Número 391 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

«Como vencer o oceano / se é livre a navegação / mas proibido fazer barcos?» (Carlos Drummond de Andrade)

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Marize Castro
Marize Castro



Amigas e amigos,

Neste 12 de dezembro de 2017, o boletim poesia.​net completa 15 anos em circulação. Como vocês já sabem, há um site especial para comemorar esta nossa década e meia de convivência coletiva com a arte poética.

Não vou me estender sobre o boletim, inclusive porque — com a preciosa ajuda de mais de uma centena de vocês (muito obrigado!) — o site poesia.​net 15 anos diz o essencial.

Um brinde ao poesia.​net e 15 vivas à Poesia!

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Passemos à edição n. 391, o primeiro passo no ano 16 do boletim.

Ainda no clima de comemorações, selecionei para este número uma poeta especial. Discreta, posicionada na porção mais oriental do Brasil, a autora Marize Castro (Natal-RN, 1962) vem construindo, tijolo sobre tijolo, poema após poema, uma obra poética sólida e respeitada.

No ano passado, apresentei Marize Castro aqui na edição n. 365. Naquele momento, seu livro mais recente, o sexto, era Habitar Teu Nome (2011). Logo em seguida, ainda em 2016, a poeta lançou novo título, A Mesma Fome, no qual baseio este boletim.

Abro a pequena amostra de poemas ao lado com “Chamo o Secreto Nome”, que é também o poema de abertura do livro. Nele a autora parece dar uma resposta a quem desclassifica sua forma de expressão poética como algo que “não é poesia”. Serenamente, ela pondera: “assim seja para quem o diz”. O importante mesmo, sugere o texto, está em outro lugar: “basta-me que se deixe tocar pelo sol / e depois me toque / com as mesmas vestes / o mesmo desamparo / a mesma fome”. A mesma fome de vida. De poesia.

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Em seguida, vem o poema “Se Seu Sexo”, um texto em que se encadeiam erotismo e tristeza, carne e espírito, fé com os pés plantados no chão. Sim, tudo isso em pouco mais de dez versos curtos. A poesia de Marize Castro tem essa capacidade de condensar itens contraditórios em ambientes exíguos: “em cada pedra, um gozo com sua / âncora / em cada alvorada, a fé mais / primitiva”. E fica no ar a pergunta: “eternidades existem?”

No próximo texto, “Safo à Tarde”, a poeta descreve um de seus hábitos de leitura. Quem já se debruçou sobre seus livros, percebe que a poesia de Marize Castro mantém terminações nervosas e sanguíneas que vão dar na melhor tradição ao longo da história. A grega Safo (anos 600 a.C.) é uma de suas poetas preferidas. Nisso Marize está muito bem acompanhada. Eis o que escreveu Platão sobre Safo: “Nove são as musas, dizem alguns. Quanta negligência! Eis aqui a décima: Safo de Lesbos”.

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O poema “Uma Menina” traça a trajetória de vida de uma mulher. É de se notar a substantividade do texto, que lista as perdas da menina como quem organiza uma lista de compras ou um rol de roupas: “perdeu vidrinhos de geleia / meias / bilhetes / adesivos / relógios / asas / pai / mãe / filhos / véus / dentes / pinças / pincéis (...)”.

Nessa longa série de perdas, observe-se como substantivos não tão comuns ou concretos (pai, mãe, filhos, a quase alegria, o desamparo do último gozo, sonhos) são contrabandeados para o meio de coisas triviais, como livros, lápis e chapéus. Pessoalmente, a leitura deste poema me remete ao “Caso do Vestido”.

Na história contada por Drummond, tanto a esposa virtuosa como “aquela mulher do demo” (a forasteira dona do vestido) sofrem as mesmas desditas, impostas pela sociedade patriarcal. Aqui, no poema de Marize, pouco importa se a menina/mulher tem “o desejo de ser boa, má”: as perdas e os danos lhe estão garantidos. Afinal, ela “morreu/nasceu assim: perdendo”. Cruel e verdadeiro.

Em “Cássia. Janis. Nina”, a poeta se aproxima da cultura pop. Cássia Eller, Janis Joplin e Nina Simone são exemplos de artistas que alcançam o sucesso e o estrelato, mas não se livram da maldição de “morrer/nascer perdendo”.

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O poema seguinte, “De Inútil Beleza”, constitui uma antológica ode ao amor. A despeito da visão positiva lançada para o futuro, a ideia não é a de que o amor se banha num mar de mel e facilidades. Tanto que o primeiro verso anuncia um terremoto e a necessidade de espalhar veneno “para afugentar cobras”. Mas o amor — garante a poeta (profeta?) — “retornará da infância / com o seu verdadeiro nome” e “estilhaços de inútil beleza / se soltarão da intimidade do solo.”

Nesse poema, chamo a atenção para um detalhe curioso, que está nos versos “O amor pertence ao amor, / isso ninguém lhes rouba” (o grifo é meu). Por que lhes, perguntarão alguns, se o amor é um só? Ora, a poeta pode ter pensado que, para pertencer um ao outro, deve haver pelo menos dois. Então...

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A ideia das perdas perpassa todo o livro A Mesma Fome, sempre casada com uma indomável vontade de viver, de ver, experimentar. No último poema da seleção ao lado, “Sob o Sol Imóvel”, foi um anjo quem ensinou à pessoa que fala a arte/desastre de “perder tudo”. Observe-se que o falante não se identifica como homem ou mulher e deseja ir ao encontro de seu “feroz destino” para “provar-se em outro sexo”.

Situações assim aparecem em outros poemas e livros de Marize Castro. Por isso a poeta e crítica Mariana Ianelli, no artigo “Uma voz sublime e rara” (posfácio de A Mesma Fome), diz que a obra da autora natalense constitui uma “poesia de fé andrógina”. Perfeito. Ao fim e ao cabo, todos nós, homens ou mulheres, haveremos de orar (ou apenas chorar) na sepultura do mesmo anjo que nos conduz a perder tudo. Porque, óbvio, nem o anjo sobrevive.

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Formada em comunicação social pela UFRN, Marize trabalha com jornalismo cultural. É também editora de livros e produz — com ressaltado esmero — as próprias obras, que saem pela Editora Una, de Natal. Marize Castro estreou em livro com o volume Marrons Crepons Marfins, em 1984. Depois, já publicou mais seis títulos: Rito (1993); Poço. Festim. Mosaico (1996); Esperado Ouro (2005); Lábios-Espelhos (2009); Habitar Teu Nome (2011); e A Mesma Fome (2016).


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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poesia.net 15 anos

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  • Os poetas, ano a ano
  • Homenagem aos poetas que apareceram no boletim
  • Histórias do boletim
  • Revelações de bastidores do poesia.net
  • Datas e números       
  • Do boletim, do site e do poesia.net no Facebook
  • Agradecimentos       
  • O editor agradece a leitores, poetas e colaboradores

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LANÇAMENTOS

Três títulos de poesia entram em circulação nesta semana em Salvador.

Tragédia Épica (Guerra de Canudos)
• Francisco Mangabeira

Antologia Poética e Inéditos
• Florisvaldo Mattos

Mangabeira-MattosDois livros de poesia serão lançados na Academia de Letras da Bahia. Um é Tragédia Épica (Guerra de Canudos), de Francisco Mangabeira (1879-1904). O outro, Antologia Poética e Inéditos, de Florisvaldo Mattos.

Quando:
Quinta-feira, 14/12/2017, às 18h

Onde:
Academia de Letras da Bahia
Av. Joana Angélica, 198
Salvador, BA



Babilônia e Outros Poemas
• Ruy Espinheira filho

Babilônia-EspinheiraO poeta Ruy Espinheira Filho lança em Salvador seu novo livro, Babilônia e Outros Poemas, publicado pela editora paulistana Patuá.


Quando:
Sexta-feira, 15/12/2017, às 17h

Onde:
Antiga Ceasinha do Rio Vermelho
Restaurante do Edinho
Salvador, BA


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Estilhaços de inútil beleza

• Marize Castro


              



Rafal Olbinski - Exhibition
Rafal Olbinski, pintor polonês, Exibição


CHAMO O SECRETO NOME

Chamo o secreto nome
em secreta língua
(não só a mim ele servirá)
dirão: não é poesia
(assim seja para quem o diz)
basta-me que se deixe tocar pelo sol
e depois me toque
com as mesmas vestes
o mesmo desamparo
a mesma fome



Rafal Olbinski - Cores do silencio III
Rafal Olbinski, Cores do silêncio III


SE SEU SEXO

Se seu sexo grisalho me convida a morrer
eu aceito, abro-me: ninho e pântano

seus olhos me comem, abandono cidades
   — circulo o antigo átrio —

em cada pedra, um gozo com sua âncora
em cada alvorada, a fé mais primitiva

eternidades existem?

perguntam velhas moças dentro de carrosséis
imortalizadas no mais alto céu



Rafal Olbinski - Duality of expression
Rafal Olbinski, Dualidade de expressão


SAFO À TARDE

Às 2h45 da tarde
não escrevo
não durmo
não como
não bebo
não luto
abro janelas
— leio Safo.
Coloco minhas mãos
sobre a minha antiga alma
e a puxo para mim:
eu a ensinei a beijar
ela me ensinou
a morrer.



Rafal Olbinski - Cisne negro
Rafal Olbinski, Cisne negro


UMA MENINA

Uma menina
de cabelo vermelho
perdeu olhos
sonhos
espelhos
perdeu o desejo de ser boa, má
perdeu rio
lama
mar
perdeu a dor antiga
a quase alegria
perdeu a flor que escondia no sexo
a lembrança do primeiro beijo
o desamparo do último gozo
perdeu vidrinhos de geleia
meias
bilhetes
adesivos
relógios
asas
pai
mãe
filhos
véus
dentes
pinças
pincéis
meias
pentes
postais
tesouras
livros
lápis
entranhas
sangue
peso
cabelos
canetas
chapéus

Uma menina
de cabelo vermelho
(ou seria negro
amarelo
azul
marrom?)
morreu/nasceu
assim:
perdendo



Rafal Olbinski - Natalia's birthday
Rafal Olbinski, Aniversário de Natalia


CÁSSIA. JANIS. NINA

Deliciosas mortas cantam nesta casa.
O delicado espelho revela
o que se apagou por hipocrisia
acidez
babaquice
indulgência
horror.
Deveríamos vir aqui mais vezes
neste lugar onde a gentileza
é uma montanha que desmorona
e se ergue a cada festa
devolvendo aos olhos do mundo
o pequeno-grande sol
— seu primeiro filho.
Somente aqui
(não mais em nenhum outro lugar)
deliciosas mortas reinventam
a vida.



Rafal Olbinski - substitution of appearances
Rafal Olbinski, Substituição de aparências


DE INÚTIL BELEZA

Após o terremoto, o rio será atravessado,
frações de veneno serão espalhadas
para afugentar as cobras,
raízes de gengibre serão colhidas
em profundo silêncio.
O amor se banhará em ervas
e retornará da infância
com o seu verdadeiro nome,
saberá a origem de toda planta,
o odor de todo gozo.
O amor pertence ao amor,
isso ninguém lhes rouba,
nem mesmo sentenças de morte
proferidas por bestas assassinas
em horrendos tribunais.
Sempre o amor olhará para o amor
e estilhaços de inútil beleza
se soltarão da intimidade do solo.
No ressoar de suas asas, a verdade surgirá:
não se separa o amor do amor.



Rafal Olbinski - Midsummer marriage
Rafal Olbinski, Casamento de verão


SOB O SOL IMÓVEL

Agora sei que a terra distante
é o feroz destino.

Envelheço com o desejo de ir lá,
provar-me em outro sexo,

orar na sepultura do mesmo anjo
que me ensinou a perder tudo.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017



Marize Castro
•  in A Mesma Fome
    Una, Natal-RN, 2017
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* Carlos Drummond de Andrade, "Rola Mundo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: obras do pintor e ilustrador polonês Rafal Olbinski (1943-), que
  define sua arte como “surrealismo poético”. Olbinski vive nos EUA.