Número 375 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2017

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«Pus o meu sonho num navio / e o navio em cima do mar; / — depois, abri o mar com as mãos, / para o meu sonho naufragar.» (Cecília Meireles) *

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Carlos Drummond de AndradeCarlos Drummond de Andrade



Amigas e amigos,

Até a véspera de soltar esta edição, eu não sabia qual tema iria abordar. Em tese, há sempre uma pletora de assuntos e poetas boletináveis. Mas o poesia.net, verão de uma só andorinha, também depende de inspiração.

Para sair do impasse, lembrei-me de que recentemente publiquei num site uma crônica sobre minha relação pessoal com os dicionários. Nessa crônica conto uma história de meus tempos de colegial — coisa de 1966 ou 67 —, quando comecei a ler Carlos Drummond de Andrade.

Meu primeiro contato com o mestre itabirano foi por meio da Antologia Poética, lançada em 1962 pela Editora do Autor, que tinha entre os sócios os escritores Fernando Sabino e Rubem Braga.

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Depois de me divertir com as ironias contidas em muitos poemas mais acessíveis, empaquei no sonetilho "Áporo", publicado originalmente no livro A Rosa do Povo, de 1945.

Primeiro, eu não fazia a menor ideia do que significa o próprio título do poema. Depois, ia aos dicionários e só encontrava a acepção básica (“problema de solução impossível”) e a origem da palavra, que vem do grego aporos: sem poros, ou seja, sem passagem. Ficava a ideia de um beco sem saída, e só.

Até que um dia consultei, na biblioteca da escola — o velho Colégio Estadual da Bahia (Central) —, o Dicionário Caldas Aulete, que era um livrão imenso. Lá encontrei o que me pareceu a chave para o poema.

Além do problema impossível de resolver, o Aulete listava outras acepções da palavra. Áporo também é uma variedade de orquídeas e, ainda, um gênero de insetos cavadores. Drummond, inteligentemente, incorporou tudo isso ao soneto. Ou melhor: fez disso um soneto.

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Pronto, acendeu-se a luz! Vamos ao poema:

Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape. Até aqui, aparecem dois áporos: o inseto cavador e o beco sem saída. Segue o soneto: Que fazer, exausto, / em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério?

No segundo quarteto, vem apenas um comentário sobre a situação do inseto. Mas não só: escrito nos primeiros anos 1940, esse “país bloqueado” e subterrâneo (noite e raiz) também parece ser o infeliz Brasil sob a ditadura do Estado do Novo. E, portanto, o inseto só pode ser o povo, procurando desesperadamente a liberdade, uma saída. Não custa lembrar que, para completar o clima soturno, na Europa explodiam os bombardeios da Segunda Guerra Mundial. (Desnecessário dizer que, na época, esses aspectos histórico-políticos estavam fora de minha compreensão.)

Continuemos a leitura do soneto, até o final.

Eis que o labirinto / (oh razão, mistério) / presto se desata: // em verde, sozinha, / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se.

Maravilha! À luz do dicionário, juntemos os pedaços da narrativa: o áporo-inseto, preso num áporo-problema-sem-solução, cava inutilmente embaixo da terra. De repente, numa incrível metamorfose, o inseto irrompe livre, convertido em áporo-orquídea.

Observe-se que a orquídea resultante é antieuclidiana, ou seja, um objeto que não obedece às leis da geometria clássica, assentada em ensinamentos que vêm do grego Euclides (século III a.C.). Após empreender uma ginástica prodigiosa para escapar do cerco, só poderia mesmo ser uma flor rebelde.

Não preciso dizer que fiquei fascinado. Drummond, num momento genial, brincou com as acepções da palavra áporo! A chave para o enigma está no título do poema. E, claro, no dicionário.

Mais uma observação. O poema se fecha com o verso uma orquídea forma-se. Não é despropositado lembrar que, no mesmo livro, há outro verso que diz: Uma flor nasceu na rua! Ou seja, essa flor brotou de maneira natural. A orquídea, ao contrário, desabrocha de modo estranho. Não “nasce”: converte-se, transmuta-se — “forma-se”.

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Não sei se Drummond chegou a fazer alguma declaração, confirmando ou negando a hipótese de esse poema ter partido de um verbete de dicionário. Mas, com ou sem o aval do poeta, a interpretação parece verdadeira, uma vez que está tudo no Caldas Aulete.

Muitos anos depois, encontrei uma edição desse dicionário e fiz uma cópia xerox da página de "áporo". Guardei-a durante algum tempo, mas depois perdi-a de vista. De todo modo, na versão digital do Aulete ainda se encontra aquele verbete. Confira aqui. Para ver as três acepções do áporo drummondiano, clique em Verbete Original.



Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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LANÇAMENTOS

Dois lançamentos para os próximos dias, ambos em São Paulo.


Senão eu atiro
• Leusa Araujo


Leusa Araujo - Senão eu atiroA Editora Quelônio lança Senão eu Atiro e Outras Histórias Verídicas, novo livro de contos da jornalista Leusa Araujo. O volume contém seis contos baseados em histórias reais.


Quando:
Quarta-feira, 19/04/2017,
das 19h às 23h

Onde:
Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena
São Paulo, SP




Céu cerrado cidade
• Sérgio Avancine


Sérgio Avancine - Céu cerrado cidadeO poeta Sérgio Avancine lança em São Paulo seu quarto livro de poesia, Céu cerrado cidade ‒ Poemas para Brasília Vol. II, obra que sai pela Editora Escrituras.


Quando:
Terça-feira, 25/04/2017,
Das 18h às 21h

Onde:
Casa das Rosas
Avenida Paulista, 37
São Paulo, SP







Uma flor rebelde

Carlos Drummond de Andrade





Pino Daeni - Dreaming in Madrid
Pino Daeni, pintor italiano, Sonhando em Madri





ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.





Pino Daeni - Yellow shawl
Pino Daeni, Xale amarelo



Pino Daeni - Waiting at the balcony
Pino Daeni, Esperando na varanda



Pino Daeni - Last touch
Pino Daeni, O último toque

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017


Carlos Drummond de Andrade
        • in Poesia Completa
           Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
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* Cecília Meireles, "Canção", in Viagem (1939)
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* Imagens: quadros de Pino Daeni (1939-2010), pintor italiano migrado
  para os Estados Unidos