e convertê-los em poesia. A autora foi convidada a ler seus poemas para uma plateia de cegos. E então é atacada por preocupações especiais. Será que eles são capazes de perceber referências como “o rapaz de casaco amarelo num prado verde”? Essas preocupações dão a cor do poema.
Em “Exemplo”, um poema breve, a autora explora a força devastadora da ventania sobre uma árvore para refletir sobre a violência dos poderes humanos.
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No poema “Tem Aqueles Que”, as reflexões de Wislawa se debruçam sobre as pessoas que vivem a vida burocraticamente, de forma pesada, medida, contada, disciplinada, como se dominassem o sentido de tudo.
Irônica, como sempre, ela diz que às vezes sente inveja dessa gente, mas “por sorte isso passa”.
Até aqui, todos os poemas citados vieram da segunda coletânea de Wislawa Szymborska, Um Amor Feliz. Vem, por fim, o único texto extraído da primeira antologia, Poemas.
Nesse texto, assim como no poema sobre o 11 de Setembro, a poeta toma como ponto de partida uma fotografia. Trata-se de uma foto do bebê Adolf Hitler. Quem tiver curiosidade pode encontrá-la na internet. Basta procurar por “adolf hitler bebê”. É uma criaturinha comum, uma criancinha à qual só se pode dedicar os sentimentos de afeição e acolhimento.
São justamente esses sentimentos que a poeta explora no poema. Ninguém, olhando aquela criança, seria capaz de imaginar o monstro no qual ela se tornaria.
Mais uma vez, a poeta se vale do “estado de fotografia”. O poema trabalha com o momento da foto, e se atém a ele. Só que o leitor, naturalmente, sabe o que
virá depois. Esse entrelaçamento entre o que está no texto e o “depois”, residente na cabeça do leitor, compõe a graça dissonante do poema.
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Antes de terminar, retorno ao primeiro boletim dedicado a Wislawa Szymborska. Naquela edição, como ainda não havia livros dela em português, até cometi a suprema temeridade (epa!, esta palavra atualmente ganhou conotações
muito nefastas: fora! fu!) de traduzir, eu mesmo, um poema dela: “Pi”. Sim, é um poema sobre o número pi. O impulso de traduzi-lo me veio de minha já longínqua passagem pelas ciências exatas.
Na
verdade, a “tradução” não foi feita a esmo. Não conheço uma só palavra do
polonês, mas pedi a ajuda de um amigo polonês-brasileiro, que leu para mim o
original, e além disso montei o texto com base em traduções que encontrei para o
inglês (várias), italiano, francês e espanhol. Agora, a segunda coletânea
traduzida por Regina Przybycien também traz o poema “Pi”. Comparei-a com a minha
e — que sorte! — não encontrei nada muito distante do que diz a poeta. Creio que isso se deva basicamente à lógica e à clareza do texto
wislawiano.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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poesia.net na academia
Graças à gentileza do poeta e professor universitário
Alexandre Bonafim,
descobri — com amplo retardo — que este boletim anda citado em trabalhos
acadêmicos. O poesia.net apareceu, por exemplo, no artigo de Arnaldo Saraiva
"Poesia recente – magnum proventum", no Jornal de Letras, Artes e Ideias (maio 2009),
de Portugal. Esse artigo foi republicado no livro de ensaios Poesia Brasileira Contemporânea & Tradição,
de Solange Fiuza Cardoso Yokozawa e Alexandre Bonafim (orgs.), São Paulo: Nankin, 2015.
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LANÇAMENTOS
Dois lançamentos em São Paulo nos próximos dias: um livro de poemas e um
bloco de plaquetes mistas, com poesia e prosa.
Luto
• Renan Nuernberger
O
poeta paulistano Renan Nuernberg lança sua nova coletânea de poemas, Luto, obra que sai pela Editora Patuá.
Quando: Sábado,11/03/2017,
das 14h às 18h
Onde:
Patuscada Livraria, Bar e Café
Rua Luís Murat, 40 Vila Madalena
São Paulo, SP
Quelônio Solto #2
• José Luiz Passos, Paloma Vidal, Renan Nuernberger, Ruy Proença
• Luli Penna (desenhos)
A Editora Quelônio lança Quelônio Solto #2, plaquetes que reúnem poemas de Paloma Vidal, Renan Nuernberger e Ruy Proença, mais crônica de José Luiz Passos, com desenhos de Luli Penna. A edição é de Bruno Zeni e o design de Sílvia Nastari
— idealizadores da editora.
Quando: Terça-feira, 14/03/2017,
das 19h00 às 23h
Onde:
Casa do Coqueiro
Rua Paulistânia, 574 Vila Madalena
São Paulo, SP
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Sobre pilares da prosa
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Wislawa Szymborska
Tradução
Regina Przybycien |
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Mabel Frances Layng (1881-1937), pintora inglesa, No ônibus (1920s)
MEDO DO PALCO
Poetas e escritores.
É assim que se diz.
Logo, poetas não são escritores, então o quê —
Os poetas são poesia, os escritores são prosa —
Na prosa pode caber tudo, inclusive a poesia,
mas na poesia deve haver só poesia —
De acordo com o cartaz que a anuncia
com o floreio art nouveau de um P maiúsculo,
inscrito nas cordas de uma lira alada,
eu deveria entrar voando, não andando —
E não estaria melhor descalça
do que com esse sapato comum
batendo o salto, rangendo,
desajeitado substituto de um anjo? —
Se ao menos o vestido fosse mais longo, esvoaçante,
e os versos saíssem não da bolsa, mas da manga,
e versassem sobre a festa, o desfile, o sino solene,
dim dom
ab ab ba —
Mas lá no pódio já espreita uma mesinha,
meio de sessão espírita, com pés dourados,
e na mesinha esfumaça um castiçal —
De onde deduzo
que terei que ler à luz de velas
o que escrevi à luz de uma lâmpada comum
tac tac tac na máquina —
Sem me preocupar antes do tempo
se isto é poesia
e que poesia —
Se aquela na qual a prosa é malvista —
Ou aquela que é bem-vista na prosa —
E que diferença é essa,
perceptível apenas na penumbra,
sobre o fundo de uma cortina bordo
com franjas violeta?
Mabel Frances Layng, Atravessando a rua (1926)
FOTOGRAFIA DE 11 DE SETEMBRO
Saltaram dos andares em chamas —
um, dois, alguns mais
acima, abaixo.
A fotografia os susteve em vida
e agora os mantém
sobre a terra em direção à terra.
Cada um ainda é um todo
com um rosto próprio
e o sangue bem escondido.
Há bastante tempo
para os cabelos se soltarem
e dos bolsos caírem
chaves, dinheiro trocado.
Ainda estão ao alcance do ar,
nos limites dos lugares
que acabaram de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles —
descrever esse voo
e não acrescentar a última sentença.
Mabel Frances Layng, Moças se vestindo (1920s)
A CORTESIA DOS CEGOS
O poeta lê seus versos para os cegos
Não imaginava que fosse tão difícil.
Treme-lhe a voz.
Tremem-Ihe as mãos.
Sente que cada frase
é posta aqui à prova da escuridão.
Vai precisar se virar sozinha
sem luzes e cores.
Aventura perigosa
para as estrelas em seus versos,
a aurora, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para os peixes até aqui tão prateados sob a água
e o falcão tão alto e silencioso no céu.
Lê — porque já é tarde demais para não ler —
sobre o rapaz de casaco amarelo num prado verde,
sobre os telhados vermelhos, que se podem contar, no vale,
sobre os números agitados nas camisas dos jogadores
e sobre a desconhecida nua na porta entreaberta.
Queria se calar — embora seja impossível —
sobre todos aqueles santos no teto da catedral,
aquele gesto de despedida na janela do trem,
a lente do microscópio e o raio de luz no anel
e a leia e o espelho e o álbum de retratos.
Mas é grande a cortesia dos cegos,
grandes sua compreensão e magnanimidade.
Ouvem, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com um livro aberto de cabeça para baixo
pedindo o autógrafo que não verá.
Mabel Frances Layng, Loja de azeite
EXEMPLO
Uma ventania
à noite arrancou todas as folhas da árvore
exceto uma única folhinha
deixada
para se balançar solo em um galho nu.
Com este exemplo
a Violência demonstra
que, sim —
gosta de brincar de vez em quando.
Mabel Frances Layng, A costureira
TEM AQUELES QUE
Tem aqueles que executam a vida de modo eficaz,
põem ordem em si mesmos e ao seu redor.
Têm resposta correta e jeito para tudo.
Adivinham logo quem a quem, quem com quem,
com que objetivo, por onde.
Batem o carimbo nas verdades únicas,
colocam no triturador os fatos desnecessários,
e as pessoas desconhecidas
em fichários de antemão destinados a elas.
Pensam só o quanto vale a pena,
nem um instante mais,
pois detrás desse instante espreita a dúvida.
E quando recebem dispensa da existência,
deixam o posto
pela porta indicada.
Às vezes os invejo
— por sorte isso passa.
Mabel Frances Layng, Sala de chá
PRIMEIRA FOTO DE HITLER
E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho,
[ esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa.
Pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba — sinal de boas-novas,
se for pega — vem uma visita muito esperada.
Toc toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2017
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Wislawa Szymborska
• Todos os poemas, exceto o último in
Um Amor Feliz
tradução
Regina Przybycien Companhia
das Letras,
São Paulo, 2016 • "Primeira Foto de Hitler" in
Poemas
tradução
Regina Przybycien Companhia das Letras, São Paulo, 2011
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* Alejandra Pizarnik, "La carencia", in Poesía Completa,
Lumen España (2001).
Trad. Carlos Machado
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* Imagens: quadros de
Mabel Frances Layng (1881-1937), pintora inglesa
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