Amigas e amigos,
O poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) já esteve aqui no poesia.net há cerca de onze anos. Ele foi destacado
na edição n. 195, em fevereiro de 2007.
Infelizmente, nesse mesmo ano, Cunha Melo partiria em definitivo para o país da memória.
O primeiro boletim baseado na poesia dele tomou como referência dois de seus livros: Soma dos Sumos (1983) e Dois Caminhos
e Uma Oração (2003). Agora, esta revisitação ocorre após o lançamento de sua Poesia Completa (Record, 2017), alentado
volume com 1000 páginas, organizado pela viúva do poeta, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo. Trabalho minucioso, o volume
abriga todos os títulos publicados, mais uma copiosa produção inédita.
Portanto, esta edição do boletim bebe no vasto oceano da poesia completa de Alberto da Cunha Melo. Com óbvia dificuldade, selecionei um punhado
de poemas, procurando não repetir outros já mostrados no primeiro boletim.
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Quem parar um pouco para analisar o trabalho de Alberto da Cunha Melo logo notará que o poeta, embora também se expresse em versos
livres, praticamente especializou-se no octossílabo, metro antes cultivado pela carioca Cecília Meireles e também pelo pernambucano
João Cabral de Melo Neto. Substancial parcela dos poemas de Cunha Melo vem vazada nesses versos.
Menos “automático” que o setissílabo — base tradicional da poética popular em espanhol e em português —, o verso de oito sílabas
pode ser ingrato para quem não dispõe de destreza para torná-lo maleável e musical. Cunha Melo não só conseguiu dominá-lo como o
transformou em sua medida-padrão. Dos sete poemas transcritos ao lado, observe-se que apenas o último não se baseia em octossílabos.
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Passemos à leitura dos poemas. O primeiro da seleção é “1. Publicação do Corpo”, que apareceu originalmente no livro Círculo Cósmico
(1966). Nele o poeta empreende uma viagem contrária ao procedimento habitual. Em geral, fala-se em transcendência, partindo do corpo para
a alma. Aqui, a pessoa que fala promete sair das altas nuvens, onde sempre habitou, e descer para a cidade. O objetivo é tornar público
o corpo, não as nuvens. “Só meu corpo sabe virar / todas as páginas do tempo”, diz o poeta.
O poema seguinte, “4. Asteriscos”, vem da mesma fonte, o livro Círculo Cósmico, e mantém certo parentesco lógico com o anterior.
O poeta insiste na ideia de que o corpo é o verdadeiro testemunho das dores sofridas pelo indivíduo. Mas agora, além de afirmar o corpo,
ele deixa o poema — outra prova material da existência.
Ainda do livro Círculo Cósmico, o poema “17. Hora de Voar” reafirma a ideia de corporeidade da criação poética apresentada nos dois
poemas anteriores. Em meio a outras considerações, o poeta flagra um conflito interessante. De um lado, “o poema, depois de pronto, /
quer-se mostrar, como as crianças”. De outro, o poeta declara que o “grande pudor de mostrar o poema” o salva na Terra. E mais: o poema
é “como se fosse uma das partes / mais vergonhosas do meu corpo”. Mais uma vez, o poeta trafega na contramão do idealismo romântico,
que atribui ao objeto artístico identidade com a alma de seu criador.
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O texto intitulado como “XXVI” vem de outro livro, Oração pelo Poema, de 1969. O poeta começa com uma metáfora perigosíssima:
soltar a direção do automóvel “para escrever alguma coisa / mais urgente que minha vida”. Supõe-se a urgência e a importância de escrever
para o poeta. Ao mesmo tempo, ele enfrenta as limitações impostas pela vida moderna: “é proibido / amar, fumar, pisar na grama”.
Apesar de tudo, ele insiste e implora: “Ó meu Deus, eu quero escrever /a minha vida, não teu Céu”. Mais uma vez, o poeta
decide relacionar-se com o corpo, as coisas do chão, e não com as formulações etéreas.
Vem a seguir um texto do volume Poemas Anteriores (1989). Agora, o poeta discorre sobre uma marca de metralhadoras, a Thompson.
Segundo a Wikipédia, trata-se na verdade de uma submetralhadora ou pistola-metralhadora (não procurei saber qual a diferença),
muito usada nos EUA tanto entre policiais como entre mafiosos e gângsteres, inclusive Al Capone.
Identificada a arma, voltemos ao poema. Para o poeta, a metralhadora, “Pesada como uma criança / gorda, filha do fabricante, /
não para de gritar enquanto / não devora o pente de balas”. O tom é sempre de cáustica ironia. Lembra, por exemplo, que o
famoso marginal carioca Mineirinho “morreu com ela”, a Thompson (em 1962). Elevar esse instrumento mortífero a tema de poesia
constitui um dos estalos geniais de Alberto da Cunha Melo.
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O poema a seguir, “Formas de Abençoar”, extraído do livro O Cão Amarelo e Outros Poemas (2006). Neste caso, quem fala é um pai
dando conselhos ao filho. Lembra que “há uma mentira por aí / chamada infância”. E avisa que a infância só é tolerada enquanto dura.
Depois, não há mais tolerância nem perdão: “Somos treva, a vida é apenas / puro lampejo do carvão”. O leitor pode escolher chamar essa
afirmação de pessimismo ou realismo.
Chegamos, por fim, ao único poema da seleção
escrito em versos livres. Trata-se de “Presentimento no Bar ‘Raízes’”, do volume Poemas à Mão Livre (1981).
A rigor, o poeta faz aí uma “anotação poética”. Registro de coisas sensíveis que lhe passam pela cabeça. O bar vazio, que oferece um
lugar bom “para beber e pensar”; a ideia de que poderia aparecer ali uma moça, “que não chegará”; e ainda o pressentimento de que nunca
mais estará de novo, numa tarde, naquele mesmo bar. É poesia em estado puro: não há exatamente um tema ou outra preocupação, somente a poesia.
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Alberto da Cunha Melo nasceu em Jaboatão dos Guararapes (PE), na região metropolitana do Recife, em 1942. Sociólogo e jornalista,
trabalhou nas duas áreas. Desenvolveu também intensa atividade cultural. Participou das Edições Pirata, movimento editorial que
publicou mais de 300 títulos entre 1979 e 1984. Como poeta, Cunha Melo estreou em 1966 com o volume Círculo Cósmico, do qual
três poemas são transcritos ao lado. Publicou, em vida, quase 20 títulos de poesia. Alberto da Cunha Melo faleceu em outubro de 2007.
Organizada pela viúva, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo, sua Poesia Completa saiu em 2017 pela Editora Record.
Mais informações no site dedicado ao poeta:
Alberto da Cunha Melo.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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